Aparecido Raimundo de Souza
Peso que
sai da barriga da minha mãe: 2,5 quilos. Tenho agora, 40 quilos. Número que
mais gosto: 88. Minha estatura: sou menor que a máquina de lavar roupas que
papai comprou para a mamãe no dia em que ela fez aniversário. E um pouquinho
maior que o cesto de roupas sujas do banheiro. Uso sapatos 35. Cor preferida, o
branco. A minha família é composta de nove pessoas, contando comigo e um
anjinho: o pai, a mãe, meus irmãos Sérgio, Tiago, Valdir, Rosa e Ester.
O anjinho
é o Gabriel que morreu com dois dias de vida e vovó disse que ele está lá no
céu orando pela gente. De vez em quando vou até a janela da sala que dá melhor
visão de São Paulo e fico a espiar para o céu. Nunca topei com o Gabriel
rezando por nenhum de nós, embora esteja numa altura bastante expressiva. O
Copan tem mais de trinta andares, mil cento e sessenta apartamentos e é
dividido em seis blocos. Quase cinco mil residentes. Moramos numa quitinete do
Bloco “B”, considerado a ala mais pobre do complexo.
Existem vinte e dois elevadores, mas só dois não funcionam. Os demais (quase sempre estragados por falta de manutenção), têm a trágica mania de prender os moradores entre as paredes escuras dos pavimentos, embora todos respeitem a norma de não viajar com mais de seis ocupantes, ou ultrapassar os quatrocentos e cinquenta kg. Apesar disso, o de serviço, do bloco” D”, num desses finais de semana prolongados, deixou uma grávida lá do vigésimo por mais de duas horas com um carrinho abarrotado de compras gritando feito uma louca destrambelhada. Conclusão: a coitada deu à luz lá mesmo.
Um lindo
pimpolho, graças à Deus, veio ao mundo, com a ajuda dos homens que foram
chamados para desenguiçarem o aparelho a pedido da administração. Fiquei
sabendo que o pessoal que trabalha no prédio, mais esses mecânicos se juntaram
e, unidos em nome da solidariedade, promoveram uma “vaquinha” entre eles,
compraram roupinhas, cueiros e mantas e, por fim, batizaram o franzino pimpolho
que recebeu o pomposo nome de Elevadorino Vigentésimo da Silva Freitas.
Voltando
aos elevadores, o fato é que não gosto muito de entrar nessas geringonças. Prefiro descer e subir pelas escadas, as mãos
nos “corrimões”, sabendo, exatamente, onde colocar os arrepios dos medos que
rondam as solas dos meus sapatos. Sem contar que por essas vias, seja descendo
ou subindo, a gente trafega sem pressa, sem “empurra-empurra” e sem atropelos.
Nunca soube que os degraus tivessem desajoujado com alguém daqui, ou de fora,
pelo meio do caminho, fosse indo ou vindo de algum lugar.
O porteiro do dia (do meu bloco) é o seu Luiz. O da noite é o seu Anselmo. O seu Luiz é chato, pegajoso, autoritário, metido à besta. Um encrenqueiro de galochas. Não chama o elevador quando a gente chega, não fala nem bom dia nem boa tarde. O seu Anselmo, ao contrário, é educado, prestativo, gentil, um amor de pessoa. Sempre que pode, mamãe manda uma jantinha para ele, depois da novela das oito. O sindico é o seu Miguel, um barrigudo com o perfil de boi fujão.
Não, ele
se assemelha a um boi fujão. Está mais para um cachorrinho perdido que caiu de
um caminhão de mudanças. Mora no vigésimo sétimo. Dias passados, colei na calça
do terno dele, um chiclete sabor menta, que vinha mascando desde que deixara a
escola. Nosso encontro foi no elevador social. Coisa rápida, entre a portaria e
o meu andar. Quando nos despedimos, lá foi ele, o resto da viagem, todo posudo,
para o vinte e sete, com a goma presa à tira colo da bunda. Com certeza a
mulher dele, dona Palmira, vai virar uma onça quando descobrir.
O carro do
meu pai é um Fusca amarelo. Uma gracinha. Mamãe vive dizendo para que “meu
velho” compre um mais novo ou entre de cabeça num zero bala. Não entendo o
motivo da mãe querer que o pai troque nosso meio de transporte por um desses
modernos. Quase não saímos. Aliás, o fusquinha fica mais tempo na garagem
namorando uma Brasília, que rodando pelas ruas. Por falar em sair, a derradeira
vez em que ele botou a carcaça fora da garagem, ou melhor, as rodas, foi para
visitar, às pressas, o mecânico e até hoje, quase seis meses, ainda não voltou
de Realengo, para ocupar a antiga vaga ao lado da BMW do doutor Aristóbulo e da
Brasília.
O doutor
Aristóbulo é médico ginecologista que reside no 1302 com a patroa e uma mocinha
beirando os doze que adora usar tranças coloridas nos cabelos cor de mel. Minha
vizinha de porta é a Luana. Tem quinze anos, a gracinha. É irmã da Lúcia, que
namora firme com meu irmão mais velho, o Sérgio. As duas moram no 704. Nós no
705. O cômico, nessa história, é que entre a nossa família e a dela, existe um
minúsculo rasco. Uma cissura quase imperceptível.
Explico:
onde dormimos, num dos cantos, encoberto às costas do armário de roupas, tem
uma caixinha de tomada que, por sua vez, possui uma cavidade que dá para ver
tudo o que se passa no quadrado do apartamento ao lado, ou seja, no 704. De
noite, quando todos os demais estão nos braços de Morfeu, eu e o Sérgio
aproveitamos para montar plantão. Um pouco ele, um bocadinho eu. Virou mania. O
Sergio espiona a Lúcia pelada, transitando de um lado para outro, só de
calcinha.
Quanto a
mim, sem alternativa aparente, me limito a roer as unhas e babar com a Luana,
sob o véu de outras imagens, se penteando defronte o espelho ou fazendo poses
engraçadas. É um barato! Nossa vida, aqui neste prédio próximo de um outro
edifico famoso, o Terraço Itália (mesma avenida só que no número 344), não
chega a ser uma das sete maravilhas, mas o importante é que estamos todos bem e
com saúde para dar e vender. Temos os pais vivos. Formamos uma prole
literalmente bonita, alegre e divertida. Costumamos nos reunir todas as manhas,
à pequena mesa do café, bem como no final de cada dia, à hora do jantar.
Afora
estes deslumbres, a minha esperança que não morre (de mais tarde, quando
começar a namorar, pedir a mão de Luana), que me faz um bem danado a ponto de
me deleitar grandemente, na calada da noite, viajando cm quimeras profanas
desnudando, palmo a palmo, do seu corpinho de princesa prodigiosa pela via cega
da caixinha da tomada de luz. Fiz até uns versinhos para o “amor da minha
vida”. Um dia tomarei coragem e entregarei para ela. Pensei em colocar num
envelope e enfiar por debaixo da porta, mas me contive em tempo hábil. Não
surtiria o efeito que eu desejaria dentro de meu coração.
Ademais,
algum abelhudo poderia interceptar, ler, e, em seguida, simplesmente atirar no
cesto de lixo sem sequer tomar conhecimento do que sente um garoto apaixonado
diante de uma encantada que lhe arrebatou a calma do amor à primeira vista.
Estou, desde a descoberta da minha flor em relevo, metido numa enfiada de cento
e sessenta e cinco contas, masturbando meu rosário pasmatório, enquanto não
chega o meu tempo de sair do anonimato e desabrochar para as coisas boas do
amor carnal.
Por assim,
escudado pelas altas horas das noites, intercalado com meu irmão que, sem perceber
e, por vezes deslembrando de que me acho colado ao lado dele, ao se fartar com
as nuances pecaminosas da |Lucia como veio ao mundo, se arrasa eufórico num
cinco contra um, ao tempo em que emite uns pios agudos como se fosse um
passarinho de cantiga assustada. Um dia eu também pretendo viajar igual ao meu
consanguíneo (neste enternecido estado intermediário entre o fluir do gozo e a
sensação do prazer incondicional, nem que seja num piscar de olhos), ou me
transformar naquela árvore frondosa de cuja madeira alguns artistas fazem
compridas lanças de arremessos.
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro. 7-7-2023
No rebordo da cratera
Em consignação
Café e simpatia
Lâmpada milagrosa
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