Carina Bratt
DEITADA CONFORTAVELMENTE na rede só de calcinha e sutiã, estendida na minha varanda, olho para o prédio em frente e me sinto, apesar de livre, leve e solta, sufocada como um pássaro preso em uma gaiola. Estou longe do chão da avenida, que não perde a postura barulhenta, em face dos carros que vem e vão numa violência desordenada. Distante da calçada (meu andar fica em pavimento alto), vez em quando, consigo tocar com as mãos a noite de infinito estrelado do meu mundinho imaginário.
Foto: Freepik |
Me
faz companhia a solidão enxerida que entrou sem ser convidada pela porta da
sala, tomou banho comigo, jantou e, insatisfeita, se acomodou às minhas
pantufas. Finjo que não a vejo e disfarço espiando o prédio em frente. A
construção é uma torre de apartamentos pequenos, onde as pessoas transitam de
um lado para outro, num espaço mínimo dentro do escasso das quitinetes que
ocupam. Espio longamente para um andar (acho que o quinze, ou o dezesseis, não
sei bem, também não importa!
Capturo uma moça que acabou de sair do banheiro enrolada numa toalha. Ao lado dela, em outro apê, divorciado por uma parede de concreto, um homem sem camisa, de cueca vermelha, o rosto indistinto, assiste futebol na televisão. Fuma e bebe cerveja. Se agita, desengonçado, quase salta do sofá, possivelmente em decorrência da mancada de um jogador espavorido tentando fazer gol no time adversário. Logo abaixo dos dois, uma jovem mãe alimenta seu bebê de colo ao tempo em que um casal de velhinhos (apesar do tardio das horas), conversa animadamente e toma café e come, como se fosse o primeiro dejejum de uma ensolarada manhã de rosto bucólico.
Mais
abaixo, meus olhos sinalizam várias unidades às escuras. Seus ocupantes em
indícios de longa inércia, dormem, ou se abraçam, ou então, suponho, se ocupam
movimentando os esqueletos acometidos pelos laços incandescentes dos corpos
suados em anuência das estripulias do amor sem limites. Meu deslizar segue
adiante e se fixa em outro equidistante. Neste, uma criança dorme à luz suave
de um abajur de canto. Perto dela, uma senhora, possivelmente a babá, se faz
atenta aos menores movimentos.
De
quando em quando, a prestimosa levanta a cabeça, espia em derredor, ajeita a
coberta sobre o anjinho e, em contínuo, se aninhar na posição antiga. Por aqui,
meu sono não chega. O cansaço não me deixar cair nos braços de Morfeu e me
desligar de tudo à volta. Irrequieta, a alma do pássaro num repente me faz
travessa, agitada, convulsa, desassossegada e revolta. A solidão, mesmo caminho
dos anseios, igualmente não desgarra. Não tem sono. Segue comigo alvoroçada,
procelosa, fremente, viciada em me querer tirar a tranquilidade. Não consegue.
Deitada
na rede, só de calcinha e sutiã, estendida na minha varanda, busco ‘no balouço
do vai e vem’ topar com a paz que procuro desde que cheguei do trabalho.
Investigo o arranha-céu em frente. Já não o vejo tão nítido, mas em
decomposição, como se desabasse em câmera lenta. Mesmo norte, examino no
quadrado estreito da gaiola uma brecha. Apesar, ainda, de livre, leve e solta,
me debato, desventurada, as asas em voos mofinos e acanhados. Há uma batalha
insensata e ignara que esbraveja em meu peito esmaecido. Meu coração, num
relance, por milagre (só pode ser), se acalma e se acomoda num ‘faz de conta’
espetaculoso. Uma tempestade de sono pesado se abate por sobre meus sentidos e
me arranca do ar, me liberta da gaiola, literalmente. É o repeteco do meu sonho
de Ícaro em busca galopante do meu mundinho imaginário.
Título
e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro. 9-7-2023
[As danações de Carina – Extra] O caminho de volta
O eterno ofício celestial
Carregamos, dentro de nós, uma parte da sementinha de João Bocó – ‘DOIS’ (Final)
Carregamos, dentro de nós, uma parte da sementinha de João Bocó — ‘UM’.
Cena urbana
Ah, como eu gostaria de ser essa rede em que você se deita de calcinha e sutiã. Ou as suas pantufas. No pior dos mundos, a solidão que ronda o seu mundinho imaginário. Eu seria, acredite, o homem mais feliz do mundo. Me sentiria realizado e dono do seu corpo inteiro. O seu “eu” é um relicário de poemas e eu os leria inebriado de uma felicidade rara. Meus dias seriam alegres e saltitantes. Minhas horas fluiriam com mais intensidade e esperança. Eu não me incomodaria em velar seu sono, acariciar seu rosto de menina-flor, bulinar no íntimo do seu regaço e descobrir os segredos que se escondem além do portal sentinelado por uma infinidade de calcinhas que você gosta de usar depois que sai do banho. Ah, se eu tivesse a sorte de lhe apertar em meus braços, tocar cada parte do seu “todo mulher”, dormir de conchinha..., se eu pudesse ser alguma coisa além de um simples patrão, juro que iria buscar lá no distante da sua alma, todas as coisas boas que você guarda em segredo. Pudesse enfeitar as suas noites de vigília, certamente você não careceria vigiar os prédios vizinhos, ou se importar com o barulho da avenida movimentada. Eu abraçaria seus medos, espantaria seus receios, beijaria seus pés, mordiscaria as suas orelhinhas, falaria palavras melosas em seus ouvidos e daria a você a paz das noites tranquilas. De manhã, acordaria você com um delicioso café completo, do jeito que você gosta. E quando você estivesse pronta para sair pela porta da sala, eu iria dentro do seu âmago não permitindo que ninguém mais ousasse perturbar o seu cotidiano. Eu sonho em ter seu coração e só este sonhar absurdo, me mantem respirando. Ca, ainda que você, depois desta declaração me tasque um processo de assédio, eu enfrentaria qualquer tribunal e mandaria o juiz para os quintos do inferno.
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=sPUkdtJfkQg&ab_channel=MidasMusic
Aparecido Raimundo de Souza
Da Lagoa, Rio de Janeiro.
Minha resposta à você vai ser e será bem curtinha.
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=O4isRVDaPY8
Reveja o vídeo. Acho que ele fala ou esclarece a nossa situação perante todos, notadamente entre as 'nossas' famílias. O que nos separa são os andares. Você está no décimo segundo eu no vigésimo. Mas o prédio da Borges de Medeiros é o mesmo...
Carina Bratt
da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.