Aparecido Raimundo de Souza
EUTANÁSIO BOA MORTE era o que se poderia chamar, sem sombra de dúvidas, de vendedor nato. Seria capaz de negociar, num abrir e piscar de olhos, a própria mãe e o faria pelo preço de um relógio de pulso, desses bem vagabundos, ou barganharia a irmã mais nova pelo equivalente a uma botija de gás vazia. Trocava, permutava, emprestava, doava, liquidava; enfim, o que pintasse entrava no jogo, e o que adviesse dessas transações ia direto para os seus bolsos, como lucro.
Alguns dias atrás, na Praça da Sé, no coração de São Paulo, aos pés das escadarias que acessam à Catedral, conjuntamente com a estação do Metrô, assisti ao sujeito empurrar vários aparelhos de rádio importados (da zona franca de Manaus) para um bando de coitados. Segundo ele, os tais aparelhos foram fabricados nos "States", coisa de primeiro mundo. "Tecnologia de ponta", bradava alto e em bom som, para que todos que passassem dessem uma paradinha, ainda que a título de curiosidade.
Para participar das demonstrações, o público formava uma espécie de ciranda em derredor de sua banquinha improvisada. Os radinhos possuíam vinte e duas faixas de ondas, além das conhecidas ondas curtas, médias e ligeiras. Também transmitiam em quarenta e sessenta metros, sem contar que traziam um dispositivo na parte traseira que permitia mudar as faixas de AM para FM e, consequentemente, de PM para TVM. Os compradores se mostravam realmente entusiasmados e eufóricos.
Via-se tudo isso na farta excitação da massa comprimida pelos rostos alegres, pela atenção que dispensavam e pelos olhos arregalados. Alguns, com certeza, se tivessem dinheiro, levariam pelo menos uma meia dúzia para presentearem os amigos mais chegados, familiares e até as namoradas.
De repente, apareceu um infeliz com aparência de roceiro lá do mato. Passou, reparou, bisbilhotou, foi lá, voltou cá, tornou a ir e a dar meia volta. Finalmente, criou coragem e se aproximou, disposto:
— Moço, eu sei que existe rádio com até vinte e uma faixas. Esse seu, pelo que entendi, pega duas além das conhecidas. Quais são essas preciosidades?
Eutanásio Boa Morte, sempre de bom humor e sem perder o controle ou a esportiva, explicava com a maior paciência deste mundo:
— Essas faixas são inéditas. É a chamada "onda de além-mar" e a outra, "após barreira do som." Aqui o senhor encontrará um botãozinho -, como pode ver -, amarelo. Me dá aqui o seu dedinho indicador, por favor. Pronto! Com ele, o senhor conectará o estrangeiro...
— Meu amigo, não seja essa a sua preocupação maior. Este produto, graças a um chip ultramoderno, possui um decodificador porreta que traduz qualquer idioma existente na face da Terra ou que o cidadão vier a imaginar para o português. Se o prezado ligar num programa francês, por exemplo, a outra faixa, ou seja, a "após barreira do som," e o cara estiver falando francês, claro, a tradução virá em seguida, no belo e surrado português, e o melhor de tudo, em tempo real.
Eutanásio continuava enumerando as comodidades que o aparelho poderia proporcionar. Parecia, na verdade, um papagaio bêbado, mal conseguindo se equilibrar com a língua solta e sem controle. Falava pelos cotovelos, tinha resposta para todas as perguntas e jamais caía em contradição. De cada dez pessoas que cruzavam a praça, fosse entrando ou saindo da estação do Metrô, pelo menos sete paravam para apreciar as fantásticas funções do tal radinho.
— "Coisa de outro planeta."
No geral, cinco acabavam metendo as mãos nos bolsos.
Detalhe: nenhuma loja na cidade comercializava. Só ele detinha a chancela com a "exclusividade direta do fabricante." Sem mencionar o certificado de garantia, com validade até a Copa do Mundo de 2050. Os radinhos do Eutanásio possuíam dezenas de outras funções importantes, além da conversão da pilha para luz. Com essa e outras facilidades, o elemento poderia dialogar diretamente com o locutor de uma emissora de sua preferência, pedir uma música sem usar o telefone celular, fazer vídeo chamada ou, em programas esportivos ao vivo, dar palpites para os jogos de futebol via WhatsApp e ainda ganhar prêmios pela participação.
Enquanto estive a observar o Eutanásio, ele vendeu uns trinta aparelhos, senão mais. Para agradar aos clientes, o jovem acondicionava tudo numa caixinha, embrulhava direitinho e ainda dava, de lambuja, seis pilhas zeradas. Qualquer protesto surgido, bastava botar a boca no trombone que ele, "apreciador das coisas honestas, jamais aplicaria golpes em quem quer que fosse, e se houvesse reclamações, prontamente substituiria a mercadoria ou, se o cliente quisesse, devolveria o valor correspondente e fim de papo."
Seu lema, uma espécie de jargão do tempo em que se pegava moscas com açúcar, chamava a atenção, infundia respeito e passava credibilidade: "Cliente satisfeito ou o dinheiro de volta, garantido, tudo justo e perfeito."
Pelo tempo em que circulei ali pelas imediações da Praça da Sé, nos dias subsequentes, nem sombra do paradeiro do Eutanásio. Topei, contudo, com uma pá de gente ensandecida (os receptores mudos, em sacolas de supermercados), querendo reaver o rico dinheirinho empatado. Sem falar naqueles mais incontrolados que objetivavam arrancar o coração da criatura e assar na ponta de um espeto de churrasco.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 6-8-2024
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