Não é de estranhar que surjam por aí muitas
vozes, que não se limitam às dos maluquinhos do costume, a decretarem que, em
democracia, o combate ao aquecimento global nunca terá sucesso.
Às vezes, e contrariamente ao
que se esperaria, há uma estranha superficialidade nas ideias obsessivas, uma
espécie de falta de convicção na crença que se detecta aqui e ali. Parece
contraditório? Parece, mas talvez no fundo não seja. Tomemos o exemplo de duas ideias obsessivas muito comuns hoje em
dia:
o planeta está a ser destruído por um
aquecimento global motivado por
razões exclusivamente antropogénicas;
e o fascismo começa a mostrar a sua feia cara um pouco por todo o lado, tomando formas que cada vez
mais lembram os anos trinta do século passado. Deve ser difícil encontrar
ideias que possam competir com estas em matéria de unanimidade mediática e que
se apresentem em tão elevado grau como verdades indiscutíveis.
Não vou aqui obviamente aqui
esmiuçar essas crenças, que até podem ser ambas verdadeiras. Limito-me a
constatar que elas são obsessivas: não saem da cabeça de muita gente e
oferecem, cada uma à sua maneira, um quadro geral para cada um dizer o que diz.
Sobretudo, permitem falar com entusiasmo, um entusiasmo que não aparenta por um
só momento duvidar da sua própria justeza e que julga ver nelas a explicação
exaustiva e coerentíssima de todos os males do mundo, presentes e a vir.
Uma figura, de resto, reúne em
si o objeto de detestação das duas crenças: Donald Trump, é claro. E só Deus
sabe como uma imagem dá jeito para reforçar as crenças. Põe carne sobre os
ossos, dá-lhes vida, fá-las presentes para lá de qualquer dúvida que possa
surgir, torna-as aparentemente evidentes. Sob esse ponto de vista, pelo menos,
há que admitir que Trump foi uma generosa dádiva para o mundo. Leiam um jornal,
vejam uma televisão, ouçam rádio – e digam-me se não é assim.
E no entanto… O que surpreende
com estas ideias obsessivas admiravelmente coerentes e de uma constância
irrepreensível são os seus momentos de fragilidade. Não é que o entusiasmo
alguma vez soçobre, que a intensidade da crença perca ímpeto. Isso não. São
antes pequenos detalhes que indicam a superficialidade da crença, isto é, que,
apesar da sua formidável energia, não estamos na presença de uma verdadeira
convicção, fundada no conhecimento das razões que nos fazem acreditar.
E que dizer do último episódio
relativo às alterações climáticas? O presidente Macron, supremo paladino das
mais rigorosas medidas contra as causas humanas do aquecimento global, decidiu,
em toda a coerência, aumentar o imposto sobre os combustíveis, com a mesma
energia (e menos prudência) com que Marcelo, mais modesto, combate os
eucaliptos. Logo um extenso movimento popular, com imenso apoio entre os franceses,
pôs Paris e outras cidades a ferro e fogo.
Os franceses, é verdade,
mantêm uma velha tradição de gosto pela confrontação física nas manifestações,
que seria injusto reduzir aos chamados jovens das cités, os “territórios
perdidos da República”.
Que fez então Macron, seguindo
uma também velha tradição francesa? Suspendeu, é claro, o aumento de impostos.
Esses impostos, recordo, que eram imprescindíveis para combater as alterações
climáticas (que, diga-se de passagem, boa parte dos franceses que se manifestaram
ou apoiaram os “coletes amarelos” devem declarar o principal flagelo dos nossos
tempos). Mais uma vez, não é que a ideia obsessiva tenha perdido o seu ímpeto.
Apenas que encontrou razoáveis motivos para uma excepção.
Como não ver, na abertura
desta excepção, o sinal de uma fragilidade da crença? Se fosse em ditadura, as
crenças obviamente seriam mais estáveis. Não é de estranhar, por isso, que
surjam por aí muitas vozes, que não se limitam às dos maluquinhos do costume, a
decretarem que, em democracia, o combate ao aquecimento global nunca terá
sucesso. E que o exemplo a seguir é o da China, o tal país que tem (não é de
hoje, verdade seja dita) um pequeno problema com os direitos humanos. Viva a
ditadura esclarecida!
Por acaso, ando a ler um livro
que se tornou célebre, em parte por causa de um ensaio de Freud: as “Memórias
de um doente dos nervos”, que o juiz alemão Daniel Paul Schreber publicou em
1903. É a coisa mais parecida que conheço com o “Diário de um louco” de Gogol –
em versão hard, naturalmente. Schreber esteve três vezes internado num hospital
psiquiátrico. Morreu lá na última, em 1911.
As “Memórias” relatam a sua
vida mental durante a segunda estada e são, nesse género muito singular, uma
obra-prima. Para resumir muito, Schreber estava convencido que Deus, com o qual
mantinha relações ambivalentes, o tinha escolhido para dar origem a uma nova
humanidade, já que a atual se encontrava destinada a desaparecer em breve
(Schreber refere-se, a este propósito, à teoria das catástrofes periódicas de
Cuvier). Tal processo implicava, no entanto, a sua emasculação, à qual se
seguiria a sua fecundação pelos raios divinos. Acompanhando a tese principal há
um sem número de considerações que a complementam, e todas elas apresentam uma
extraordinária coerência.
Como para qualquer paranoico,
transportado por uma ideia obsessiva, tudo tem obrigatoriamente de fazer
sentido. E, para Schreber, tudo faz sentido. Ao ponto de se permitir “dúvidas
científicas”, logo refutadas, sobre a natureza das suas experiências de contato
com Deus e com outros habitantes do mundo dos espíritos. E a busca da
coerência, repito, é exemplar.
Apenas um entre mil exemplos.
A certa altura, referindo-se à transmigração das almas, enumera algumas das
suas encarnações futuras: uma mulher hiperbórea, um noviço jesuíta em Ossegg,
um burgomestre de Klattau, uma rapariga alsaciana que tem de defender a sua
honra contra um oficial francês vitorioso e, finalmente, um príncipe mongol.
Com pena, não entro nos detalhes, mas cada uma destas encarnações futuras
apresenta, aos olhos de Schreber, uma coerência perfeita com todos os detalhes
da sua cosmologia. A coerência no delírio, nunca é demais repeti-lo, é
avassaladora. Não há, exatamente, fragilidades.
Se cito o infeliz juiz
Schreber, não é para aconselhar a sua coerência sem falhas, a ausência de
fragilidade teórica do seu sistema delirante, aos obsessivos atuais. Nem sequer
para sugerir uma hipotética semelhança entre o Professor Fleshsig, o director
do hospício no qual se encontrava internado e que, aos seus olhos, conjurava a
sua perda, e Donald Trump. Muito pelo contrário.
As tais fragilidades
parecem-me eminentemente louváveis. São falhas que, mesmo que não se reconheçam
como tal, e sob a carapaça de uma crença imune a qualquer objeção, revelam
dúvidas. E quem se pode queixar disso? A superficialidade é porventura um
defeito, mas um defeito que pode ter algumas consequências louváveis.
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