Carina Bratt
De repente, os seus olhos
ficaram mais distantes. Se apartaram de perto de mim, se arredaram, se
expandiram, fugiram para bem longe. Penso, mesmo, que me descartaram, me
excluíram como se eu fosse uma muda de roupas velhas da qual se cansou e parou
de usar.
O aceno, que veio de roldão,
foi doído, magoou, me causou um leque enorme de entristecimentos e melindres e,
claro, outro tanto de desolações e deprimências. Os seus olhos, que me diziam
em observações longas e meigas, mais que mil palavras bonitas, avassaladoras,
num instante fugaz se divorciaram dos meus.
Sob ângulos estranhos,
desacasalaram, seguindo solitários por caminhos opostos, contrariando toda uma
vida à dois, uma existência promissora, recheada e cheia de sonhos ainda não
realizados. Quimeras que vínhamos construindo de mãos dadas, no roçar cotidiano
dos corpos sintonizados no mesmo mormaço e no quentinho da cama companheira que
nos acolhia em abraços por tantos anos de noites seguidas pela presença
marcante da felicidade plena, beatitude
absoluta, atulhada por sua vez, de um gostar pegajoso que a cada segundo se
renovava dentro de nós como ondas do mar beijando as areias da praia.
Apesar disso, você se foi. Se
foi. Se desprendeu, se soltou das amarras, das cordas que nos retinham, dos elos
das correntes que nos colocavam sempre em direção aos mesmos horizontes. Com
isso, eu fiquei parada, estática, a contemplar o nada subversivo, o vazio
grotesco, o desconhecido gordo de nosso calor...
Retardei minhas horas ainda a
serem consumidas, me perpetuei ali, como uma árvore em final de vida, remoendo
as palavras frias e gélidas, as suas palavras congeladas e insensíveis que me
foram ditas assim, num instante nervoso e inflamado do adeus. Na verdade, do
seu adeus. Não do meu...
Nunca teria a coragem
suficiente de lhe dizer adeus, ou um vazio e desastroso até breve. Tampouco
hospedaria em seu coração, o regelado de um “estou indo embora, por isso, ou
por aquilo, não se preocupe, jamais voltarei. Vamos dar uma pausa”. No amor não
há pausas, desvios, desvão, linhas secundárias. Apenas um eco destoado, como
uma balada que chegou berrando, destroçando as ideias originais das canções
compostas por Chopin.
No amor, não tem essa de
“tempo”. Você com essa prematuridade esquálida da partida, criou, em derredor
de mim, não só de mim, de nós, uma friagem imensurável, uma invernia que se
quadruplicou a cada passo que deu em direção à distância que ficou mais
pulsante. Recordo que permaneci parada, acuada, olhando para o nada que se
transformou num tudo intransponível.
Ao sabor da desinquietação me vi prendida, pernas e
braços, alma e recôndito, trêmula, apavorada, posta para fora do meu mundinho
particular, desalojada, sem eira nem beira, banida, arredada, desviada,
varrida, afugentada do chão que pisava, escorraçada, abandonada ao infinito, tal como um avião sem piloto à
deriva, voando em câmera lenta num céu de brigadeiro e um oceano imenso de
nuvens brancas e insanas.
Meu Deus! Que situação
degradante, um afrontoso oprobrioso, quase abissal. Você se foi e eu fiquei ausente de mim...
Completamente fora do meu eixo, seminua de atitudes, notadamente do que
fazer.
Não me vejo mais florescendo,
não me sinto mais renascendo como uma rosa em botão que se abria sempre no
jardim do seu eu interior...
Faz tempo, não sou mais como
aquela menina cachoeira moça-mulher feita que se encharcava, que se saciava,
que se avolumava, quando me deitava. Quando nos amávamos. Virei tantas loucuras
mirando lugar nenhum...
Hoje, agora, nesse momento sou
corpo frágil, alma em desordem, esqueleto de ossos fracos. Por algum motivo
inexplicável, ainda em pé, talvez, não sei, evitando a minha derrocada final.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Salvador, na Bahia. 16-2-2020
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