segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Violência e fogo

João César das Neves
Ultimamente fala-se muito de violência. Pessoas eminentes, sábias e respeitáveis, se não incitam, antevêem comportamentos populares de revolta e agressão. Estranhamente, apesar do muito que se afirma, quase não se ouve dizer que a violência é uma coisa muito má, sempre de repudiar. Considerando-nos um país civilizado e até democrático, espanta a naturalidade com que tantas luminárias consideram o uso de métodos bárbaros.


Como somos um país civilizado e democrático, são poucos os que prometem às claras atacar e agredir. Por enquanto, hipocritamente, os intelectuais limitam-se a prever atitudes alheias. Não serão eles a bater, mas as forças populares, ficando-se na dúvida se as apoiam, embora evidentemente as compreendam.

É claro que, perante a terrível pressão a que a sociedade portuguesa está sujeita, seriam sempre naturais reacções agressivas. Isso acontece em vários países da Europa, mas, surpreendentemente, muito pouco em Portugal, apesar de a retórica das elites o prever há anos. Provavelmente o nosso país é mais civilizado e democrático do que se julga, hipótese que os nossos intelectuais nunca colocam. No fundo, eles, que se consideram génios, sempre desprezaram o povo, mesmo quando o lisonjeiam.

Alguns especialistas tentam até abordar as razões para o paradoxo. Por que razão a violência, há tanto tempo prevista, ainda não se realizou? Como nunca colocam a hipótese de estar errados, deve haver causas estranhas para a paz social. Curiosamente, entre os motivos invocados não aparece o mais óbvio: que a violência nada resolve e só agrava. Com conflitos, a austeridade ficaria maior, não menor; a crise aumentaria, não diminuiria; a situação seria mais grave, não menos. É surpreendente que tantas eminências nunca tenham pensado nisto.

O motivo é que, realmente, a generalidade da população parece mais a par dos contornos da crise do que aqueles que falam nos media. Estes compreendem muito menos do que os cidadãos comuns. Uma comparação ajuda a perceber.
 
Portugal está como um prédio a arder. O incêndio é tão grande que foi preciso não só mobilizar os bombeiros locais, mas pedir aos vizinhos que nos enviem os seus carros-cisterna. Há três anos que se deita água no edifício para extinguir o fogo orçamental. Naturalmente que, face à enxurrada, os habitantes vêm à janela protestar por a água lhes estragar os apartamentos e dificultar a vida. Têm toda a razão. Haver mangueiras a encharcar uma casa é muito estúpido; a não ser que ela esteja a arder.

O povo entende bem a urgência, pois as labaredas do despesismo público ameaçam há muito toda a estrutura nacional. Mas a generalidade dos analistas nunca fala do incêndio, ou considera-o menor. O único mal do País parecem ser os estragos dos jactos de água na vida social, a qual, sem eles, parece que não teria sequer recessão. A austeridade é sempre vista como artificial, nociva, imposta do exterior, como se o fogo não existisse.

Os mais sofisticados admitem a catástrofe, mas argumentam que as mangueiras deviam ser dirigidas à base das chamas, não ao prédio. A austeridade era para cair naqueles que criaram o défice. Isso é enorme ilusão. Antes de se chamar os bombeiros, em 2011, os alarmes de incêndio tocaram durante muitos anos. Tantos que já ninguém lhes dava atenção. Por isso o fogo alastrou a todos os andares. Os pensionistas sabem que a segurança social é insustentável; os serviços públicos vivem com prejuízos há décadas; funcionários, professores, médicos estão bem conscientes dos excessos dos seus sistemas.

O problema português é claro e, após décadas de ilusões, as alternativas são poucas. Num prédio a arder é preciso apagar o fogo. Muito já se fez, mas o défice permanece. O rescaldo ainda tarda. A única surpresa é que pessoas eminentes, sábias e respeitáveis tenham tanta dificuldade em entender aquilo que o povo percebe facilmente. O que não espanta se notarmos que, em geral, os comentadores nunca produziram nada e raramente trabalharam. A vida deles nunca foi o País, mas a ilusão mediática.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 02-12-2013

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