terça-feira, 3 de novembro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Ciclo temporal

Aparecido Raimundo de Souza

O SUJEITO CHEGA NO PORTAL do prédio do Bastião Pomarola e bate duas vezes:
— O de casa...
Bastião Pomarola, do lado de dentro, pelo interfone, indaga: 
— O de fora... Quem vem lá? 
O recém-aparecido, torna a bater, desta vez imprimindo mais força aos nós dos dedos: 
— O de casa, sou eu. Vem aqui para batermos um papinho. 

Bastião Pomarola sem ter como vasculhar o lado externo da rua e também da calçada, em vista do seu circuito interno de câmeras de monitoramento não estarem, por azar, funcionando, fica a ver navios, sem condições de diagnosticar quem está à sua procura. Volta a questionar: — O de fora... Por favor, se identifique...

O forasteiro não dá a mínima. Apenas continua batendo e pressionando o botão do interfone. Grita:
— O de casa, vem cá.
Bastião Pomarola se posta cabreiro. Na verdade, sente medo de abrir. Volta a interrogar, aflito:
— O de fora. Diga de uma vez. Quem vem dai?

O desconhecido, todavia, não abre a guarda e insiste em continuar batendo e mantendo a boca encostada no aparelho. Imprimindo mais força à sua voz, gruda feito pulga no cachorro, à entrada do prédio: 
— O de casa. Quem é que está ai do lado de dentro? É você, Bastião?

Bastião Pomarola, uma ficha policial quilométrica nas costas, está temeroso. Nem pensa em abrir. Se for a polícia... Tenta, descobrir de quem é aquela voz. Sua mente rodopia, dá saltos e mais saltos. As mãos tremem, o coração acelera, as pernas bambeiam:
— O de fora, insisto. Quem é que bate à minha beira?

O anônimo parece disposto a não sair da sua armadura defensiva:
— O de casa. Libera a entrada. O aqui de fora necessita lhe falar. Abre, por gentileza. Assunto de seu particular interesse.

Bastião Pomarola, agora suando em bicas, tenta ganhar prazo, imprimindo delongas ao tempo. Quanto mais, enrolar, melhor. Dá uma geral em torno de si mesmo e esquematiza como escapulir de dentro da sua própria fortaleza composta de quatro andares, sem fazer barulho. Insiste na pergunta:
— O de fora, o aqui de dentro quer saber do que se trata. Dá pra adiantar o assunto?

O incógnito segue no secreto, sem abrir a guarda. Para infernizar Bastião Pomarola e objetivando desequilibrar seu resto de coragem, segue pressionando o botãozinho do intercomunicador e batendo sem lhe dar maiores explicações:
— O de dentro, por favor, meu amigo, abra. O aqui de fora carece lhe falar com certa urgência. Vamos, amigo. Libera o acesso. Papo reto!

Bastião Pomarola começa a se preocupar, de fato, com o alienígena que não sabe de que planeta veio, além de não lhe poder distinguir os traços do rosto:
— O de fora... Me dá seu nome.
— O de dentro, meu nome não importa. Abra. Venha apertar a minha mão. Faz tempo que não nos vemos...

Bastião Pomarola sente que está trancado. Literalmente aquartelado dentro de sua robusta e impenetrável trincheira. A construção só tem uma porta de entrada bem reforçada e várias câmeras espalhadas em cantos estratégicos. Janelas, que é bom, nenhuma. Este encurralamento repentino, se duvidar, nem agulha conseguirá passar. Bastião Pomarola sabe que poderá, o de fora, ser um policial federal disfarçado ou mesmo da civil ou, no pior dos mundos, algum inimigo e, se sair, passará um tempo a se perder de vista, na cadeia, jogando no ralo, o seu bem mais precioso: a sua liberdade, ou a vida:
— O de fora, sem nome, sem identificação, nem morta. Digo, nem que a vaca tussa. 
Resolve blefar. Talvez funcione: 
— Não procrastina, o de fora. Manda o nome e bota a sua identidade para que eu veja pelas câmeras. 

O ignoto não se transparece, não se abre, não se relata. Nesta altura do campeonato, mostrando certa fúria interior, simplesmente se atém a berrar:
— O de dentro, não estou me camuflando. Saia da toca.

E o diálogo indefinido e encapotado segue firme e forte:
— O de fora, acaso pareço bicho?
— O de dentro, pela maneira como está agindo e me tratando... Você tem um prédio tão bonito, maneiro, mas nenhuma janela. Parece até a arca de Noé. 
— O de fora, sinto desapontá-lo. Não vou abrir. Tampouco sair, a menos que cante a pedra como manda o figurino mostrando quem é e a que veio. Olhe para qualquer uma das câmeras — , volta a ludibriar. — Pela sua voz, juro por um copo de vinho geladinho que não o estou reconhecendo.
O danado, do lado de fora, continua com seu joguinho sujo:
— O de dentro, se você não abrir, eu entrarei.

— E eu lhe digo, o de fora. Se você entrar, eu sairei.
— Duvido!
— Legal, o de fora. Então ficaremos assim. Nos encontraremos no meio do caminho. Vá em frente. Venhaaaaaa... Lembra que daqui de dentro estou pegando ar... Pegando ar... 

Neste momento, o morador contiguado ao Bastião Pomarola, o sisudo e circunspecto “Cumpadi Bigodi Retorcido”, praticamente o Rei-Leão, grosso modo, o manda chuva de toda a comunidade da favela do Canarinho do Bico Torto, escancara a porta de seu baluarte e dele sai para o meio da rua com nada mais, nada menos, doze homens fortemente armados guarnecendo as suas costas. 

Seu rosto brabo e carrancudo, dá sinais de que aquele bate papo furado entre o sujeito de fora e o sujeito lá de dentro não está lhe agradando nem um pouco. Em razão disso, e pior, pê da vida, subindo pelas tamancas, chamando urubu de meu louro, se aproxima do camarada do lado de fora e solta a língua:
— O meu amigo do lado de fora. Nunca lhe ví nem mais gordo, nem mais magro, tampouco desconheço que instrumento toca, menos ainda, o que deseja com o meu vizinho aí do lado de dentro. Sei apenas que este bate boca, este papo furado, esta conversa de mariquinhas fofoqueiras, pra ingleses verem, de vocês dois, está me tirando do sério. Seguinte, meu chapa: ou vocês viram machos de verdade e decidem, de uma vez, quem entra, quem sai, ou quem sai, quem entra, ou isto aqui vai virar uma praça de guerra.

O ilustre estrangeiro encara o tal “Cumpadi Bigodi Retorcido”. 
— E o que pretende fazer? Vai me dar tapinhas no bumbum?
— Mais que isto. Eu e meus “home” pegaremos a dupla e quem mais quiser cair no furdunço e distribuiremos porradas. Ou o prezado mete os peito e entra, ou seu indeciso, ai, mostra a fuça. Cansei dessa palhaçada de o de dentro, o de fora. Ficaram malucos e resolveram perturbar a minha paz? Preciso de silêncio. Não sei se o amigo percebeu, mas este interfone com barulho acima do normal está me incomodando. Ou o amigo aqui vira o capiroto e entra pra dentro, ou o trouxa do Zé Mané que está lá dentro salta de banda e pula saindo aqui pra fora.
— E se eu não entrar?

— Se a sua pessoa não entrar, ou o malandro lá de dentro não pintar aqui na área, como disse, deixo de me chamar Paulo Sérgio Quebra Cinco, ou como toda a galera aqui me conhece: “Cumpadi Bigodi Retorcido”.
Bastião Pomarola aproveitando o gancho do vizinho salvador resolve dar uma de decidido e corajoso:
— É isso ai, meu bacana. Mostra a esse trouxa quem manda no pedaço.

A gota que faltava transborda o copo. Ninguém sabe quem deu o primeiro tiro. O de fora puxou o revolver, o de dentro idem. “Cumpadi Bigodi Retorcido” levantou o braço direito e seus doze homens igualmente abriram fogo. Foi pipoco e mais pipoco pra tudo quanto é lado. Quando a polícia chegou, encontrou quatro corpos mortinhos da vida. 

O sujeito sem nome que queria ver o Bastião Pomarola, um garoto que passava na hora vendendo picolé e dois pistoleiros a serviço do “Cumpadi Bigodi Retorcido”. Aliás, depois de cessado o alvoroço e a saraivada de tiros do “Cumpadi Bigodi Retorcido” e seus capangas, o Bastião Pomarola, desde este dia, ninguém nunca mais ouvir falar nele, tampouco declinar seu paradeiro. Nem por ouvir dizer. 

Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro, 3-11-2020

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