Era fundamental empurrar a Covid para o cantinho que lhe cabe e retomar o controlo das vidas. Sonho com um país aberto fora de horas, com indivíduos livres fora da lei. Espero não acordar em Portugal
Alberto Gonçalves
Imagino que só os infelizes
sem alternativas decentes ou com perturbações emocionais tenham espreitado a
tomada de posse do prof. Marcelo. Ainda bem. Do que li e me contaram, foi um espetáculo
triste. Triste e escusado. Escusado e humilhante para os portugueses que o
presidente da República devia representar. Numa altura em que metade do país
está fechado em casa, a empobrecer e a enlouquecer a uma velocidade notável, o
chefe de Estado, que assina sucessivos estados de emergência e sonha em manter
a clausura coletiva até 2026, não abdicou do pagode.
Houve discursos, cumprimentos,
marchinhas militares, pilhas de repórteres, visita ao Porto, passeata em bairro
“desfavorecido”, tudo ao molho e fé na abdicação acabrunhada das pessoas
proibidas de estudar, trabalhar, confraternizar, viver em suma. Pensando
melhor, é pena que o grotesco espetáculo não fosse visto por mais espectadores:
talvez esclarecesse alguns sobre o desdém que os poderosos lhes dedicam, e
convencesse uns poucos a ignorar as regras que lhes impõem.
![]() |
Igreja Santa Maria Formosa, Veneza |
Por mim, confesso modestamente que não precisei da festarola do prof. Marcelo para perceber tal desdém e ignorar tais regras. Desde há um ano, ou seja, desde que começou esta experiência social, que faço o que me apetece, exceto quando o que me apetece colide com a submissão alheia à repressão em curso. Por exemplo, não posso ir a restaurantes se estes estiverem fechados. Mas nunca me passou pela cabeça respeitar as limitações de circulação e os horários de recolhimento, os quais de resto desconheço.
No último fim de semana, à semelhança de boa parte dos anteriores, cruzei uns 90 municípios, sem “autorizações” escritas ou desculpas preparadas para criaturas que não têm o direito de as exigir em circunstâncias assim. Se quero “circular”, circulo. Se quero estar com amigos, estou. Se quero ficar em casa, fico – porque é a minha vontade e não porque o prof. Marcelo, o dr. Costa, a orquídea da DGS, uma dúzia de “especialistas” em fancaria estatística e um estúdio de televisão repleto de idiotas o recomendam. Se me apanharem a desobedecer, multem-me. Se me apanharem a obedecer, internem-me. Respeitar ordens implica aceitar a legitimidade das mesmas e de quem as decreta. Há muito que não respeito essa gente, e há muito que as decisões dessa gente são ilegítimas.
Claro que o modo como
decorreram a tomada de posse presidencial e o desfile do PCP, forrobodós sem
intervenção da polícia (concentrada em sancionar os criminosos que jogam dominó
ou vendem calças ao domicílio), constituem argumento bastante para qualquer
adulto digno fazer o contrário do que a oligarquia ordena. Porém, o desplante
com que essa gente não cumpre aquilo que exige da ralé é apenas um dos
critérios que justificam o dever de a ralé retribuir o tratamento. Além dos
morais, há também critérios científicos, embora ultimamente a ciência tenha
sido capturada por maluquinhos que acreditam no socialismo e em todo o feirante
que exiba gráficos no Infarmed.
Se os maluquinhos se ajoelham
perante os gráficos e dados “oficiais”, ajudaria que reparassem nos restantes.
A propósito, dois ou três factos (factos, por oposição a palpites). Se o
“confinamento” fosse a solução para diminuir contágios, não haveria lugares com
restrições mínimas ou nulas em que os casos de Covid descessem. Em maio
passado, Portugal “desconfinou” com relativo à-vontade e o número de infectados
e mortos tornou-se residual durante os cinco meses seguintes. Da Inglaterra à
África do Sul, as “estirpes” que justificam as patranhas do momento vêm de
geografias em que a quantidade de contágios desce espetacularmente. Ao
contrário de nações menos exóticas, Portugal não tem arcaboiço econômico para
aguentar estas brincadeiras, orientadas por irresponsáveis com ambos os olhos
nos índices de popularidade, e ambas as mãos na massa do poder discricionário.
Admito que não vale a pena
alertar os maluquinhos para evidências: tolhidos pelo pavor e pela preguiça, os
partidários das superstições, da máscara permanente e do “fique em casa”
possuem a agilidade dialética de um talibã. É possível que despertem, se despertarem,
no dia em que a fatura lhes chegue através dos impostos – mas por aí não vamos
lá. A saída das trevas onde nos enfiaram depende exclusivamente dos sujeitos
que restam, os que são capazes de distinguir um risco para a saúde de um
pretexto para entregar o seu destino a um bando de figuras sinistras.
Dava jeito que os cidadãos
crescidos agissem em conformidade, em vez de se deixarem arrastar, tristonhos e
mudos, para um fim que sabem trágico. Seria bom que desprezassem “desconfinamentos”
mitigados e “reconfinamentos” pendentes. Era importante que mandassem às favas
partidos, televisões, comentadores, peritos e profetas, quase todos cúmplices
do horror em curso. Era decisivo que perdessem o receio da multa e da denúncia
e regressassem sem hesitações à normalidade, a nossa e não o eufemismo de
opressão que é a deles. Era fundamental que empurrassem a Covid para o cantinho
que lhe cabe e retomassem o controlo das suas vidas. É urgente que as suas
vidas não voltem a tolerar intromissões abusivas. Eu sonho com um país aberto
fora de horas, com indivíduos livres fora da lei. Espero não acordar em
Portugal.
Por obra e desgraça de
“estadistas” sem escrúpulos e de uma população anestesiada, as ameaças que hoje
pendem sobre os atos de cidadania não são nada se comparadas às implicações da
dúvida, do medo e da resignação. Tradução: ou o pessoal se mexe, ou o pessoal
está tramado. Se os portugueses têm tudo a perder, que comecem por perder a
paciência.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 13-3-2021, 0h10
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-