Um liberal de verdade jamais se colocará como o detentor da palavra final sobre assuntos controversos
Rodrigo Constantino
Um colunista da Folha
de S. Paulo, que se diz liberal, escreveu nesta semana um artigo
questionando a quem interessa a liberdade de expressão irrestrita. Para ele,
quando uma opinião coloca em risco outros direitos, é evidente que ela deve ser
tolhida. Ele defende a liberdade ampla, mas… e eu sempre me interesso mais pelo
que vem depois do “mas”. No caso, a “liberdade de expressão é um valor
inegociável, mas é preciso impor limites”.
Claro que ele usou a pandemia
como exemplo. Para o autor, notícias falsas tiraram vidas. Quem não concordou
totalmente com a receita draconiana e autoritária de isolamento social, uso
obrigatório de máscaras e passaporte vacinal colocou vidas em perigo, segundo
nosso liberal. Eis como ele conclui: “Apenas o que defende o bem comum, que
luta contra injustiças, que se pauta pelo rigor da ciência, que acompanha a
marcha da História, deve ter espaço. Mentira e injustiça não têm espaço numa
sociedade democrática. Fora isso, a liberdade de expressão deve ser
irrestrita”.
Bem, está claro que ele não é
liberal de verdade, mas, sim, um esquerdista autoritário. Aliás, ele defende
todas as demais pautas “progressistas”. No caso da liberdade de expressão,
talvez o valor mais caro ao liberalismo junto da propriedade privada, o colunista
bate num espantalho. Ninguém, ou quase ninguém, defende uma liberdade
totalmente irrestrita. Incitar ódio e violência, pregar ataques físicos a
terceiros ou fazer apologia ao crime, por exemplo, são pontos que liberais
aceitam como passíveis de algum controle. E já existem punições previstas para
injúria, calúnia e difamação.
Mas não é disso que ele fala.
O que o “liberal” deseja é impor censura em nome do combate às fake
news e ao “negacionismo”, ou seja, trata-se de uma visão extremamente
arrogante e autoritária que delega a um clubinho o poder de determinar o que é
a verdade científica e o que é mentira perigosa, que deve ser banida do debate.
Nesta pandemia, ficou escancarada essa postura arrogante e autoritária de muita
gente, inclusive alguns que se dizem liberais ou mesmo conservadores.
A ciência nasce da dúvida, da pergunta, enquanto essa turma tentou
impor dogmas e interditar o debate
E, para piorar, a tentativa de
monopolizar a fala em nome da ciência se mostrou um fiasco. Estudos posteriores
sérios questionaram a eficácia do lockdown, vendido como panaceia.
As máscaras não foram capazes de impedir a rápida disseminação do vírus. E até
as vacinas passaram a ser colocadas em xeque quando inúmeras pessoas
“imunizadas” contraíram a doença, e em muitos casos foram hospitalizadas ou
mesmo a óbito. Muita promessa falsa, pouca ciência de verdade.
E é aqui que mora o cerne da questão: o liberal de fato parte de uma postura de humildade. A ciência nasce da dúvida, da pergunta, enquanto essa turma arrogante tentou impor dogmas e calar os céticos, interditar o debate, punir os dissidentes e “hereges”, tratados como “negacionistas”, um termo religioso, não científico. Ao depender de gente como esse colunista “liberal”, médicos renomados e cientistas sérios, com um histórico respeitável na área e um conhecimento infinitamente maior do que o dele nos assuntos, deveriam pagar com o ostracismo social por suas dúvidas ou contrapontos.
“O liberal é humilde.
Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem
certeza é que a incerteza requer a liberdade, para que a verdade seja
descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O
socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente
compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência — ou
seja, sua ignorância e arrogância — aos seus concidadãos.” A fala de Raymond
Aron defende com precisão o abismo entre a postura humilde liberal e a
arrogância dos planejadores sociais.
Podemos resgatar também o que
outro liberal famoso pensava sobre a liberdade de expressão. John Stuart Mill
flertou com ideias “progressistas”, mas nessa área defendeu como poucos o
indivíduo. Eis o que ele tinha a dizer sobre o assunto: “Se todos os homens
menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de
opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta
única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade. Se a
opinião é correta, privam-nos da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se
errada, perdem, o que importa em benefício quase tão grande, a percepção mais
clara da verdade, produzida por sua colisão com o erro. Todo silêncio que se
impõe à discussão equivale à presunção de infalibilidade. Há uma enorme diferença
entre presumir uma opinião como verdadeira porque, apesar de todas as
oportunidades para contestá-la, ela não foi refutada e pressupor sua verdade
com o propósito de não permitir sua refutação”.
Ele acrescentou: “O único modo
pelo qual é possível a um ser humano tentar aproximar-se de um conhecimento
completo acerca de um assunto é ouvindo o que podem dizer sobre isso pessoas de
grande variedade de opiniões, e estudando todos os aspectos em que o podem
considerar os espíritos de todas as naturezas. O hábito constante de corrigir e
completar a própria opinião cotejando-a com a de outros, longe de gerar dúvidas
e hesitações ao pô-la em prática, constitui o único fundamento estável para que
nela se tenha justa confiança. A verdade de uma opinião faz parte de sua
utilidade. Se quiséssemos saber se é ou não desejável crer numa proposição,
seria possível excluir a consideração sobre ser ou não verdadeira? Na opinião
não dos maus, mas dos melhores, nenhuma crença contrária à verdade pode ser
realmente útil”.
Em outra passagem, Mill volta
a atacar os censores: “A história está repleta de exemplos de verdades
silenciadas pela perseguição. A perseguição sempre triunfou, salvo quando os
heréticos formavam um partido demasiado forte para que os perseguissem efetivamente.
É um exemplo de sentimentalidade ociosa supor que a verdade, meramente por ser
verdade, possua o poder inerente, negado ao erro, de prevalecer contra o
calabouço e o cadafalso. A real vantagem da verdade consiste em que, quando uma
opinião é verdadeira, pode-se extingui-la uma, duas ou inúmeras vezes, mas ao
longo dos anos se encontrarão pessoas que tornem a descobri-la, até que uma de
suas reaparições ocorra numa época em que, graças a condições favoráveis,
escapa à perseguição, avançando de modo tal que resista a todas as tentativas
subsequentes de suprimi-la”.
Por fim, Mill diz: “Ninguém
pode ser um grande pensador se não reconhece que, como pensador, seu primeiro
dever consiste em seguir seu intelecto em todas as conclusões a que o possa
conduzir. Onde houver uma convenção tácita de que não se devem contestar os
princípios, onde se considerar encerrada a discussão acerca das grandes
questões que podem ocupar a humanidade, não podemos esperar encontrar essa
escala geralmente alta de atividade mental que tornou tão notáveis certos
períodos da história”.
Resgato mais um liberal
renomado, e no campo da ciência, para concluir. Falo de Sir Karl Popper. O
conhecimento humano objetivo é possível, e não devemos cair no relativismo
cínico. Conhecimento é a busca pela verdade, a busca de teorias explanatórias,
objetivamente verdadeiras. Mas não é a busca por certeza absoluta. Entender que
errar é humano é reconhecer que devemos lutar incessantemente contra o erro,
mas que não podemos eliminá-lo totalmente. Como diz Popper, “mesmo com o maior
cuidado, nunca podemos estar totalmente certos de que não estejamos cometendo
um erro”. Essa distinção entre verdade e certeza é fundamental segundo Popper,
pois vale a pena sempre buscarmos a verdade, mas devemos fazê-lo principalmente
buscando erros, para corrigi-los.
Por isso o método científico é
o método crítico, o método da “busca por erros e da eliminação de erros a
serviço da busca da verdade, a serviço da verdade”. Alguns acusaram Popper de
relativista por conta dessa postura, mas ele explica isso com base nessa
confusão entre verdade e certeza, e é enfático ao recusar tal rótulo: “O
relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais; é uma traição à razão, e à
humanidade”. Ser humilde do ponto de vista epistemológico não é o mesmo que ser
um relativista.
Agora vamos comparar essa
postura liberal com aquela típica de seitas dogmáticas, em que a “Verdade” já
foi descoberta. Nesses casos, não há espaço para erros, para divergências
saudáveis e construtivas, para evolução. Afinal, tudo já foi respondido, e as
crenças são tidas como infalíveis. Alguém que está certo mais de 50% do tempo
já pode se vangloriar de sua inteligência, mas o que dizer de alguém que “está
certo” 100% do tempo? Nem o maior gênio de todos. Logo, só mesmo um fanático ou
embusteiro adota esse tipo de postura iliberal e arrogante.
Não restam dúvidas de que um
liberal de verdade adotará postura humilde diante dos temas polêmicos e jamais
se colocará como o detentor da palavra final sobre assuntos controversos,
buscando silenciar críticos ou céticos.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, nº 98, 4-2-2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-