sábado, 2 de abril de 2022

Ordem mundial é o objetivo da guerra informacional na Ucrânia

A importância de uma vitória no campo das ideias e da legitimidade

Luis Kawaguti

Nas ruas de Lviv, no oeste da Ucrânia, cartazes que lembram a estética da propaganda da Segunda Guerra Mundial incentivam a população a resistir aos invasores. A Rússia é retratada como o gigante Golias, que na versão bíblica é derrotado pelo pequeno Davi com sua funda (uma atiradeira simples, fabricada com fibra vegetal e uma tira de couro para acomodar a pedra). Ou como um grande urso ferido de morte por um roedor. A frase “Navio de guerra russo, vá se f…”, dita por um grupo de soldados que enfrentaram uma embarcação russa numa ilha do Mar Negro, está em cartazes, em protetores de telefone celular e na boca da população. 

O “Z”, que vinha sendo pintado em veículos militares russos na invasão da Ucrânia – com o objetivo de identificação e evitar “fogo amigo” —, começa a aparecer nas ruas da Rússia e da Sérvia em camisetas, joias e acessórios, veículos comerciais e até no uniforme de atletas em competições oficiais. A letra tornou-se símbolo de apoio aos soldados russos que combatem na Ucrânia.

Essas são só amostras da parte mais explícita na propaganda de guerra. Mas ela também incide, com contornos mais sutis, na divulgação de imagens selecionadas ou manipuladas em redes sociais, nas estatísticas distorcidas e nos discursos políticos carregados de carga ideológica. No jargão militar, trata-se da guerra informacional. Ela se destina a vencer o inimigo num campo de batalha onde a distância não é um obstáculo e o tempo de um ataque é praticamente instantâneo. Assim, esse tipo de combate influencia diretamente o componente político. Nele, uma vitória no campo das ideias e da legitimidade pode ser mais importante do que a tomada de uma cidade ou de parcela do território no campo de batalha físico. O exemplo mais conhecido veio da Guerra do Vietnã: os americanos venceram no campo de batalha, mas perderam nas ruas de seu próprio país frente a um movimento antiguerra.

As diferentes versões 

A Ucrânia quer mostrar que a Rússia invadiu um país vizinho pacífico, sem motivo justificável. Ressalta que isso vem provocando uma crise humanitária sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Também aponta que as forças russas estão quase exauridas, perdidas e com graves falhas de capacidade logística. Por fim, o governo ucraniano retrata o conflito como um embate entre a democracia (Ucrânia) e a autocracia (Rússia). Por isso, pede ajuda do Ocidente livre e democrático. A figura do presidente russo, Vladimir Putin, é associada à de Adolf Hitler.

A Rússia, por sua vez, retrata a guerra como uma resposta defensiva à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) rumo ao leste. Moscou se coloca como vítima da agressão ocidental, tanto pela expansão da aliança militar ocidental como pela imposição de sanções econômicas sem precedentes. Também diz que precisa proteger um contingente populacional russo que vive no leste da Ucrânia contra violações de direitos humanos do governo de Volodymyr Zelensky. O presidente ucraniano é retratado pelos russos como nazista e drogado. 

Há ainda a versão do conflito desenhada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus. Nela, o presumido embate entre democracia e autocracia também é retratado, assim como a suposta falta de eficiência da ação militar russa na Ucrânia.

As potências ocidentais dão grande ênfase no campo da comunicação às violações de direitos humanos e das leis de guerra por parte do governo russo. O presidente russo é tratado como um louco, que não recebe informações precisas de seus generais (que temem sua reação a reveses no campo de batalha).

Em mais de um mês de conflito, versões de todos os lados foram apresentadas como pano de fundo da batalha diária da informação. Por exemplo, quando surgiu no início do mês a notícia de um incêndio na usina nuclear de Zaporizhzhia, no sudeste do país, os ucranianos acusaram os russos de terem bombardeado a instalação para tomá-la. Os russos, por sua vez, disseram que já tinham o controle da usina e que o incêndio foi provocado por sabotadores ucranianos, supostamente interessados em culpar Moscou por um eventual vazamento nuclear. Há duas semanas, quando a imprensa ocidental divulgou a imagem de uma grávida sendo socorrida após o bombardeio de uma maternidade em Mariupol, os russos afirmaram que se tratava de uma encenação com uma atriz. Nesta semana, quando um depósito de combustíveis civil foi bombardeado por helicópteros na Rússia, Moscou culpou a Ucrânia. O Ministério da Defesa ucraniano negou envolvimento no episódio.

Uso de armas químicas

A luta pela legitimidade no campo de batalha informacional também gerou acusações de uso de armas químicas e biológicas. A Rússia disse que a Ucrânia realiza em seu território pesquisas de armas biológicas (com um vírus ou algum tipo de doença para infectar o inimigo) com apoio dos Estados Unidos.

A Ucrânia abriga laboratórios de pesquisas médicas para combater doenças infecciosas. Alguns deles recebem recursos dos Estados Unidos e da União Europeia. Mas não há evidências de que essas instalações sejam usadas para fins militares. Os Estados Unidos, por sua vez, afirmaram que os russos estavam fazendo tal acusação com o objetivo de eles mesmos lançarem um ataque biológico na Ucrânia. Felizmente, nenhum dos dois cenários se realizou. 

Troca de acusações similar também ocorreu sobre o uso de armas químicas. A Rússia acusou a Ucrânia de estar fabricando esse tipo de armamento. Já a Ucrânia afirmou que Moscou estaria criando essa acusação para bombardear depósitos de insumos para fertilizantes, como a amônia, e assim causar explosões comparáveis à do porto de Beirute em 2020.

Mas como essas mensagens de guerra atingem o público? A Ucrânia e o Ocidente têm seus pontos de vista largamente reproduzidos pelos maiores órgãos de mídia do planeta e difundidos nas maiores redes sociais. Eles são reafirmados por constantes manifestações e passeatas organizadas nas principais capitais ocidentais. A Meta (antigo Facebook), até mudou sua política de censura para permitir manifestações violentas contra o governo russo. 

A guerra sob a perspectiva da Ucrânia

Dentro da Ucrânia, as televisões passam o dia mostrando imagens de veículos militares russos destruídos e estatísticas de baixas russas. Os noticiários são intercalados por propaganda institucional do governo. Ela retrata combatentes ucranianos no campo de batalha com as fardas limpas e em atitude altiva, operando armas avançadas em cenas livres de sangue ou sofrimento. O próprio presidente Zelensky aparece diariamente em vídeos nas redes sociais incentivando a população a resistir e a lutar por seu país. Nas ruas, as pessoas trocaram o “bom dia” pela expressão “glória à Ucrânia”.

Em paralelo, heróis de guerra são fabricados a cada semana. Alguns deles têm fundamentação em fatos, como a divulgação de uma gravação por rádio na qual um grupo de guardas ucranianos, que defendia uma pequena ilha, desafia um navio de guerra russo, dizendo ao seu interlocutor na embarcação: “Navio de guerra russo, vá se f…”. Inicialmente, a Ucrânia afirmou que os guardas foram mortos em um bombardeio naval, e Zelensky os condecorou como heróis da Ucrânia. Mas, semanas depois, descobriu-se que eles haviam sobrevivido, foram capturados e voltaram à Ucrânia em uma troca de prisioneiros. O autor da frase, Roman Hrybov, foi condecorado pessoalmente por Zelensky. A frase pouco elegante de desafio à Rússia está em painéis nas praças, em grandes placas nas estradas, em camisetas e até em capas de proteção para telefones celulares. Outros heróis ucranianos não parecem ter nenhuma ligação com a realidade, como o “fantasma de Kiev”. Trata-se de um suposto piloto de caça que teria abatido inúmeros aviões russos em batalha aérea — um verdadeiro “Barão Vermelho” dos tempos modernos. “Isso é propaganda para o cidadão continuar apoiando o governo, continuar apoiando as forças armadas”, afirmou o analista militar Alessandro Visacro, autor dos livros Guerra Irregular e A Guerra na Era da Informação (Editora Contexto). “Numa situação extrema, é propaganda para que aquele cidadão que já mandou o filho pra guerra agora pegue uma arma e vá lutar pela liberdade dele”, disse. 

Essa propaganda de fato está fazendo os cidadãos acreditarem em uma vitória militar ucraniana. “Nós vivíamos muito felizes no nosso país, eu e meu filho”, disse a ucraniana Olga (que preferiu não revelar seu sobrenome), enquanto aguardava com o filho em uma fila para entrar em um trem para a Polônia. “E agora estamos aqui para correr do país. Para quê? Por quê? Não entendo, mas o que tenho certeza é que vamos vencer”, disse. Questionada sobre a acusação russa de que o governo ucraniano teria uma tendência neonazista, Olga se mostrou indignada: “Penso que eles (russos) estão mentindo, penso que eles são estúpidos, penso que eles não são nossos irmãos como estão querendo que a gente acredite”, afirmou.

A propaganda influencia até quem não é ucraniano, como o estudante equatoriano Juan Kaiser, que reside na Ucrânia. “Noventa por cento do mundo está com a Ucrânia, a invasão foi um erro da Rússia. Ninguém acredita na propaganda do Putin, ele é um ditador. Zelensky é um herói. Ele não está preocupado com dinheiro ou com poder. Ele é um estrategista e vai vencer essa guerra”, disse o rapaz, em entrevista na cidade de Lviv.

Já a Rússia destina sua comunicação para seu público interno, utilizando seus próprios veículos de imprensa e redes sociais fortemente controlados. Manifestações de rua em apoio às tropas russas ocorrem dentro do país e em nações aliadas, como a Sérvia. 

Punição para fake news

O governo russo aprovou uma lei que pune com até 15 anos de prisão quem espalhar fake news sobre a campanha militar na Ucrânia. A punição vale até para quem chamar o conflito de guerra e não de “operação especial”, como recomenda o Kremlin. Assim, o apoio popular ao governo continua muito forte.

Mas isso não tem impedido críticas esporádicas à guerra, como o protesto feito pela jornalista Marina Ovsyannikova, editora de um canal estatal russo, que mostrou um cartaz com a mensagem “não à guerra” durante uma transmissão ao vivo. O caso deu início a uma onda de demissões entre jornalistas que não aprovam a guerra. Nas mídias sociais, crescem os relatos de russos que perderam seus empregos por publicar mensagens contrárias à campanha russa.

Mesmo assim, por mais condenável que possa parecer ao Ocidente a ameaça de prisão para quem criticar a guerra, ela não enfraquece a versão de Moscou para seu público interno. “Isso é apenas a Rússia sendo Rússia”, afirmou Visacro. Assim, é difícil para o jornalismo ocidental ter uma noção real do nível de apoio dos russos ao seu governo. Muitos órgãos de mídia internacional foram expulsos do país já antes da guerra, e a maioria encerrou suas operações na Rússia depois da aprovação da lei.

Apesar de democrática, a Ucrânia também tomou medidas de censura com base na lei marcial. Pelo menos 11 partidos políticos ucranianos simpáticos à Rússia (segundo a Ucrânia) tiveram seus direitos suspeitos. “Não podemos governar neste momento sem maioria no Parlamento. O nível de democracia na Ucrânia é robusto o suficiente. Depois da guerra, a democracia vai continuar”, disse a Oeste o vice-líder do Parlamento ucraniano Oleksandr Korniyenko. Jornalistas foram proibidos na semana passada de divulgar praticamente qualquer tipo de informação sobre as forças armadas ucranianas que não tenham sido aprovadas previamente pelo governo, sob pena de ter suas licenças revogadas e responder na Justiça por crime de guerra.

Quem vencerá a guerra informacional?

A Rússia já foi derrotada na guerra informacional sobre a invasão da Ucrânia. Ela vem sendo entendida como a parte que perdeu a razão ao provocar um confronto injusto. Mas, após o fim da guerra, essa perspectiva pode mudar. “Enquanto a gente tiver a opinião pública sendo alimentada com imagens dramáticas da guerra, da violência, a narrativa da Rússia como grande vilã vai continuar”, afirmou Visacro.

“Mas acho que, depois que a poeira baixar, a versão russa da expansão da Otan e da diplomacia provocativa do Ocidente pode se consolidar”, afirmou.

No fundo, segundo ele, o grande objetivo político da Rússia na guerra informacional é quebrar a percepção sobre a atual ordem mundial hegemônica, liderada pelos Estados Unidos. “A Rússia quer uma ordem multipolar, policêntrica, em que ela seja um desses centros. Resumidamente, trata-se de restaurar o poder e o prestígio que a Rússia sempre teve.”

Já os Estados Unidos tentam usar a guerra da informação para manter seu status quo hegemônico, mas têm menos a perder que seus aliados europeus, vizinhos do conflito. São eles, principalmente, que o presidente Zelensky tenta inflamar com seus discursos apaixonados. Mas, no fim, a Ucrânia parece estar sozinha.

Título, Imagens e Texto: Luis Kawaguti, revista Oeste, 2-4-2022, 14h 

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