A importância de uma vitória no campo das
ideias e da legitimidade
Luis Kawaguti
Nas ruas de Lviv, no oeste da Ucrânia, cartazes que lembram a estética da propaganda da Segunda Guerra Mundial incentivam a população a resistir aos invasores. A Rússia é retratada como o gigante Golias, que na versão bíblica é derrotado pelo pequeno Davi com sua funda (uma atiradeira simples, fabricada com fibra vegetal e uma tira de couro para acomodar a pedra). Ou como um grande urso ferido de morte por um roedor. A frase “Navio de guerra russo, vá se f…”, dita por um grupo de soldados que enfrentaram uma embarcação russa numa ilha do Mar Negro, está em cartazes, em protetores de telefone celular e na boca da população.
O “Z”, que vinha sendo pintado
em veículos militares russos na invasão da Ucrânia – com o objetivo de
identificação e evitar “fogo amigo” —, começa a aparecer nas ruas da Rússia e
da Sérvia em camisetas, joias e acessórios, veículos comerciais e até no
uniforme de atletas em competições oficiais. A letra tornou-se símbolo de apoio
aos soldados russos que combatem na Ucrânia.
Essas são só amostras da parte
mais explícita na propaganda de guerra. Mas ela também incide, com contornos
mais sutis, na divulgação de imagens selecionadas ou manipuladas em redes
sociais, nas estatísticas distorcidas e nos discursos políticos carregados de
carga ideológica. No jargão militar, trata-se da guerra informacional. Ela se
destina a vencer o inimigo num campo de batalha onde a distância não é um
obstáculo e o tempo de um ataque é praticamente instantâneo. Assim, esse tipo
de combate influencia diretamente o componente político. Nele, uma vitória no
campo das ideias e da legitimidade pode ser mais importante do que a tomada de
uma cidade ou de parcela do território no campo de batalha físico. O exemplo
mais conhecido veio da Guerra do Vietnã: os americanos venceram no campo de
batalha, mas perderam nas ruas de seu próprio país frente a um movimento
antiguerra.
As diferentes versões
A Ucrânia quer mostrar que a Rússia invadiu um país vizinho pacífico, sem motivo justificável. Ressalta que isso vem provocando uma crise humanitária sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Também aponta que as forças russas estão quase exauridas, perdidas e com graves falhas de capacidade logística. Por fim, o governo ucraniano retrata o conflito como um embate entre a democracia (Ucrânia) e a autocracia (Rússia). Por isso, pede ajuda do Ocidente livre e democrático. A figura do presidente russo, Vladimir Putin, é associada à de Adolf Hitler.
A Rússia, por sua vez, retrata a guerra como uma resposta defensiva à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) rumo ao leste. Moscou se coloca como vítima da agressão ocidental, tanto pela expansão da aliança militar ocidental como pela imposição de sanções econômicas sem precedentes. Também diz que precisa proteger um contingente populacional russo que vive no leste da Ucrânia contra violações de direitos humanos do governo de Volodymyr Zelensky. O presidente ucraniano é retratado pelos russos como nazista e drogado.
Há ainda a versão do conflito
desenhada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus. Nela, o presumido
embate entre democracia e autocracia também é retratado, assim como a suposta
falta de eficiência da ação militar russa na Ucrânia.
As potências ocidentais dão
grande ênfase no campo da comunicação às violações de direitos humanos e das
leis de guerra por parte do governo russo. O presidente russo é tratado
como um louco, que não recebe informações precisas de seus generais (que temem
sua reação a reveses no campo de batalha).
Em mais de um mês de conflito,
versões de todos os lados foram apresentadas como pano de fundo da batalha
diária da informação. Por exemplo, quando surgiu no início do mês a notícia de
um incêndio na usina nuclear de Zaporizhzhia, no sudeste do país, os ucranianos
acusaram os russos de terem bombardeado a instalação para tomá-la. Os russos,
por sua vez, disseram que já tinham o controle da usina e que o incêndio foi
provocado por sabotadores ucranianos, supostamente interessados em culpar
Moscou por um eventual vazamento nuclear. Há duas semanas, quando a imprensa
ocidental divulgou a imagem de uma grávida sendo socorrida após o bombardeio de
uma maternidade em Mariupol,
os russos afirmaram que se tratava de uma encenação com uma atriz. Nesta
semana, quando um depósito de combustíveis civil foi bombardeado por
helicópteros na Rússia, Moscou culpou a Ucrânia. O Ministério da Defesa
ucraniano negou envolvimento no episódio.
Uso de armas químicas
A luta pela legitimidade no
campo de batalha informacional também gerou acusações de uso de armas químicas
e biológicas. A Rússia disse que a Ucrânia realiza em seu território pesquisas
de armas biológicas (com um vírus ou algum tipo de doença para infectar o
inimigo) com apoio dos Estados Unidos.
A Ucrânia abriga laboratórios de pesquisas médicas para combater doenças infecciosas. Alguns deles recebem recursos dos Estados Unidos e da União Europeia. Mas não há evidências de que essas instalações sejam usadas para fins militares. Os Estados Unidos, por sua vez, afirmaram que os russos estavam fazendo tal acusação com o objetivo de eles mesmos lançarem um ataque biológico na Ucrânia. Felizmente, nenhum dos dois cenários se realizou.
Troca de acusações similar
também ocorreu sobre o uso de armas químicas. A Rússia acusou a Ucrânia de
estar fabricando esse tipo de armamento. Já a Ucrânia afirmou que Moscou
estaria criando essa acusação para bombardear depósitos de insumos para
fertilizantes, como a amônia, e assim causar explosões comparáveis à do porto
de Beirute em 2020.
Mas como essas mensagens de
guerra atingem o público? A Ucrânia e o Ocidente têm seus pontos de vista
largamente reproduzidos pelos maiores órgãos de mídia do planeta e difundidos
nas maiores redes sociais. Eles são reafirmados por constantes manifestações e
passeatas organizadas nas principais capitais ocidentais. A Meta (antigo
Facebook), até mudou sua política de censura para permitir manifestações
violentas contra o governo russo.
A guerra sob a perspectiva
da Ucrânia
Dentro da Ucrânia, as
televisões passam o dia mostrando imagens de veículos militares russos
destruídos e estatísticas de baixas russas. Os noticiários são intercalados por
propaganda institucional do governo. Ela retrata combatentes ucranianos no
campo de batalha com as fardas limpas e em atitude altiva, operando armas
avançadas em cenas livres de sangue ou sofrimento. O próprio presidente
Zelensky aparece diariamente em vídeos nas redes sociais incentivando a
população a resistir e a lutar por seu país. Nas ruas, as pessoas trocaram o
“bom dia” pela expressão “glória à Ucrânia”.
Em paralelo, heróis de guerra são fabricados a cada semana. Alguns deles têm fundamentação em fatos, como a divulgação de uma gravação por rádio na qual um grupo de guardas ucranianos, que defendia uma pequena ilha, desafia um navio de guerra russo, dizendo ao seu interlocutor na embarcação: “Navio de guerra russo, vá se f…”. Inicialmente, a Ucrânia afirmou que os guardas foram mortos em um bombardeio naval, e Zelensky os condecorou como heróis da Ucrânia. Mas, semanas depois, descobriu-se que eles haviam sobrevivido, foram capturados e voltaram à Ucrânia em uma troca de prisioneiros. O autor da frase, Roman Hrybov, foi condecorado pessoalmente por Zelensky. A frase pouco elegante de desafio à Rússia está em painéis nas praças, em grandes placas nas estradas, em camisetas e até em capas de proteção para telefones celulares. Outros heróis ucranianos não parecem ter nenhuma ligação com a realidade, como o “fantasma de Kiev”. Trata-se de um suposto piloto de caça que teria abatido inúmeros aviões russos em batalha aérea — um verdadeiro “Barão Vermelho” dos tempos modernos. “Isso é propaganda para o cidadão continuar apoiando o governo, continuar apoiando as forças armadas”, afirmou o analista militar Alessandro Visacro, autor dos livros Guerra Irregular e A Guerra na Era da Informação (Editora Contexto). “Numa situação extrema, é propaganda para que aquele cidadão que já mandou o filho pra guerra agora pegue uma arma e vá lutar pela liberdade dele”, disse.
Essa propaganda de fato está
fazendo os cidadãos acreditarem em uma vitória militar ucraniana. “Nós vivíamos
muito felizes no nosso país, eu e meu filho”, disse a ucraniana Olga (que
preferiu não revelar seu sobrenome), enquanto aguardava com o filho em uma fila
para entrar em um trem para a Polônia. “E agora estamos aqui para correr do
país. Para quê? Por quê? Não entendo, mas o que tenho certeza é que vamos
vencer”, disse. Questionada sobre a acusação russa de que o governo ucraniano teria
uma tendência neonazista, Olga se mostrou indignada: “Penso que eles (russos)
estão mentindo, penso que eles são estúpidos, penso que eles não são nossos
irmãos como estão querendo que a gente acredite”, afirmou.
A propaganda influencia até
quem não é ucraniano, como o estudante equatoriano Juan Kaiser, que reside na
Ucrânia. “Noventa por cento do mundo está com a Ucrânia, a invasão foi um erro
da Rússia. Ninguém acredita na propaganda do Putin, ele é um ditador. Zelensky
é um herói. Ele não está preocupado com dinheiro ou com poder. Ele é um
estrategista e vai vencer essa guerra”, disse o rapaz, em entrevista na cidade
de Lviv.
Já a Rússia destina sua
comunicação para seu público interno, utilizando seus próprios veículos de
imprensa e redes sociais fortemente controlados. Manifestações de rua em apoio
às tropas russas ocorrem dentro do país e em nações aliadas, como a
Sérvia.
Punição para fake
news
O governo russo aprovou uma
lei que pune com até 15 anos de prisão quem espalhar fake news sobre
a campanha militar na Ucrânia. A punição vale até para quem chamar o conflito
de guerra e não de “operação especial”, como recomenda o Kremlin. Assim, o
apoio popular ao governo continua muito forte.
Mas isso não tem impedido
críticas esporádicas à guerra, como o protesto feito pela jornalista Marina
Ovsyannikova, editora de um canal estatal russo, que mostrou um cartaz com a
mensagem “não à guerra” durante uma transmissão ao vivo. O caso deu início a
uma onda de demissões entre jornalistas que não aprovam a guerra. Nas mídias
sociais, crescem os relatos de russos que perderam seus empregos por publicar
mensagens contrárias à campanha russa.
Mesmo assim, por mais
condenável que possa parecer ao Ocidente a ameaça de prisão para quem criticar
a guerra, ela não enfraquece a versão de Moscou para seu público interno. “Isso
é apenas a Rússia sendo Rússia”, afirmou Visacro. Assim, é difícil para o
jornalismo ocidental ter uma noção real do nível de apoio dos russos ao seu
governo. Muitos órgãos de mídia internacional foram expulsos do país já antes
da guerra, e a maioria encerrou suas operações na Rússia depois da aprovação da
lei.
Apesar de democrática, a
Ucrânia também tomou medidas de censura com base na lei marcial. Pelo menos 11
partidos políticos ucranianos simpáticos à Rússia (segundo a Ucrânia) tiveram
seus direitos suspeitos. “Não podemos governar neste momento sem maioria no
Parlamento. O nível de democracia na Ucrânia é robusto o suficiente. Depois da
guerra, a democracia vai continuar”, disse a Oeste o vice-líder
do Parlamento ucraniano Oleksandr Korniyenko. Jornalistas foram proibidos na
semana passada de divulgar praticamente qualquer tipo de informação sobre as
forças armadas ucranianas que não tenham sido aprovadas previamente pelo
governo, sob pena de ter suas licenças revogadas e responder na Justiça por
crime de guerra.
Quem vencerá a guerra
informacional?
A Rússia já foi derrotada na guerra informacional sobre
a invasão da Ucrânia. Ela vem sendo entendida como a parte que perdeu a razão
ao provocar um confronto injusto. Mas, após o fim da guerra, essa perspectiva
pode mudar. “Enquanto a gente tiver a opinião pública sendo alimentada com
imagens dramáticas da guerra, da violência, a narrativa da Rússia como grande
vilã vai continuar”, afirmou Visacro.
“Mas acho que, depois que a
poeira baixar, a versão russa da expansão da Otan e da diplomacia provocativa do
Ocidente pode se consolidar”, afirmou.
No fundo, segundo ele, o
grande objetivo político da Rússia na guerra informacional é quebrar a
percepção sobre a atual ordem mundial hegemônica, liderada pelos Estados
Unidos. “A Rússia quer uma ordem multipolar, policêntrica, em que ela seja um
desses centros. Resumidamente, trata-se de restaurar o poder e o prestígio que
a Rússia sempre teve.”
Já os Estados Unidos tentam
usar a guerra da informação para manter seu status quo hegemônico,
mas têm menos a perder que seus aliados europeus, vizinhos do conflito. São
eles, principalmente, que o presidente Zelensky tenta inflamar com seus
discursos apaixonados. Mas, no fim, a Ucrânia parece estar sozinha.
Título, Imagens e Texto: Luis Kawaguti, revista Oeste, 2-4-2022, 14h
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-