Aparecido Raimundo de Souza
ERA UM SUJEITO UNGUINOSO e, para
completar, extremamente epicurista. Tinha os cabelos gordurosos e os olhos
defuntados como o de um cadáver em decomposição. Se assemelhava, na verdade, a
um corpo ambulante saído, às escondidas, de alguma sepultura recém aberta por
ladrões vandalizadores, dessas espécies que vivem à procura de cemitérios
periféricos em torno de cidadelas e lugarejos sem vida profusa e farta, para
surrupiarem o que de algum valor, ainda que irrisório, pudesse, por ventura,
ser encontrado.
Sua pele, apesar da hiperemia
superabundante, dava para se ver, de longe, se destacava a quilômetros pela
oleosidade excessiva, como se brotasse, de todos os poros existentes de sua
epiderme, algo incomum. O despiciendo se parecia, olhado assim, de prima vez,
com um flagicioso que se ocultava de ser visto, ou pior, vegetava como um louco
monoteísta, distanciado das outras pessoas da sua comunidade, em face de ter
cometido alguma delito imperdoável. Em verdade, nem uma coisa, nem outra.
Se tamponava, a sete chaves, não por
atos maléficos. Simplesmente por se achar um cara feiudo, mais horrendo que o
verruguento Quasímodo, de Victor Hugo, com a diferença de que o Quasímodo
original se fez conhecido mundialmente por ter salvo a cigana Esmeralda (e se
apaixonado por ela), quando a beldade inocentemente se envolvera num possível
assassinato, ao passo que este, esquisito e ‘descorcundado’, sequer tinha noção
ou saberia dizer com certeza, a procedência correta de seu local de nascimento.
Levando em conta as suas poucas
ledices e, sobretudo a solidão, procurava, sempre que surgia a oportunidade, se
mostrar um camarada alegre com as pessoas. Se fazia chistoso e brincador com as
crianças, galante com as moças, risonho e venusto com os mais velhos, contente
e garboso quando alguém, na rua, o cumprimentava, ainda que não parasse para
papear; apenas se detendo para a ligeirice de trocar um bom dia; boa tarde ou
boa noite.
Um jornalista que se punha indo
embora, de volta para a capital, atravessava a derradeira rua a caminho de pegar a BR, quando, a certa
altura, numa curva que indicava um desvio de terra, antes do entroncamento da
rodovia, avistou um anódino mediano tentando resgatar alguma coisa com um
pedaço de papelão na terra barrosamente vermelha que parecia ter caído numa
poça de água suja.
Curioso, como todo repórter em
início de carreira, num primeiro momento achou comovente aquele ato de
gentileza misericordiana, e, por segundo, seu tino atiçado por alguma matéria
nova, fez com que parasse imediatamente o carro. Desceu e se dirigiu ao
desconhecido.
Gritou um ‘boa tarde, amigo’, à
introdução de puxar conversa. Em seguida, indagou pelo nome do pé-rapado. ‘Me
chamo Corbusier —, respondeu o interpelado, de cócoras —, não desviando as
vistas do que fazia. Logo que lhe foi dada a resposta, sem que o jornalista
pedisse, se ateve a figura a relatar de onde descendia a origem de seu
patronímico.
O solitário falava muito
vagarosamente, imbuído, porém, numa característica divertida. Revelou que seu
apelido batismal vinha de um famoso arquiteto urbanista e pintor nascido em La
Chaux-de-Fonds, na Suíça.
Sempre dentro de uma simplicidade
elegante, revelou ter conhecido toda a obra fantástica do poeta carioca Dante
Milano chegando a afirmar para o rapaz que o interceptara, que ‘a estética
prosal de Milano fez dele, enquanto viveu, um escritor que ‘não buscava os
espalhafatos da sua vida comum, tampouco gostava de se vangloriar ou declamar
seus versos publicamente’.
Seguiu com seu relato trazendo à baila que ‘Dante foi funcionário público na antiga Ilha das Cobras, servindo, anos depois, no Juizado de menores, na Praça Mauá, quando o Edifício ‘A Noite’, nem imaginava ser construído. Publicou a primeira antologia de poetas do modernismo e, só em 1940, é que veio trazer à público os seus melhores versos considerados, na época, tristes e melancólicos’.
Em seguida, ainda sem se desviar do que fazia, acrescentou:
— Sou, na verdade, meu caro amigo, um histrião por natureza, um bobo da corte, um saltimbanco meio fanático pelas coisas mais corriqueiras, como, por exemplo, tentar fazer com que este pobre e indefeso inseto himenóptero (conhecido como formiga) consiga continuar vivendo sem que a morte prematura lhe arranque o sabor do desapoio de continuar respirando...
O jornalista franziu o cenho:
— Formiga respira, meu caro senhor Corbusier?
— Sim. Se não respirasse, não teria vida. Seria um ser dissonanciado dos benfazejos do Grande e Majestoso Eloim.
O jornalista, apesar do seu alto saber das coisas, pareceu, meio perdido diante daquela palavra:
— Não entendi a sua citação à Eloim!
O esforço do homem para salvar a formiga resultou satisfatório.
Colocou–a longe de passos incertos que a pudessem esmagar, levantou o mais alto que pode o seu sincipúcio e mergulhou bem fundo o seu olhar no rosto interrogativo do mancebo:
— Não me disse seu nome.
— Carlos Tadeu. Sou jornalista.
— Jornalista? Interessante! E nunca ouviu falar de Eloim? Percebo, que o meu ilustre ‘escrevinhador’ não é muito chegado às Escrituras Sagradas.
— Por que diz que não sou?
— Se o prezado fosse um sério ledor, ou observador das coisas que estão a nossa frente e não vemos, saberia que esta palavrinha faz referência à alguns estilhaços do Pentateuco, notadamente na parte em que o autor se refere à Deus, dando-lhe o nome de Eloim. Lembrando ao prezado que certos críticos, mundo afora, até hoje, imagine, até hoje, costumam distinguir erroneamente dos fragmentos jeovistas quanto à era e à raiz.
— Já que tocou neste assunto, posso lhe fazer uma outra pergunta?
— Em frente. Sou todo ouvidos.
— O senhor leu o clássico Elogio à Loucura?
— De cabo a rabo. Desculpe. Do princípio ao fim...
— Estou pasmo!
— Na verdade, o nome certo desta obra, se me permite uma pequena correção, é Elogio da Loucura. Livro raro, porém, ainda encontrável em sebos e antiquários.
Fez uma breve pausa e logo a seguir, continuou:
— Foi escrita pelo holandês Erasmo de Rotterdam, ou Roterdão (Roterdão, é a cidade onde ele nasceu, daí seu nome ligado ao vilarejo) na qual seu autor criticava satiricamente as diversas profissões e, principalmente o clero alemão, clero este, bem entendido, anterior à reforma Religiosa de sua época...
Terminada a explanação acrescentou:
—... Creio, grosso modo falando, esse trabalho de Rotterdam é do tempo em que os malucos de plantão juravam, de pés juntos, que os monstros Endríacos habitavam a terra...
— O senhor falou em monstros Endríacos?
— Perfeitamente. Em dias atuais, estes seres fabulosos ainda existem por ai, aos borbotões. Entretanto, fazem parte de uma outra mitologia chegada recente, e aparecem com outros nomes mais popularescos.
— E quais seriam?
— Estupradores, violadores de crianças, defloradores de menores incapazes e mulheres castas. São os pedófilos, os tarados, os maníacos, enfim... A evolução dos Endríacos de ontem... Com outra roupagem e nomenclatura mais apropriada aos tempos hediondos em que vivemos.
Em entendimento definitivo à sua conclusão, completou:
— A feridade embutida neste inventário, ou se preferir, nesta lista, deixa cristalinalizado a visão machucadora, a chaga aberta, a ulceração necrosada se dimensionando de forma quase abissal.
O jovem jornalista ficou branco e perdido, como uma folha de papel A4 saído, às pressas, de uma resma:
— Entendo!
— Se me permite, caro jovem, lhe darei um conselho. Siga seu caminho, sempre de cabeça erguida. Trilhe os passos de Goethe. Goethe a meu entender, é ainda hoje, um dos maiores gênios da humanidade. Acredito que já tenha ouvido falar dele...
E esclareceu, antes que o repórter dissesse alguma coisa, corroborando as suas palavras e ensinando que:
— Goethe, meu rapaz, estudou em Leipzig e Estrasburgo, terminando o curso de advogado. Sua vida, meu caro garoto (desculpe o modo de tratamento), se fez tão intensa e maravilhosa, como a sua obra: ele conheceu a glória, o poder e a fortuna. Viveu amores, desfrutou benefícios e viagens. Tudo girou em torno de sua passagem pela Terra engalanando não só a sua vida pessoal, como, igualmente, o tornou um inconfundível escritor de prestígio universal...
O jornalista ficou, mais uma vez, sem palavras. Por fim:
— Meu caro amigo Corbusier —, obrigado pelos conselhos e também pelas lições de vida e de conhecimento que me ensinou. Sinceramente, gostaria de poder vê-lo de novo, se me permite. Onde mora, o que faz, onde posso encontrá-lo numa outra oportunidade para novos bate-papos e troca de informações?
Quando o jornalista se virou para
voltar do seu carro com o celular, a figura do ermitão que se dizia chamar
Corbusier simplesmente havia desaparecido misteriosamente, como se, num
repente, tivesse sido tragado pela poça de água barrenta onde a inerme figura
da formiguinha se debatia, quase embalde e sem forças...
Título e Texto: Aparecido Raimundo
de Souza, de São Luiz do Maranhão. 8-12-2010
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