Helena Matos
Portugal é um país em que o poder é naturalmente de
esquerda e em que a não esquerda tem a função de, como oposição, mostrar que a
esquerda é democrática
O propósito da deputada Rita
Rato (a mesma que ainda não teve tempo para se informar sobre o gulag) de
sanear os bustos de alguns presidentes da República veio recordar-nos que há em
Portugal quem se considere dono da História. E que nessa qualidade não só se
ache no direito de definir quem e o quê pode ou não ser recordado e em que
estatuto mas que, não menos relevante, tem tido a capacidade de tornar normal o
absurdo: no parlamento português, admiradores de Estaline passam por
combatentes da liberdade e um partido que não se sabe quantos votos vale, os
Verdes, tem um grupo parlamentar.
Isto para não nos alongarmos
mais sobre a estranha patologia que leva a parte mais à esquerda do nosso
hemiciclo a defender estrenuamente hoje aquilo que atacou violentamente ontem.
E invariavelmente se a esquerda defende algo é porque lhe pode aplicar o termo
“esquerda” e se ataca alguma coisa é porque essa coisa, facto, situação ou o
que seja não é nesse momento de esquerda.
Veja-se o caso da
homossexualidade sobre a qual o PCP tem hoje um entendimento oficial muito
diferente do que tinha no ano de 1961 quando, para expulsar o seu dirigente
Júlio Fogaça, invocou os seus comportamentos homossexuais. Dir-me-ão, quiçá a
remoer interiormente que era escusado falar de tal coisa, que se estava em
1961. Pois estava e aí é que está o cerne da questão: os donos da História
aplicam a todos os restantes mortais uma espécie de grelha revisionista que
leva a que de D. Afonso Henriques aos participantes no Festival da Canção os
protagonistas sejam avaliadas positiva ou negativamente à luz do progressismo
vigente: seria feminista? Praticava assédio? Pode dizer-se anticolonialista? Seria
racista?… Acreditem: tivesse Fogaça sido ideologicamente próximo das bancadas à
direita e o seu nome seria não só muito mais evocado nestes tempos como muita
exigência de pedidos de desculpa se teria feito ouvir.
E aqui chegamos à outra zona
de domínio da esquerda: a agenda e a respectiva linguagem. Só que nesta
matéria, e ao contrário do que acontece na História, o absurdo está bem e
recomenda-se. Por outras palavras, os desígnios censórios em relação ao passado
do PCP, Verdes e BE, devidamente acolitados por alguns deputados do PS (com
Jorge Lacão a destacar-se pelo radicalismo), já enfrentam resistência. Mas
assim que se passa para o presente as palavras e os argumentos continuam como
há quarenta anos: continua a discutir-se, ou melhor dizendo continua a ter de
se confirmar como desfecho inevitável para qualquer mudança, o que a esquerda
previa e cientificamente sabe que vai acontecer: antigamente era a sociedade
sem classes, agora é a sociedade sem sexos. A criminalização do piropo é a mais
recente conquista nessa luta pelo novo homem novo. (Fonte bem informada garante
que o anterior homem novo morreu de síncope em Outubro de 1989 quando ouviu os
manifestantes gritar em Leipzig para as autoridades comunistas “Nós somos o
povo!” Mas há também quem diga que sobreviveu e morreu sim soterrado um mês
depois em Berlim quando milhares de cidadãos da então RDA experimentaram passar
para o outro lado do Muro de Berlim).
Obviamente continua a
acreditar-se que os ricos podem pagar a crise, que são suficientemente ricos
para isso e que tudo correria no melhor dos mundos se o fizessem. (Num sinal
inequívoco do nosso empobrecimento, os ricos já não são os Mellos nem os
Champalimaud mas sim a Alemanha.) Afirmar o contrário e questionar a
razoabilidade de tal procedimento implica no mínimo ficar-se candidato a um
prémio por impopularidade e alienar boa parte das hipóteses de fazer carreira
política.
Mas é sobretudo quando
chegamos às questões em que os direitos e o dinheiro para os garantir se cruzam
que se torna mais evidente que o imaginário e o discurso vigentes continuam no
mesmo sítio em que a esquerda os colocou há décadas: questionar a
sustentabilidade da segurança social é estar a favor do lobby disto ou daquilo.
Defender a racionalidade nos gastos do SNS que, note-se, serão sempre
crescentes, dado o envelhecimento da população e a evolução da ciência médica,
leva quase a acusações de tentativa de homicídio: oficialmente cada um de nós
deveria viver a escassos metros de hospitais com todas as especialidades onde nos
farão sempre todos exames e mais algum sem esquecer o acesso a medicamentos
inovadores. Perguntar quanto tempo poderemos continuar a afectar recursos ao
SNS sem discutir que se têm de fazer escolhas é algo que levará à crucificação
mediática de qualquer político.
No caso do arrendamento,
proteger os inquilinos é sinónimo não da existência no mercado livre de casas
para arrendar mas sim de congelamento de rendas para os actuais inquilinos. Não
importa que esta política tenha tido os desastrosos resultados de todos
conhecidos: prédios de aluguer a cair no centro das cidades e periferias cheias
de jovens endividados para comprar casa. Menos importa que inúmeros comércios
pagassem rendas irrisórias em locais privilegiados. O que importa é repetir
expressões como “proteger os inquilinos” e dizer que a loja A e o café B não
podem desaparecer.
Considerar que o contribuinte
não pode ser obrigado a pagar os concertos mais as performances que não sei
quantos artistas querem fazer por esse país fora é estar a atacar a cultura.
Mesmo afirmar o óbvio como fez Isabel Jonet quando declarou: “Pior inimigo dos
desempregados são redes sociais”, “as pessoas ficam dias e dias inteiros
agarradas ao Facebook, a jogos e a amigos que não existem e vivem uma vida que
é uma total ilusão” leva a que logo os jornais escrevam “Isabel Jonet critica
desempregados que passam o tempo agarrados ao Facebook”. Escassos minutos
depois já as tricoteuses do twitter e do facebook, que da luta contra a pobreza
e a fome nada sabem, soltam as fúrias.
Podia continuar a dar exemplos
mas na verdade eles levam-nos invariavelmente ao mesmo sítio: um país em que o
poder é naturalmente de esquerda e em que a não esquerda tem a função de como
oposição mostrar que a esquerda é democrática. Note-se que em Portugal ninguém
se diz de direita. Logo aquilo que temos é uma definição do espaço político
sobrante não por aquilo que é mas sim por não ser de esquerda, atitude que per
si é vista como uma espécie de pecado original. Não admira portanto que ao não
se ser de esquerda imediatamente se acabe classificado como fascista,
capitalista, reacionário, neo-liberal… Afinal, da inteligência à honestidade.,
passando pela cultura e pela solidariedade, existe uma escala que coloca essas
qualidades no topo à esquerda. Quanto mais para a direita se caminha mais
ignorante e insensível se é. Se por acaso tal não sucede isso é a excepção que
confirma esta regra.
O problema da não esquerda em
Portugal é que não tem nome, não tem discurso, não marca a agenda e lá no
fundo, no dia em que as contas o permitirem, gostava mesmo era de ser
socialista.
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