domingo, 29 de novembro de 2020

Um caso de amor com a tirania

Na França, é cada vez mais evidente o namoro com o autoritarismo sob o disfarce da racionalidade, da competência administrativa, do bem comum, da justiça social 

J. R. Guzzo 

Bem pouca gente ouviu falar muita coisa a respeito da história que será contada a seguir — é praticamente impossível, hoje em dia, ler, ouvir ou ver informações sobre fatos que estorvam a visão do certo e do errado que existe na cabeça da mídia mundial. Mas o fato é que acaba de ser cometido na França um ataque especialmente vicioso, pervertido e hipócrita contra a liberdade de expressão. Em perfeita simetria com a intenção dos seus autores, é também uma missa cantada para celebrar a submissão do indivíduo ao Estado — e promover um novo avanço da autoridade pública em sua escalada para tornar-se o elemento mais valioso, e mais privilegiado, da sociedade francesa. 

Foi aprovada, agora neste final de novembro, uma prodigiosa sequência de atos destinados a proteger a polícia dos cidadãos em geral — e sobretudo dos jornalistas. Você não leu errado. É isso mesmo: o governo do presidente Emmanuel Macron, com o apoio maciço dos deputados da Assembleia Nacional, declarou que a população se tornou um perigo para o Estado francês e para os seus agentes. Em consequência, tem de ser tratada com repressão. A desculpa é aumentar a segurança dos policiais no combate ao terrorismo — e punir os cidadãos com sanções penais caso a polícia decida que está sendo posta em risco por eles. 

A partir de agora, por força do Artigo 24 da “Lei de Segurança Global” que acaba de ser aprovado, as pessoas estão sujeitas a um ano de prisão e a € 45 mil de multa (ou perto de R$ 300 mil) se divulgarem “a imagem do rosto ou de qualquer outro elemento de identificação de um policial ou de um gendarme em ação de serviço”. Ou seja: os repórteres fotográficos, ou quem mais estiver com a câmera do seu celular ativada, ficam legalmente proibidos de registrar, por exemplo, imagens de policiais baixando o cacete em qualquer tipo de manifestação pública, ou prendendo cidadãos suspeitos de não observância do “distanciamento social”. Para amarrar a coisa pelos sete lados, o Artigo 24 também exige que os veículos de comunicação apaguem o rosto de policiais de qualquer foto ou vídeo que porventura vierem a obter e a publicar. 

O veneno contido na lei teve efeito imediato: dois jornalistas já foram detidos ao cobrir manifestações de protesto contra o próprio Artigo 24. Está claro que o propósito do governo Macron, dos deputados que lhe dão apoio e dos sindicatos de policiais é reprimir os cidadãos e jornalistas que querem (ou precisam) registrar atos de violência ilegal e de arbitrariedade cometidos pela polícia — e não proteger seus agentes do terrorismo. O ministro do Interior, que foi o principal corretor público da nova legislação, admitiu que não tem nenhuma estatística a respeito de casos em que a captação e a divulgação de imagens de policiais possam ter provocado algum ataque contra eles. Também não soube informar quantos funcionários da polícia, até hoje, foram importunados socialmente por verem a sua atividade divulgada em público. O que sobrou, no fim das contas, foi a prisão e a multa. 

E se Bolsonaro ou Trump propusessem algo parecido com o tal Artigo 24?

A lei diz que as punições deverão se limitar aos casos em que houver a intenção deliberada, por parte de quem gravou as imagens, de atentar contra a “integridade física ou psíquica” dos policiais — mas, na prática, é a própria polícia quem vai decidir se a imagem foi captada com malícia ou de forma inocente. O que você acha que vai acontecer na vida real? No caso dos repórteres fotográficos, por exemplo: sua função profissional inclui, obrigatoriamente, o registro da presença da polícia e das ações praticadas por ela durante uma manifestação pública, e sua intenção é mesmo divulgar as imagens que colheu. Como é que fica, então? Se a imagem com o rosto do policial for publicada no jornal ou na televisão, ele estará sujeito, por definição, a um atentado terrorista. Para cumprir a nova lei, portanto, o jornalista não poderá mais fotografar ou filmar livremente nenhuma manifestação em que a polícia esteja presente. 

Para piorar as coisas, o governo disse que os jornalistas deveriam se “credenciar” perante as autoridades policiais para cobrirem atos públicos em que haverá presença das forças de segurança — coisa que não está escrita em nenhuma lei da França. Houve o cuidado de dizer que esse pedido de licença não é “obrigatório” — mesmo porque isso seria tão flagrantemente contra a Constituição francesa que acharam melhor não forçar a mão. Mas as autoridades lembraram, ao mesmo tempo, que o “credenciamento” tem a vantagem de permitir que a polícia forneça “proteção” aos repórteres durante as manifestações. Juram que isso não é uma ameaça velada — e ficaram de fazer uma emenda dizendo que a proibição de registrar as imagens deve ser feita “sem prejuízo do direito de informar”. Também acenaram com o estabelecimento de critérios mais claros para caracterizar a intenção de atentar contra a integridade dos policiais. Nenhuma das duas coisas vai mudar nada. 

A pergunta que interessa, depois disso tudo, é a seguinte: existe no Brasil alguma coisa parecida com esse Artigo 24? Não existe nem nunca existiu — na verdade, é provável que nunca tenha passado pela cabeça de ninguém fazer algo assim por aqui. Imagine-se, agora, o que o presidente Macron, seus admiradores e as classes intelectuais, jornalísticas e bem-educadas da França estariam dizendo se o presidente Jair Bolsonaro mandasse para o Congresso Nacional um projeto de lei propondo exatamente o que o governo francês acaba de fazer. (Pior: e se a ideia viesse de Donald Trump? É melhor nem pensar.) 

No mundo das ideias, o Brasil visto da França de Macron e dos Estados Unidos de Joe Biden é um inferno político onde a população é oprimida diariamente por uma ditadura militar-fascista, que persegue os índios, os negros, os gays, as mulheres e os pobres — além de queimar a Amazônia e praticar o genocídio, porque o presidente não usa máscara, promove “aglomeração” quando fala em público e recomenda o uso da cloroquina. No mundo dos fatos, a França está jogando na cadeia repórteres que fotografam ou filmam policiais em manifestações de rua. 

A nova “Lei de Segurança Global” é uma aula magna sobre a progressiva e inquietante descida da França em direção ao totalitarismo estilo 2020 — essa mistura pretensamente fina de supressão das liberdades individuais com a transferência cada vez maior das decisões para a esfera dos altos e médios servidores das máquinas estatais, das nações ou das entidades “globais”. (A propósito: a proibição de captar imagens leva o nome de “Lei Global”.) Não é algo que esteja acontecendo só na França. Na Alemanha, praticamente no mesmo dia, a maioria governista que controla o Parlamento aprovou a supressão de direitos individuais inscritos na Constituição alemã para pôr em vigor a sua “Lei de Prevenção das Infecções”, com restrições que vão da suspensão de liberdades por conta do lockdown até a vacinação obrigatória. (Levantaram-se, na hora, lembranças da “Lei Habilitante” de março de 1933, na qual esse mesmo Parlamento, então chamado Reichstag, deu plenos poderes a Adolf Hitler.) 

É o avanço, nas democracias tidas como as mais avançadas do mundo, da ideia geral de que as pessoas, no fundo, não sabem o que é bom para elas; para não serem enganadas pelo “populismo”, que as leva a escolher indivíduos inconvenientes para os governos, devem se submeter a um novo “contrato social”. Por esse contrato, a autoridade, basicamente, deve ficar a cargo dos que têm “qualificação técnica” para governar — as camadas superiores dos ministérios disso ou daquilo, os altos burocratas dos organismos internacionais, do FMI à Organização Mundial da Saúde, os detentores do saber universitário e os funcionários públicos que se encontram entre um galho e outro dessa árvore toda. À população cabe cumprir ordens — da proibição de fazer uma imagem à obrigação de tomar vacina. 

É um namoro cada vez mais incontrolável com a tirania — sob o disfarce da racionalidade, da competência administrativa, do bem comum, da busca da igualdade, da justiça social, da ajuda às minorias, aos imigrantes, aos pobres e outras lorotas. Trata-se, na verdade, da maior fraude ideológica em curso no mundo de hoje. Ninguém, no fundo, está interessado em ajudar imigrante nenhum. O que os burocratas que ocupam bons lugares no aparelho estatal estão realmente querendo — seja nos países, seja nos órgãos transnacionais — é mandar. Quanto mais mandarem, mais seguros estarão nos seus altos salários, seus cartões de crédito “corporativos”, suas aposentadorias com remuneração integral e o resto da festa. Seu lema é: “Cada vez mais governo, mais ‘protocolo’ e mais poder para quem não foi eleito — e cada vez mais obediência por parte dos demais”. 

A própria aprovação da Lei de Segurança Global, em si, é um prefácio para esse mundo escuro que está se formando nas nações mais bem-sucedidas do mundo. A Assembleia Nacional da França tem 577 deputados. Para a sessão em que o seu Artigo 24 foi aprovado compareceram apenas 170, ou 30% do plenário total — e a votação acabou ficando em 146 a favor e 24 contra. Para que serve, então, um Parlamento desses? Parece o Congresso da Venezuela, de gravata Hermès e bolsa Vuitton. A reação dos franceses, ao mesmo tempo, foi de uma apatia capaz de lembrar a postura geral dos chineses diante da ditadura em vigor em seu país. 

Na China, há uma espécie de “contrato social” que diz o seguinte: “Nós damos comida, trabalho, roupa e iPad para vocês. Em compensação vocês obedecem”. Ninguém precisa dizer que França e China são coisas diferentes; até uma criança com 10 anos de idade sabe disso. Mas chama atenção o fato de haver paralelos entre os dois países, em matéria de comprar o silêncio da população. Na França, a tendência é de se conformar com as decisões de “l’État” por conta do salário-desemprego, dos “benefícios sociais”, das verbas para a família, dos subsídios para o agricultor, para o pequeno empresário, para o grande empresário, da ajuda disso, do auxílio daquilo, dos “direitos adquiridos”, da meia-entrada e, mais do que tudo, dos privilégios da burocracia estatal. Faz uma tremenda diferença, num país que tem hoje 5,5 milhões de funcionários públicos — cerca de 8% da população nacional, e nada menos do que 20% da população economicamente ativa (ou um em cada cinco franceses), descontando-se aí os 3 milhões de desempregados atuais. Para chegar a esse nível, o Brasil teria de ter entre 17 milhões e 18 milhões de servidores públicos; temos 12 milhões, nos três níveis. 

É o bioma ideal para o cultivo de ditaduras do modelo liberal-social-democrático-equilibrado-centrista-progressista-europeu-civilizado que tanto encanta as classes intelectuais do Brasil de hoje, nesse grande arco que vai dos beneficiários do Bolsa Ditadura a Luciano Huck, passando pelo DEM, por Benedita da Silva e por outros colossos da política nacional. Se é bom para a França, deve servir para o Trópico.

Título e Texto: J.R. Guzzo, revista Oeste, nº 36, 27-11-2020 

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