sábado, 29 de dezembro de 2018

Acreditar no Pai Natal

João Pereira Coutinho

Parece que existe um consenso de que o populismo vem a caminho. São as aventuras “fora do sistema” de que fala Marcelo.
É a extrema-direita de que fala toda a gente, como se a dita cuja tivesse uma real existência. Não tem.
O que espanta é que as condições típicas para a emergência do populismo (ainda) não aterraram no quintal

A CRISE FINANCEIRA atirou Portugal para o tapete. Mas, ao contrário do que aconteceu noutras paragens, a crise não atirou os portugueses para os braços de partidos populistas, extremistas ou nacionalistas. Haverá quem discorde. E trate logo de acusar o Bloco (e o PCP) de representar esse papel de protesto e ruptura. Não creio – e por três razões. Primeira: durante a crise, as esquerdas limitaram-se a reclamar “direitos adquiridos”, não a reinventar uma nova ordem política ou social. Enquanto o Syriza incendiava Atenas, o Bloco e o PCP lutavam pelo subsídio de férias.

Segunda: nas eleições de 2015, nem o Bloco, nem o PCP tiveram a sorte grande nas urnas. A vitória, ainda que temporária, caiu no colo dos partidos da austeridade.

Por último, não é possível ser, ao mesmo tempo, um partido de protesto e um partido de governo, exceto na cabeça alucinada dos camaradas. E hoje?

Hoje, parece que existe um estranho consenso de que o populismo vem a caminho. São as aventuras “fora do sistema” de que fala Marcelo. É o “mau cheiro” de que fala Ferro Rodrigues. É a “extrema-direita” de que fala toda a gente, como se a dita cuja tivesse uma real existência entre nós.

Não tem. Aliás, o que espanta no meio da histeria é que as condições típicas para a emergência do populismo (ainda) não aterraram no quintal. Roger Eatwell e Matthew Goodwin, autores de um livro que já recomendei aqui (National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy) resumem essas condições em quatro Ds: distrust, destruction, deprivation e de-alignement.


Sim, existe desconfiança nos partidos e uma crença maioritária de que a voz lusitana não é ouvida nos grandes salões de Bruxelas (60% dos inquiridos no Euro barômetro de outubro). Mas não passa pela cabeça de ninguém, ou de quase ninguém, deixar a União Europeia e experimentar uma existência solitária como nos tempos da ditadura. De resto, sobre os três Ds seguintes, a destruição de uma identidade cultural não é problema que provoque insónias à nossa raça: longe dos fluxos migratórios e com séculos de convivência em cima, Angola pode já não ser nossa – mas Portugal ainda é. Claro que, em matéria de privação, continuamos pobres. Mas, apesar de tudo, estamos menos pobres e menos desiguais, embora o último estudo do INE revele uma situação dramática para a população mais envelhecida (e politicamente menos representada). É também por isso que, em matéria de desalinhamento partidário, Portugal continua o mesmo monólito que saiu das eleições de 1975 para a Constituinte. A Europa muda, há partidos que desaparecem, outros que despontam. Cá em casa, tudo como dantes, quartel-general em Abrantes. Até ver. A classe política reinante não se cala de falar dos perigos do populismo. Não porque acredite que ele esteja entre nós; mas porque é do seu interesse alimentar fantasmas para se enobrecer aos olhos do povaréu temente. Não é preciso. Pregar aos convertidos é um desperdício de energia.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, SÁBADO, nº 765, de 27 de dezembro de 2018 a 2 de janeiro de 2019

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