terça-feira, 9 de agosto de 2022

[Estórias da Aviação] Uma estrela na cauda – Sobrevoando o Saara

José Américo

O Boeing 707 da Varig flertava com o Deserto do Saara – o areal sem fim –, num bem-vindo céu desanuviado, deslizando rumo a Roma, vindo do Rio de Janeiro: ostentava um octagrama branco e preto, inserido num círculo azul justaposto no alto da cauda. Eu observava a face do meu instrutor, o comandante do voo, vincada por rugas ao redor dos olhos. Um moreno alto e forte, embora os ombros levemente arqueados.

Agradecendo por estar ao lado de alguém tão experiente, anotava as palavras dele mentalmente. Versavam sobre a arte de voar e também dos acasos que levam às falhas: "Cuide para jamais errar por indisciplina", disse ele, "do descaso os aviões não gostam" – dizia ele.

Lá embaixo, o deserto, que impressionava pela grandeza, seduzia-me por feitiçarias. "Este então é o Saara", murmurei. O deserto, um ancião a nos observar em profundo silêncio, aceitara que o sobrevoássemos.

A primeira vez que entrei num avião foi num barulhento e gracioso DC3, também da Varig, com destino à Santo Ângelo das Missões no Rio Grande do Sul. Bastou decolar para, olhando à minha volta, estarrecer-me com estranhos fenômenos. Do lado externo estava o mais incrível: as nuvens contrariavam o nosso deslocamento ao deslizarem para trás. Depois, assustei-me com a palidez da minha mãe - unida em corpo e alma ao rosário dela -, em preces intermináveis. Por fim, os chicletes de menta em uma caixinha amarela e o algodão ajustado em meus ouvidos por um tripulante.

Por tal interessante início, a aviação fundia-se ao meu sangue em doses homeopáticas, ao jeito das grandes descobertas. Simpatizo com a ideia de que algo sobrenatural, invisível, possa ter atiçado o meu gosto aeronáutico, cuidando para não enxotar a paixão nascente.

Talvez essa invisibilidade tenha se sentado ao meu lado, no DC3 da Varig, para convencer-me das belezas dos aviões e da excelência dos ares altos. Sem dúvida, compromissava-me com essa atividade incrível.

Lembro de uma foto em preto e branco, na qual aparece o meu pai à frente de um CAP4 - aeronave básica de treinamento - ao final dos anos quarenta, no Aeroclube de São Luiz Gonzaga, RS. Ele aparece elegante, trajando um terno cinza, camisa branca, gravata, e óculos Ray Ban Aviator (acredito que fossem dessa consagrada marca, pois tinha bom gosto). Percebi a postura dos definidos pelos ares, dos escolhidos para surfarem as nuvens, os ventos e os 360° dos rumos magnéticos. Uma foto interrogativa e elo para as respostas definitivas.

Título, Imagem e Texto: José Américo, 7-8-2022

Anteriores: 
Rick Nelson comprou um avião CHEIO de problemas 
Desmitificando o tal do "glamour" 
O Brasil aéreo para principiantes 
De Fortaleza a Uruguaiana, simplesmente inesquecível 
O navio do desenho animado 

Um comentário:

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-