Para muitos, a Covid não é uma doença, e
sim um culto que deu sentido a vidas que careciam dele. Esses devotos não têm
medo: têm fé. E têm saudade
Alberto Gonçalves
Há dias, numa comissão do Parlamento Europeu sobre Covid, um eurodeputado holandês perguntou à representante da Pfizer se a empresa havia testado a eficácia da vacina na prevenção da transmissão do vírus. Após umas voltinhas, a senhora lá acabou por responder: não.
Não sendo exatamente uma
surpresa, é a prova de que nos mentiram ao longo de meses. E essa mentira,
produzida pelas farmacêuticas e repetida para efeitos de legitimação pelas
entidades de saúde, permitiu aos governos uma violação sem precedentes dos
direitos individuais em sociedades que tínhamos por democráticas. Por um tempo,
medonho e ridículo, o “certificado de vacinação”, que distinguia os homens
puros da sujidade restante, foi condição indispensável para viajar, fazer
desporto, frequentar restaurantes, tomar um café no “shopping”. Nada, exceto a
propensão de uns para a opressão e a propensão de outros para a obediência,
justificaria isto.
Porém, dentro do cenário
alucinado em que nos vimos metidos, o “argumento” empoleirava-se num único critério:
a vacina, ou a falta dela. Os vacinados, lindos meninos, não contaminariam
ninguém, ou praticamente ninguém. Os não vacinados confundiam-se com o próprio
Belzebu, e, salvo nos países em que literalmente os prenderam, andavam por aí a
infectar inocentes. Entre parêntesis, não convinha notar que os inocentes
estavam, juravam-nos, protegidos pela Pfizer ou pela Janssen, logo a questão da
infecção não se punha. Mas, na famosa “pandemia”, não pôr questões era a regra
número um, a número dois e a número três. Adiante.
No mundo real, muito antes da confirmação da senhora da Pfizer, os factos depressa mostraram que, infelizmente, a vacina não impedia a transmissão do vírus. E depressa os poderes vigentes adaptaram o discurso – sem admitir a adaptação. Como mentiram antes, continuaram a mentir: toda a gente, do sr. Fauci aos “especialistas” que por cá animavam “telejornais”, surgiu a explicar que a vacina apenas serve para diminuir a probabilidade de doença grave ou de morte. Quando inquiridos a propósito, o que aliás era raríssimo, todos juraram que nunca, nunca, nunca tinham dito que a vacina evitava, total ou largamente, a transmissão e a infecção. Eles fossem ceguinhos, embora no fundo apostassem na cegueira alheia. O descaramento é uma coisa extraordinária.
E o mais extraordinário é que
o descaramento funciona. Na quinta-feira, dediquei o Ideias Feitas,
na Rádio Observador, à confissão
da senhora da Pfizer. E partilhei o programa no Twitter. Em minutos,
dezenas de sujeitos irromperam a esclarecer-me que ninguém, Pfizer incluída,
alguma vez dissera que a vacina impedia a transmissão. Mesmo não as conhecendo,
vi que se tratava de criaturas sofisticadas na medida em que rematavam o
esclarecimento com o epíteto de “chalupa”, dirigido à minha rudimentar pessoa.
O que aconteceu depois teve piada. Dezenas de sujeitos diferentes, que também
desconheço, encheram as “caixas” de comentários com vídeos e artigos de finais
de 2020 e inícios de 2021, nos quais incontáveis protagonistas da novela
“pandémica” garantiam que a vacina – vejam lá – impedia, sempre ou quase
sempre, a transmissão.
O processo, mecânico e recorrente, merecia estudo académico. Num momento, o indivíduo X acusava-me de espalhar falsidades: “Ó sua besta, então a Pfizer disse que a vacina impedia a transmissão e a infecção? Chalupa!” No momento seguinte, o indivíduo Y publicava um filmezinho em que o CEO da companhia, o sr. Bourla (com “o”), prometia o êxito da vacina na prevenção da transmissão e da infecção. Imune às evidências, X retorquia a Y: “Não falo com terraplanistas. Chalupa!” Agora troquem o sr. Bourla pelo sr. Biden, o sr. Fauci, a responsável do CDC, o tiranete do Canadá, a doutora da DGS e cinco punhados de “autoridades” sortidas e ficam com uma ideia do que sucedeu no meu Twitter durante umas horas bem passadas: acusação e insulto; desmentido cabal; insulto e fuga. Ou tese furada, antítese e palermice, a dialética hegeliana ao alcance de caipiras. Caipiras rijos, dos que se lançam contra a parede às cabeçadas necessárias até a parede se render.
O problema aqui não é mera
teimosia, a incapacidade de reconhecer um erro e mudar de opinião em
conformidade. O problema, constante desde o início da Covid, não é a tendência
para personagens simples adquirirem um certificado instantâneo de erudição
através da desvalorização de terceiros, naturalmente reduzidos a “trogloditas”,
“terraplanistas” e, claro, “chalupas”. O que impressiona é o fervor dos simples
na defesa da exata prepotência que os oprimiu a eles tanto quanto aos demais.
Genuína e fervorosamente, desprezaram a liberdade, perseguiram incréus,
abençoaram sacrifícios e entregaram-se a dogmas, que pelos vistos não largam.
Para muitos, a Covid não é uma doença, e sim um culto que deu sentido a vidas
que careciam dele. Esses devotos não têm medo: têm fé. E têm saudade.
E têm graça em invocar a
“ciência”. Se a ciência dependesse de tamanhos adversários da dúvida, da
crítica e da realidade, nenhuma vacina a salvaria de uma morte terrível.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 15-10-2022
Leia também:O Pacto de Silêncio dos media mainstream vai rebentar quando?
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