Ultimamente fala-se muito de
violência. Pessoas eminentes, sábias e respeitáveis, se não incitam, antevêem
comportamentos populares de revolta e agressão. Estranhamente, apesar do muito
que se afirma, quase não se ouve dizer que a violência é uma coisa muito má,
sempre de repudiar. Considerando-nos um país civilizado e até democrático,
espanta a naturalidade com que tantas luminárias consideram o uso de métodos
bárbaros.
Como somos um país civilizado
e democrático, são poucos os que prometem às claras atacar e agredir. Por
enquanto, hipocritamente, os intelectuais limitam-se a prever atitudes alheias.
Não serão eles a bater, mas as forças populares, ficando-se na dúvida se as
apoiam, embora evidentemente as compreendam.
É claro que, perante a
terrível pressão a que a sociedade portuguesa está sujeita, seriam sempre
naturais reacções agressivas. Isso acontece em vários países da Europa, mas,
surpreendentemente, muito pouco em Portugal, apesar de a retórica das elites o
prever há anos. Provavelmente o nosso país é mais civilizado e democrático do
que se julga, hipótese que os nossos intelectuais nunca colocam. No fundo,
eles, que se consideram génios, sempre desprezaram o povo, mesmo quando o
lisonjeiam.
Alguns especialistas tentam
até abordar as razões para o paradoxo. Por que razão a violência, há tanto
tempo prevista, ainda não se realizou? Como nunca colocam a hipótese de estar
errados, deve haver causas estranhas para a paz social. Curiosamente, entre os
motivos invocados não aparece o mais óbvio: que a violência nada resolve e só
agrava. Com conflitos, a austeridade ficaria maior, não menor; a crise
aumentaria, não diminuiria; a situação seria mais grave, não menos. É
surpreendente que tantas eminências nunca tenham pensado nisto.
O motivo é que, realmente, a
generalidade da população parece mais a par dos contornos da crise do que
aqueles que falam nos media. Estes compreendem muito menos do que os cidadãos
comuns. Uma comparação ajuda a perceber.
Portugal está como um prédio a
arder. O incêndio é tão grande que foi preciso não só mobilizar os bombeiros
locais, mas pedir aos vizinhos que nos enviem os seus carros-cisterna. Há três
anos que se deita água no edifício para extinguir o fogo orçamental.
Naturalmente que, face à enxurrada, os habitantes vêm à janela protestar por a
água lhes estragar os apartamentos e dificultar a vida. Têm toda a razão. Haver
mangueiras a encharcar uma casa é muito estúpido; a não ser que ela esteja a
arder.
O povo entende bem a urgência,
pois as labaredas do despesismo público ameaçam há muito toda a estrutura
nacional. Mas a generalidade dos analistas nunca fala do incêndio, ou
considera-o menor. O único mal do País parecem ser os estragos dos jactos de
água na vida social, a qual, sem eles, parece que não teria sequer recessão. A
austeridade é sempre vista como artificial, nociva, imposta do exterior, como
se o fogo não existisse.
Os mais sofisticados admitem a
catástrofe, mas argumentam que as mangueiras deviam ser dirigidas à base das
chamas, não ao prédio. A austeridade era para cair naqueles que criaram o
défice. Isso é enorme ilusão. Antes de se chamar os bombeiros, em 2011, os
alarmes de incêndio tocaram durante muitos anos. Tantos que já ninguém lhes
dava atenção. Por isso o fogo alastrou a todos os andares. Os pensionistas
sabem que a segurança social é insustentável; os serviços públicos vivem com
prejuízos há décadas; funcionários, professores, médicos estão bem conscientes
dos excessos dos seus sistemas.
O problema português é claro
e, após décadas de ilusões, as alternativas são poucas. Num prédio a arder é
preciso apagar o fogo. Muito já se fez, mas o défice permanece. O rescaldo
ainda tarda. A única surpresa é que pessoas eminentes, sábias e respeitáveis
tenham tanta dificuldade em entender aquilo que o povo percebe facilmente. O
que não espanta se notarmos que, em geral, os comentadores nunca produziram
nada e raramente trabalharam. A vida deles nunca foi o País, mas a ilusão
mediática.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 02-12-2013
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