Aparecido Raimundo de Souza
Quero que compreendam,
apesar da minha aparência, muito me alegro (sim, isso mesmo, muito me alegro)
com a tristeza e a desgraça das pessoas. Como assim, “me alegro”? Tal coisa é
possível?! Eu explico: vamos ver a Capela como um todo, indistintamente. Vou me
descrever e situar entre as pessoas que orbitam ao meu redor. A Capela
Mortuária é um local solitário, triste e impregnado de lágrimas e lembranças
daqueles “mais chegados” que vieram dar o último adeus à uma personalidade
querida que o Pai Maior chamou para morar junto com Ele lá no distante
intransponível. Em face desse particular, eu me regozijo porque é nessas horas
que as pessoas (as mais soberbas e de narizes em pé) se lembram que o outro
lado sombrio e misterioso existe. Ninguém aparece por aqui para me dar bom dia.
Ninguém sequer vislumbra que eu passo os dias dentro de um cemitério.
Sei que a morte é uma perda dolorida e irreparável. Um elo que as pessoas não gostariam jamais de ver se romper e sentir essa contristação se estraçalhando na própria pele. Ainda mais quando o que vai viajar é um personagem querido e admirado por todos, com uma legião imensa de amigos e admiradores. Todavia, não fosse a minha presença (ainda que para alguns “macabra”), acredito que ninguém daria às caras só para ver se eu ainda estou no mesmo lugar. Me alegro, pois, porque quando sei que vai acontecer um velório, eu me regozijo. Nessa hora, vejo gente de toda espécie. Percebo a algazarra das crianças correndo, gritando, festejando a alegria da vida plena, e isso me tira do chão, aviva o meu “eu” interior. Me perdoem por dizer certas coisas, porém, se eu não existisse, se não houvesse uma Capela Mortuária, parem e reflitam, meus amigos e amigas, não seria realizado aquele rito fúnebre, menos ainda o derradeiro tchau ao defunto.
Ele ficaria sem
significado algum em exposição solitária, ou, no pior dos mundos, simplesmente
não se alegraria em rever, pela última vez, as pessoas que faziam parte do seu
dia a dia. Vamos aproveitar o ensejo e entender a minha significância pelo
outro lado da moeda. É aqui nas minhas dependências que as pessoas (ainda que
magoadas) se respeitam, trocam olhares amedrontados e, no fim, diante do
inevitável, se abraçam, se beijam, trocam palavras carinhosas e, às vezes, até
se perdoam. Aqui é onde todos prestam reverência, conforto, solidariedade, tudo
num pacote destinado a proporcionar um elo de contemplação em harmonia diante
da austeridade do adeus de uma pessoa querida. Em muitas culturas, eu
desempenho um papel crucial no centro geográfico do luto, oferecendo um
ambiente onde a comunidade pode se reunir para prestar suas últimas homenagens
e refletir sobre a vida que o “de cujus” viveu enquanto se fazia entre nós.
Esses espaços, meus
prezados, são projetados para acolher os enlutados com dignidade e serenidade.
A minha arquitetura, se pararem para observar com mais acuidade, é
frequentemente caracterizada por sua simplicidade e elegância, buscando criar
uma atmosfera de ataraxia que facilite a introspecção e o consolo. A iluminação
é suave e o uso de cores neutras ajuda a transmitir uma vibração de leveza,
enquanto os elementos decorativos, como flores e símbolos religiosos, adicionam
um toque de deferência e veneração à lembrança daquele que embarcará na viagem
sem volta. Além da sua função estética e funcional, eu, Capela Mortuária, me
vejo como uma reclusão momentânea de profundo simbolismo. Sou, sem dúvida
alguma, o ponto de encontro onde se materializa a aquiescência coletiva e se
compartilham memórias, onde amigos e familiares podem se unir em um ato de
solidariedade e empatia.
É um recinto como
qualquer outro, onde os envolvidos comem, bebem, contam piadas, vigiam
atentamente a viúva, ou as filhas adolescentes, falam de aconchegos, e o
silêncio reverente permite que os sentimentos da perda sejam expressos de todas
as formas conhecidas. Cada irmã minha espalhada mundo afora pode refletir (e de
fato reflete) a diversidade cultural e religiosa da comunidade em que se
encontra. Em algumas tradições, meu enclausuro é adornado com ícones e imagens
específicas, enquanto em outras, a simplicidade bucólica e a ausência de
símbolos são preferidas para permitir uma abordagem mais universal do luto.
Esses detalhes, embora variados, têm o objetivo comum, sempre, de honrar a
memória do extinto e proporcionar, sobretudo, um ambiente neutro que
solidifique o assediamento irreversível de despedida. O meu papel, como Capela
Mortuária, vai além de um simples local físico.
Por derradeiro, considero
esse refúgio como um ninho acolhedor único, agradável e sofisticado, que ajuda
a transformar o que se chama de “luto pesado” em uma experiência compartilhada
e significativa. Aqui, nas minhas entranhas, os rituais de despedida são
executados com o cuidado de preservar a dignidade do “de cujus” e apoiar os
enlutados em sua jornada para a aceitação e a cura da alma frangalhada. Em
resumo, eu, a Capela Mortuária, me vejo e me sinto como um teto alvissareiro de
amplidão profunda e, logicamente, de importância emocional e cultural. Não sou
apenas um lugar comum onde se realizam cerimônias funestas. Em absoluto. Me
vejo, acima das aparências, como um habitat que proporciona a reflexão para
acalantar comenos inesquecíveis e de elevada melancolia. Ao oferecer este mimo
de serenidade e comunhão, eu me engrandeço – acreditem – e me sinto alegre e
realizada. Por mais que falem de mim, tenho a consciência objetiva de que
desempenho um papel crucial na celebração da vida e na facilitação do trajeto
envolvido no embarque do seu parente amado para os confins do Além-túmulo. Em
vista de tudo o que eu disse, por favor, não me desprezem. Sou, a luz da
verdade, uma espécie de mal necessário.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, 9-8-2024
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