domingo, 10 de abril de 2022

Ler comunicado oficial é mais informativo que ler a maioria dos jornais, diz filósofa

Segundo Bruna Frascolla, parte da imprensa apenas repete slogans sem sentido

Edilson Salgueiro

Para Bruna Frascolla [foto], doutora em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), o jornalismo enfrenta uma crise de valores. “O povo letrado em geral vive assim: encontra um slogan para repetir e pertencer ao clube dos bons, o que por tabela constitui a existência de um time dos maus — sem espaço para neutralidade”, diz a autora do livro As Ideias e o Terror. “Aí, quando quer se sentir bem, tuíta o slogan da vez e espezinha quem não adere.”

Essa conduta pôde ser observada durante o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, segundo a filósofa. “Ler comunicado oficial é mais informativo que ler a maioria dos jornais”, observou. Se você falar que os Azov [batalhão que compõe o Exército da Ucrânia] são neonazistas, fato bem estabelecido até ontem, você vira um alvo da propaganda anti-Putin.”

Em conversa com Oeste, Bruna ainda falou sobre nazismo, fascismo e geopolítica. A seguir, os principais trechos da entrevista.

— Por que a imprensa decidiu acompanhar intensamente o conflito entre a Rússia e a Ucrânia?

Porque é uma guerra movida por um Estado contra outro. Para piorar, por um Estado nacional forte contra outro que nunca foi muito forte. O conflito se divide entre os alinhados com a Rússia e os alinhados com entidades supranacionais (tais como a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte).

— De que maneira o atual cenário da geopolítica influencia o confronto no Leste Europeu?

Vivemos um momento de grandes mudanças, em que o presidente dos Estados Unidos fala abertamente do fim da ordem liberal e diz que agora se instaura uma nova ordem mundial. Essa expressão não foi inventada por conspiracionistas de chapéu de alumínio; é o título de um livro de 1940 de H. G. Wells, época em que tanto o nazifascismo quanto o comunismo eram moda intelectual no Ocidente — Estados Unidos inclusos. A corrente mais exitosa desses dois sistemas na política dos EUA era o nazifascismo — se não acreditar, leia o Fascismo de Esquerda, de Jonah Goldberg. Esse movimento prometia uma união entre as grandes empresas e o Estado, para gerir a vida dos cidadãos nos mais ínfimos detalhes.

— Essa nova ordem mundial está avançando nos tempos atuais?

Nos EUA, vemos esse processo com bastante clareza. Basta observar a relação do governo de Joe Biden com as políticas ESG das megacorporações transnacionais. (O ESG é uma mistura de agenda verde com lacração. Exige cota para minorias e cursos de lacração, cria custos com os quais só as gigantes podem arcar.) O governo e as empresas alegam que o mundo acabará por causa dos combustíveis fósseis, que mulher pode ser homem e vice-versa, que não é racismo discriminar as pessoas pela raça… Essa ideologia é claramente imperialista e nos oprime via Judiciário, porque em país nenhum do mundo esses depravados têm voto. A meu ver, podemos falar num imperialismo ESG, supranacional, que visa à destruição de Estados nacionais, enfrentando a Rússia, cujo presidente está longe de ser um democrata liberal, mas que, paradoxalmente, representa opiniões bastante comuns que cidadãos do dito mundo livre não podem expressar.

— Quais opiniões os “cidadãos do mundo livre” não podem expressar?

Tenho em mente sobretudo a questão trans. Na Inglaterra, a polícia bate na porta da casa de quem tuíte afirmações “transfóbicas”, que em geral nada mais são que a negação da ideologia de gênero. A Inglaterra retirou como transfóbico um outdoor que trazia a definição de mulher como fêmea humana adulta. Por outro lado, Putin já disse que doutrinar crianças com ideologia de gênero é crime contra a humanidade. Os cidadãos da Flórida concordam, mas estão engalfinhados com uma megacorporação, a Disney, para fazer valer a lei que acabaram de aprovar contra isso. E olhe que a lei é só contra a doutrinação de crianças pequenas. Se o cidadão dos EUA quiser que o Estado não entregue sua filha de 12 anos a um louco que irá tentar convencê-la de ser um menino e castrá-la quimicamente, terá de se mudar para a Rússia.

— Voltando ao Leste Europeu, qual o efeito da propaganda nesse conflito?

É normal haver propaganda em guerras. O que não é normal é as pessoas serem tão crédulas e apaixonadas ao mesmo tempo. Ou você é crédulo com assuntos que lhe são indiferentes, ou você é apaixonado com assuntos que lhe interessam muito. Há dois meses, se você parasse alguém em Copacabana (para ficarmos num lugar de pedestres esclarecidos) e perguntasse quem é o presidente da Ucrânia, ninguém iria saber. Eu mesma não sabia. Hoje meio mundo não só sabe, como tem certeza de que é um santo. E daí tem certeza de que Putin, que sempre esteve aí no noticiário, é o Mal encarnado sobre a Terra. Por conseguinte, basta dizer que apoia Zelensky para ter certeza de que é bom, e quem não aderir ao seu coro é um abominável putinista.

— Por que ocorre tamanha adesão popular?

A sociedade, jornalistas inclusos, está doente da cabeça. O povo letrado em geral vive assim: encontra um slogan para repetir e pertencer ao clube dos bons, o que por tabela constitui a existência de um time dos maus — sem espaço para neutralidade. Aí, quando quer se sentir bem, tuíta o slogan da vez e espezinha quem não adere. É um jeito de se sentir bom sem fazer nada, nem refletir, nem se empenhar em entender. Como os jornalistas pertencem a esse grupo social que está doente da cabeça e aderem a slogans limpinhos e cheirosos, repetem acriticamente tudo aquilo que diz a Otan. O resultado é que eles empurram a propaganda sem se preocupar com a informação. Pior ainda: nem vão ouvir quem pensa diferente, seja por se tratar de um abominável putinista, seja por timidez do dissidente.

— Quais são as consequências desse tipo de cobertura midiática?

Assim como os motoristas de Uber já devem ter aprendido a discernir o cliente com o qual podem falar de política sem medo de receber uma avaliação negativa, as pessoas hesitantes, ou putinistas mesmas, aprendem a ficar caladas perante os jornalistas doidinhos, que assim nunca são expostos a opiniões diferentes e vivem em bolhas. Daí resulta que o ocidental médio, brasileiro incluso, não vai saber do Tratado de Minsk — mesmo que este seja a razão dada pelo próprio Itamaraty para a nossa neutralidade. É ridículo. Ler comunicado oficial é mais informativo que ler a maioria dos jornais. Se você falar que os Azov [batalhão que compõe o Exército da Ucrânia] são neonazistas, fato bem estabelecido até ontem, você vira um alvo da propaganda de Putin. Diga-me: como a propaganda de Putin pode me alcançar? Pelas big techs, que censuram veículos pró-Rússia? Pelos jornalistas malucos? Pelas TVs?

— Quais fontes os cidadãos podem usar para se informar corretamente, sem cair na propaganda travestida de jornalismo?

De minha parte, recomendo que sigam Maajid Nawaz no Twitter. Ele é um inglês filho de paquistaneses, ex-terrorista islâmico e adepto da democracia. Nawaz tem divulgado imagens dos Azov amarrando ucranianos de ambos os sexos a postes, coisa que não sai na imprensa brasileira. Se você entrar no Youtube, encontrará o canal dos Azov e ver que parece uma Al-Qaeda com banho de Hollywood. Nawaz entende desse assunto. E, sem confiar nele, você já pode ver pelo canal que eles estão bem longe de serem mocinhos. O resultado não tanto da propaganda, mas da propaganda feita entre doidinhos, é que o povo agora acha bonito apoiar neonazista. Vão dizer que Zelensky é judeu, mas não vão repercutir a notícia de que ele foi ao Parlamento israelense falar que os ucranianos salvaram os judeus na Segunda Guerra. Balela. A imprensa francesa (ou ao menos o France Soir) mostrou que os parlamentares israelenses ficaram furiosos e o chamaram de negacionista do Holocausto.

Título: Edilson Salgueiro, revista Oeste, 10-4-2022 

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