sexta-feira, 7 de julho de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Greta de varredura

Aparecido Raimundo de Souza

MEU PRIMEIRO NOME é Sebastião. Ele tem nove letras, mais a cobrinha que vai em cima do “a” e do “o”. Não fosse essa cobrinha, as pessoas me chamariam de Sebastiao. Como inventaram a cobrinha, ficou sendo Sebastião. Também acho mais bonito e até soa melhor aos ouvidos.  Onde moro: Edifício Copan. O Copan está situado na Avenida Ipiranga nº. 200 no Bairro República, Centro. A cidade, não outra, senão a deliciosa e estrepitosa São Paulo, Capital. Minha idade, desde que nasci: doze anos.

Peso que sai da barriga da minha mãe: 2,5 quilos. Tenho agora, 40 quilos. Número que mais gosto: 88. Minha estatura: sou menor que a máquina de lavar roupas que papai comprou para a mamãe no dia em que ela fez aniversário. E um pouquinho maior que o cesto de roupas sujas do banheiro. Uso sapatos 35. Cor preferida, o branco. A minha família é composta de nove pessoas, contando comigo e um anjinho: o pai, a mãe, meus irmãos Sérgio, Tiago, Valdir, Rosa e Ester.

O anjinho é o Gabriel que morreu com dois dias de vida e vovó disse que ele está lá no céu orando pela gente. De vez em quando vou até a janela da sala que dá melhor visão de São Paulo e fico a espiar para o céu. Nunca topei com o Gabriel rezando por nenhum de nós, embora esteja numa altura bastante expressiva. O Copan tem mais de trinta andares, mil cento e sessenta apartamentos e é dividido em seis blocos. Quase cinco mil residentes. Moramos numa quitinete do Bloco “B”, considerado a ala mais pobre do complexo.

Existem vinte e dois elevadores, mas só dois não funcionam. Os demais (quase sempre estragados por falta de manutenção), têm a trágica mania de prender os moradores entre as paredes escuras dos pavimentos, embora todos respeitem a norma de não viajar com mais de seis ocupantes, ou ultrapassar os quatrocentos e cinquenta kg. Apesar disso, o de serviço, do bloco” D”, num desses finais de semana prolongados, deixou uma grávida lá do vigésimo por mais de duas horas com um carrinho abarrotado de compras gritando feito uma louca destrambelhada. Conclusão: a coitada deu à luz lá mesmo.

Um lindo pimpolho, graças à Deus, veio ao mundo, com a ajuda dos homens que foram chamados para desenguiçarem o aparelho a pedido da administração. Fiquei sabendo que o pessoal que trabalha no prédio, mais esses mecânicos se juntaram e, unidos em nome da solidariedade, promoveram uma “vaquinha” entre eles, compraram roupinhas, cueiros e mantas e, por fim, batizaram o franzino pimpolho que recebeu o pomposo nome de Elevadorino Vigentésimo da Silva Freitas.

Voltando aos elevadores, o fato é que não gosto muito de entrar nessas geringonças.  Prefiro descer e subir pelas escadas, as mãos nos “corrimões”, sabendo, exatamente, onde colocar os arrepios dos medos que rondam as solas dos meus sapatos. Sem contar que por essas vias, seja descendo ou subindo, a gente trafega sem pressa, sem “empurra-empurra” e sem atropelos. Nunca soube que os degraus tivessem desajoujado com alguém daqui, ou de fora, pelo meio do caminho, fosse indo ou vindo de algum lugar.

O porteiro do dia (do meu bloco) é o seu Luiz. O da noite é o seu Anselmo. O seu Luiz é chato, pegajoso, autoritário, metido à besta. Um encrenqueiro de galochas. Não chama o elevador quando a gente chega, não fala nem bom dia nem boa tarde. O seu Anselmo, ao contrário, é educado, prestativo, gentil, um amor de pessoa. Sempre que pode, mamãe manda uma jantinha para ele, depois da novela das oito. O sindico é o seu Miguel, um barrigudo com o perfil de boi fujão. 

Não, ele se assemelha a um boi fujão. Está mais para um cachorrinho perdido que caiu de um caminhão de mudanças. Mora no vigésimo sétimo. Dias passados, colei na calça do terno dele, um chiclete sabor menta, que vinha mascando desde que deixara a escola. Nosso encontro foi no elevador social. Coisa rápida, entre a portaria e o meu andar. Quando nos despedimos, lá foi ele, o resto da viagem, todo posudo, para o vinte e sete, com a goma presa à tira colo da bunda. Com certeza a mulher dele, dona Palmira, vai virar uma onça quando descobrir.

O carro do meu pai é um Fusca amarelo. Uma gracinha. Mamãe vive dizendo para que “meu velho” compre um mais novo ou entre de cabeça num zero bala. Não entendo o motivo da mãe querer que o pai troque nosso meio de transporte por um desses modernos. Quase não saímos. Aliás, o fusquinha fica mais tempo na garagem namorando uma Brasília, que rodando pelas ruas. Por falar em sair, a derradeira vez em que ele botou a carcaça fora da garagem, ou melhor, as rodas, foi para visitar, às pressas, o mecânico e até hoje, quase seis meses, ainda não voltou de Realengo, para ocupar a antiga vaga ao lado da BMW do doutor Aristóbulo e da Brasília.

O doutor Aristóbulo é médico ginecologista que reside no 1302 com a patroa e uma mocinha beirando os doze que adora usar tranças coloridas nos cabelos cor de mel. Minha vizinha de porta é a Luana. Tem quinze anos, a gracinha. É irmã da Lúcia, que namora firme com meu irmão mais velho, o Sérgio. As duas moram no 704. Nós no 705. O cômico, nessa história, é que entre a nossa família e a dela, existe um minúsculo rasco. Uma cissura quase imperceptível.

Explico: onde dormimos, num dos cantos, encoberto às costas do armário de roupas, tem uma caixinha de tomada que, por sua vez, possui uma cavidade que dá para ver tudo o que se passa no quadrado do apartamento ao lado, ou seja, no 704. De noite, quando todos os demais estão nos braços de Morfeu, eu e o Sérgio aproveitamos para montar plantão. Um pouco ele, um bocadinho eu. Virou mania. O Sergio espiona a Lúcia pelada, transitando de um lado para outro, só de calcinha.

Quanto a mim, sem alternativa aparente, me limito a roer as unhas e babar com a Luana, sob o véu de outras imagens, se penteando defronte o espelho ou fazendo poses engraçadas. É um barato! Nossa vida, aqui neste prédio próximo de um outro edifico famoso, o Terraço Itália (mesma avenida só que no número 344), não chega a ser uma das sete maravilhas, mas o importante é que estamos todos bem e com saúde para dar e vender. Temos os pais vivos. Formamos uma prole literalmente bonita, alegre e divertida. Costumamos nos reunir todas as manhas, à pequena mesa do café, bem como no final de cada dia, à hora do jantar.

Afora estes deslumbres, a minha esperança que não morre (de mais tarde, quando começar a namorar, pedir a mão de Luana), que me faz um bem danado a ponto de me deleitar grandemente, na calada da noite, viajando cm quimeras profanas desnudando, palmo a palmo, do seu corpinho de princesa prodigiosa pela via cega da caixinha da tomada de luz. Fiz até uns versinhos para o “amor da minha vida”. Um dia tomarei coragem e entregarei para ela. Pensei em colocar num envelope e enfiar por debaixo da porta, mas me contive em tempo hábil. Não surtiria o efeito que eu desejaria dentro de meu coração.

Ademais, algum abelhudo poderia interceptar, ler, e, em seguida, simplesmente atirar no cesto de lixo sem sequer tomar conhecimento do que sente um garoto apaixonado diante de uma encantada que lhe arrebatou a calma do amor à primeira vista. Estou, desde a descoberta da minha flor em relevo, metido numa enfiada de cento e sessenta e cinco contas, masturbando meu rosário pasmatório, enquanto não chega o meu tempo de sair do anonimato e desabrochar para as coisas boas do amor carnal.

Por assim, escudado pelas altas horas das noites, intercalado com meu irmão que, sem perceber e, por vezes deslembrando de que me acho colado ao lado dele, ao se fartar com as nuances pecaminosas da |Lucia como veio ao mundo, se arrasa eufórico num cinco contra um, ao tempo em que emite uns pios agudos como se fosse um passarinho de cantiga assustada. Um dia eu também pretendo viajar igual ao meu consanguíneo (neste enternecido estado intermediário entre o fluir do gozo e a sensação do prazer incondicional, nem que seja num piscar de olhos), ou me transformar naquela árvore frondosa de cuja madeira alguns artistas fazem compridas lanças de arremessos.  

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 7-7-2023

Anteriores: 
No rebordo da cratera 
Em consignação 
Café e simpatia 
Lâmpada milagrosa 
Zona de impacto

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-