Segundo Bruna Frascolla, parte da imprensa apenas repete slogans sem sentido
Edilson Salgueiro
Para Bruna Frascolla [foto], doutora em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), o jornalismo enfrenta uma crise de valores. “O povo letrado em geral vive assim: encontra um slogan para repetir e pertencer ao clube dos bons, o que por tabela constitui a existência de um time dos maus — sem espaço para neutralidade”, diz a autora do livro As Ideias e o Terror. “Aí, quando quer se sentir bem, tuíta o slogan da vez e espezinha quem não adere.”
Essa conduta pôde ser
observada durante o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, segundo a filósofa.
“Ler comunicado oficial é mais informativo que ler a maioria dos jornais”,
observou. Se você falar que os Azov [batalhão que compõe o Exército da
Ucrânia] são neonazistas, fato bem estabelecido até ontem, você vira um
alvo da propaganda anti-Putin.”
Em conversa com Oeste,
Bruna ainda falou sobre nazismo, fascismo e geopolítica. A seguir, os
principais trechos da entrevista.
— Por que a imprensa
decidiu acompanhar intensamente o conflito entre a Rússia e a Ucrânia?
Porque é uma guerra movida por
um Estado contra outro. Para piorar, por um Estado nacional forte contra outro
que nunca foi muito forte. O conflito se divide entre os alinhados com a Rússia
e os alinhados com entidades supranacionais (tais como a União Europeia e a
Organização do Tratado do Atlântico Norte).
— De que maneira o atual
cenário da geopolítica influencia o confronto no Leste Europeu?
Vivemos um momento de grandes mudanças, em que o presidente dos Estados Unidos fala abertamente do fim da ordem liberal e diz que agora se instaura uma nova ordem mundial. Essa expressão não foi inventada por conspiracionistas de chapéu de alumínio; é o título de um livro de 1940 de H. G. Wells, época em que tanto o nazifascismo quanto o comunismo eram moda intelectual no Ocidente — Estados Unidos inclusos. A corrente mais exitosa desses dois sistemas na política dos EUA era o nazifascismo — se não acreditar, leia o Fascismo de Esquerda, de Jonah Goldberg. Esse movimento prometia uma união entre as grandes empresas e o Estado, para gerir a vida dos cidadãos nos mais ínfimos detalhes.
— Essa nova ordem mundial
está avançando nos tempos atuais?
Nos EUA, vemos esse processo
com bastante clareza. Basta observar a relação do governo de Joe Biden com as
políticas ESG das megacorporações transnacionais. (O ESG é uma mistura de
agenda verde com lacração. Exige cota para minorias e cursos de lacração, cria
custos com os quais só as gigantes podem arcar.) O governo e as empresas alegam
que o mundo acabará por causa dos combustíveis fósseis, que mulher pode ser
homem e vice-versa, que não é racismo discriminar as pessoas pela raça… Essa
ideologia é claramente imperialista e nos oprime via Judiciário, porque em país
nenhum do mundo esses depravados têm voto. A meu ver, podemos falar num imperialismo
ESG, supranacional, que visa à destruição de Estados nacionais, enfrentando a
Rússia, cujo presidente está longe de ser um democrata liberal, mas que,
paradoxalmente, representa opiniões bastante comuns que cidadãos do dito mundo
livre não podem expressar.
— Quais opiniões os
“cidadãos do mundo livre” não podem expressar?
Tenho em mente sobretudo a
questão trans. Na Inglaterra, a polícia bate na porta da casa de quem tuíte
afirmações “transfóbicas”, que em geral nada mais são que a negação da
ideologia de gênero. A Inglaterra retirou como transfóbico um outdoor que
trazia a definição de mulher como fêmea humana adulta. Por outro lado, Putin já
disse que doutrinar crianças com ideologia de gênero é crime contra a
humanidade. Os cidadãos da Flórida concordam, mas estão engalfinhados com uma
megacorporação, a Disney, para fazer valer a lei que acabaram de aprovar contra
isso. E olhe que a lei é só contra a doutrinação de crianças pequenas. Se o
cidadão dos EUA quiser que o Estado não entregue sua filha de 12 anos a um
louco que irá tentar convencê-la de ser um menino e castrá-la quimicamente,
terá de se mudar para a Rússia.
— Voltando ao Leste
Europeu, qual o efeito da propaganda nesse conflito?
É normal haver propaganda em
guerras. O que não é normal é as pessoas serem tão crédulas e apaixonadas ao
mesmo tempo. Ou você é crédulo com assuntos que lhe são indiferentes, ou você é
apaixonado com assuntos que lhe interessam muito. Há dois meses, se você
parasse alguém em Copacabana (para ficarmos num lugar de pedestres
esclarecidos) e perguntasse quem é o presidente da Ucrânia, ninguém iria saber.
Eu mesma não sabia. Hoje meio mundo não só sabe, como tem certeza de que é um
santo. E daí tem certeza de que Putin, que sempre esteve aí no noticiário, é o
Mal encarnado sobre a Terra. Por conseguinte, basta dizer que apoia Zelensky
para ter certeza de que é bom, e quem não aderir ao seu coro é um abominável
putinista.
— Por que ocorre tamanha
adesão popular?
A sociedade, jornalistas
inclusos, está doente da cabeça. O povo letrado em geral vive assim: encontra
um slogan para repetir e pertencer ao clube dos bons, o que por tabela
constitui a existência de um time dos maus — sem espaço para neutralidade. Aí,
quando quer se sentir bem, tuíta o slogan da vez e espezinha quem não adere. É
um jeito de se sentir bom sem fazer nada, nem refletir, nem se empenhar em
entender. Como os jornalistas pertencem a esse grupo social que está doente da
cabeça e aderem a slogans limpinhos e cheirosos, repetem acriticamente tudo
aquilo que diz a Otan. O resultado é que eles empurram a propaganda sem se
preocupar com a informação. Pior ainda: nem vão ouvir quem pensa diferente,
seja por se tratar de um abominável putinista, seja por timidez do dissidente.
— Quais são as
consequências desse tipo de cobertura midiática?
Assim como os motoristas de
Uber já devem ter aprendido a discernir o cliente com o qual podem falar de
política sem medo de receber uma avaliação negativa, as pessoas hesitantes, ou
putinistas mesmas, aprendem a ficar caladas perante os jornalistas doidinhos,
que assim nunca são expostos a opiniões diferentes e vivem em bolhas. Daí
resulta que o ocidental médio, brasileiro incluso, não vai saber do Tratado de Minsk —
mesmo que este seja a razão dada pelo próprio Itamaraty para a nossa
neutralidade. É ridículo. Ler comunicado oficial é mais informativo que ler a
maioria dos jornais. Se você falar que os Azov [batalhão que compõe o
Exército da Ucrânia] são neonazistas, fato bem estabelecido até ontem, você
vira um alvo da propaganda de Putin. Diga-me: como a propaganda de Putin pode
me alcançar? Pelas big techs, que censuram veículos pró-Rússia?
Pelos jornalistas malucos? Pelas TVs?
— Quais fontes os cidadãos
podem usar para se informar corretamente, sem cair na propaganda travestida de
jornalismo?
De minha parte, recomendo que
sigam Maajid Nawaz no Twitter. Ele é um inglês filho de paquistaneses,
ex-terrorista islâmico e adepto da democracia. Nawaz tem divulgado imagens dos
Azov amarrando ucranianos de ambos os sexos a postes, coisa que não sai na
imprensa brasileira. Se você entrar no Youtube, encontrará o canal dos Azov e
ver que parece uma Al-Qaeda com banho de Hollywood. Nawaz entende desse
assunto. E, sem confiar nele, você já pode ver pelo canal que eles estão bem
longe de serem mocinhos. O resultado não tanto da propaganda, mas da propaganda
feita entre doidinhos, é que o povo agora acha bonito apoiar neonazista. Vão
dizer que Zelensky é judeu, mas não vão repercutir a notícia de que ele foi ao
Parlamento israelense falar que os ucranianos salvaram os judeus na Segunda
Guerra. Balela. A imprensa francesa (ou ao menos o France Soir)
mostrou que os parlamentares israelenses ficaram furiosos e o chamaram de
negacionista do Holocausto.
Título: Edilson Salgueiro,
revista Oeste, 10-4-2022
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