terça-feira, 24 de novembro de 2020

[Diário de uma caminhada] Camilo Lourenço, «Maluco Beleza» e orgulho português


Gabriel Mithá Ribeiro

O programa de Rui Unas «Maluco Beleza» teve como convidado Camilo Lourenço (3-11-2020). A independência, a capacidade de comunicação ou a argumentação económica do último fazem dele um oásis de liberdade e inteligência numa comunicação social em estado comatoso. 

O detalhe é o de Camilo Lourenço, por vezes, não conseguir manter a argúcia crítica quando se afasta do campo económico para navegar em campo aberto, o da história, da vida quotidiana, da política, do que existe de sensível na condição humana. Aí os clichés sobressaem. Ainda assim, não dou razão à tese dos sociólogos, a economia é demasiado séria para ficar nas mãos dos economistas, uma vez que a economia fica muitíssimo pior nas mãos dos fundamentalistas das ciências sociais onde os sociólogos são proeminentes. É preciso que as sociedades resistam a tais tendências. 

Para ajudar a reforçar a qualidade do serviço público que Camilo Lourenço presta, recorro a um exemplo da incongruência do seu discurso no «Maluco Beleza», tema repetido num programa seu, «A cor do Dinheiro» (20.11.2020, a partir dos 17 minutos). O meu conterrâneo considerou que se a colonização portuguesa não tivesse escolarizado tão poucos colonizados, as disfuncionalidades de Moçambique não seriam o que são hoje. Trata-se de um juízo de valor, infiro eu, aplicável a outros países. 

Sugiro a Camilo Lourenço que explique a si mesmo, de preferência em voz alta num dos seus programas, como é que populações africanas que, na entrada do século XX, não tinham tradições de cultura escrita (formalmente estariam na pré-história, o que implica um tipo de pensamento social que não é o mesmo das sociedades com tradição escrita, mesmo nos casos em que parte da população não seja alfabetizada); como é que populações que não partilhavam um mesmo idioma autóctone entre elas, muito menos sabiam falar português – como é que sociedades africanas com tais características poderiam ser rápida e massivamente escolarizadas pelos portugueses e em língua portuguesa? 

Existem detalhes sensíveis dos processos civilizacionais, onde se incluem a escrita e a alta cultura (filosofia, cálculo, música, pintura, literatura, artes), em que a pressa e a quantidade são inimigas da qualidade e das virtudes cívicas que espoletam. 

A colonização europeia efetiva de África começou na transição do século XIX para o século XX, isto é, apenas nessa altura a população branca europeia começou a fixar-se nas antigas colónias portuguesas, e em números residuais até aos anos cinquenta e sessenta. Ainda assim, foi possível lançar a semente de um idioma muitíssimo mais rico, complexo e unificador do que aqueles que existiam entre as populações africanas, e por isso as línguas europeias não pararam de se afirmar (português, inglês, francês), assim como foi possível dar início à maior reinvenção civilizacional na África Subsariana desde a pré-história, a introdução da cultura escrita enquanto fenómeno cultural e social que, depois, se desenvolveu por si mesmo desde a segunda metade do século XX. 

Nesse processo, os missionários portugueses e demais europeus deram importantes contributos ao elaborarem os primeiros dicionários e gramáticas das línguas africanas que, também elas, ganharam suporte escrito a partir de caracteres fenícios, gregos, latinos, mais a numeração árabe, conjunto sintetizado e sistematizado pelos ocidentais a ponto de poder ser transmitido a outros povos. 

Passar, por hipótese, de cem por cento iletrados, em Moçambique, para noventa por cento em uma ou duas gerações durante o período da colonização efetiva talvez não seja mau. Esses dez por cento de africanos letrados no tempo colonial beneficiaram de uma preparação escolar de qualidade que, comparativamente, vale bem mais do que noventa por cento dos alfabetizados da África atual. Uma triste realidade. 

Comecei a minha formação numa escola de um subúrbio da então Lourenço Marques (Maputo desde 1976), em Moçambique, ainda no tempo colonial e, em inícios dos anos oitenta, consegui adaptar-me ao terceiro ciclo do ensino básico em Portugal sem dificuldades, como aconteceria com a maior parte dos meus colegas de escola da infância colonial, na sua esmagadora maioria negros. O mesmo deve ter acontecido com Camilo Lourenço quando veio de Moçambique para Portugal, pois fiquei a saber que vivia em Quelimane, a capital da Zambézia, no norte, e pelo que se vê hoje a sua formação escolar de base, a do tempo colonial, foi sólida. 

Não sei se Camilo Lourenço o fez, mas se ele for visitar a sua escola de infância e da adolescência hoje, em Quelimane, vai encontrar muitíssimas mais crianças escolarizadas, mas com tão fraca qualidade que dificilmente se adaptariam, na atualidade, ao ensino em Portugal. A seguir à independência, avançou-se para a massificação estatística da escolarização, porém matando-lhe a qualidade. Tais avanços pós-coloniais revelam-se muitíssimo mais perversos quando comparados com o legado colonial português de 1974-1975. 

Isso porque a qualidade da formação escolar autorreproduz-se socialmente, independentemente da quantidade inicial, assim como a má qualidade expande-se que nem fogo em palha seca, pior se massificada, deixando sequelas difíceis de reverter por muitas e muitas gerações. São sequelas que destroem, inclusivamente, as possibilidades de valorização social dos mais desfavorecidos pela única via que possuem, a da qualidade da formação escolar. 

Ao contrário do que aconteceu com a geração formada no tempo colonial, mesmo no interior de África, hoje um aluno moçambicano chegado a Portugal vindo das melhores escolas públicas do centro da capital moçambicana, Maputo, já com o português como língua materna, é quase um milagre estar ao nível da preparação de um estudante sofrível do ensino público em Portugal, com o desconto da qualidade do último também ter decaído. 

Se Camilo Lourenço adaptar ao sentido da vida social, política, histórica ou cultural o mesmo rigor analítico que aplica à economia ultrapassará as incongruências do seu discurso analítico. O essencial depende de disciplinar o olhar a partir de um primado moral claro, pois é este que determina o sucesso ou o fracasso das sociedades ou das economias antes de tudo o resto. O economista poderia esclarecer isso primeiro para si mesmo, depois para o seu público. Mero conselho de quem valoriza o seu trabalho. 

Este texto tem uma conclusão que não é inocente. Os estereótipos a que, por vezes, Camilo Lourenço recorre para desvalorizar o CHEGA estão ao nível das avaliações que faz sobre o ensino no tempo colonial. O seu discurso econômico é muito forte, mas ele ganharia se tentasse compreender o CHEGA antes de julgá-lo, característica das mentes verdadeiramente analíticas. Tese de Max Weber. E todos ganhávamos. 

Mas para isso ele teria de abrir um pouco mais o espírito para admitir renovar o seu olhar sobre temas como a moral social, o racismo, a crítica social ou o nacionalismo, entre outros temas socialmente sensíveis, e não comprar acriticamente argumentos sobre tais assuntos que vêm na mesma embalagem das economias socialistas, estatizadas ou planificadas que Camilo Lourenço sabiamente detesta. 

Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Vice-Presidente do CHEGA!, 24-11-2020 

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