domingo, 9 de julho de 2023

[As danações de Carina] Como pássaro aprisionado

Carina Bratt

DEITADA CONFORTAVELMENTE na rede só de calcinha e sutiã, estendida na minha varanda, olho para o prédio em frente e me sinto, apesar de livre, leve e solta, sufocada como um pássaro preso em uma gaiola. Estou longe do chão da avenida, que não perde a postura barulhenta, em face dos carros que vem e vão numa violência desordenada. Distante da calçada (meu andar fica em pavimento alto), vez em quando, consigo tocar com as mãos a noite de infinito estrelado do meu mundinho imaginário.

Foto: Freepik

Me faz companhia a solidão enxerida que entrou sem ser convidada pela porta da sala, tomou banho comigo, jantou e, insatisfeita, se acomodou às minhas pantufas. Finjo que não a vejo e disfarço espiando o prédio em frente. A construção é uma torre de apartamentos pequenos, onde as pessoas transitam de um lado para outro, num espaço mínimo dentro do escasso das quitinetes que ocupam. Espio longamente para um andar (acho que o quinze, ou o dezesseis, não sei bem, também não importa!

Capturo uma moça que acabou de sair do banheiro enrolada numa toalha. Ao lado dela, em outro apê, divorciado por uma parede de concreto, um homem sem camisa, de cueca vermelha, o rosto indistinto, assiste futebol na televisão. Fuma e bebe cerveja. Se agita, desengonçado, quase salta do sofá, possivelmente em decorrência da mancada de um jogador espavorido tentando fazer gol no time adversário. Logo abaixo dos dois, uma jovem mãe alimenta seu bebê de colo ao tempo em que um casal de velhinhos (apesar do tardio das horas), conversa animadamente e toma café e come, como se fosse o primeiro dejejum de uma ensolarada manhã de rosto bucólico.

Mais abaixo, meus olhos sinalizam várias unidades às escuras. Seus ocupantes em indícios de longa inércia, dormem, ou se abraçam, ou então, suponho, se ocupam movimentando os esqueletos acometidos pelos laços incandescentes dos corpos suados em anuência das estripulias do amor sem limites. Meu deslizar segue adiante e se fixa em outro equidistante. Neste, uma criança dorme à luz suave de um abajur de canto. Perto dela, uma senhora, possivelmente a babá, se faz atenta aos menores movimentos.

De quando em quando, a prestimosa levanta a cabeça, espia em derredor, ajeita a coberta sobre o anjinho e, em contínuo, se aninhar na posição antiga. Por aqui, meu sono não chega. O cansaço não me deixar cair nos braços de Morfeu e me desligar de tudo à volta. Irrequieta, a alma do pássaro num repente me faz travessa, agitada, convulsa, desassossegada e revolta. A solidão, mesmo caminho dos anseios, igualmente não desgarra. Não tem sono. Segue comigo alvoroçada, procelosa, fremente, viciada em me querer tirar a tranquilidade. Não consegue.

Deitada na rede, só de calcinha e sutiã, estendida na minha varanda, busco ‘no balouço do vai e vem’ topar com a paz que procuro desde que cheguei do trabalho. Investigo o arranha-céu em frente. Já não o vejo tão nítido, mas em decomposição, como se desabasse em câmera lenta. Mesmo norte, examino no quadrado estreito da gaiola uma brecha. Apesar, ainda, de livre, leve e solta, me debato, desventurada, as asas em voos mofinos e acanhados. Há uma batalha insensata e ignara que esbraveja em meu peito esmaecido. Meu coração, num relance, por milagre (só pode ser), se acalma e se acomoda num ‘faz de conta’ espetaculoso. Uma tempestade de sono pesado se abate por sobre meus sentidos e me arranca do ar, me liberta da gaiola, literalmente. É o repeteco do meu sonho de Ícaro em busca galopante do meu mundinho imaginário.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.  9-7-2023

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Cena urbana

2 comentários:

  1. Ah, como eu gostaria de ser essa rede em que você se deita de calcinha e sutiã. Ou as suas pantufas. No pior dos mundos, a solidão que ronda o seu mundinho imaginário. Eu seria, acredite, o homem mais feliz do mundo. Me sentiria realizado e dono do seu corpo inteiro. O seu “eu” é um relicário de poemas e eu os leria inebriado de uma felicidade rara. Meus dias seriam alegres e saltitantes. Minhas horas fluiriam com mais intensidade e esperança. Eu não me incomodaria em velar seu sono, acariciar seu rosto de menina-flor, bulinar no íntimo do seu regaço e descobrir os segredos que se escondem além do portal sentinelado por uma infinidade de calcinhas que você gosta de usar depois que sai do banho. Ah, se eu tivesse a sorte de lhe apertar em meus braços, tocar cada parte do seu “todo mulher”, dormir de conchinha..., se eu pudesse ser alguma coisa além de um simples patrão, juro que iria buscar lá no distante da sua alma, todas as coisas boas que você guarda em segredo. Pudesse enfeitar as suas noites de vigília, certamente você não careceria vigiar os prédios vizinhos, ou se importar com o barulho da avenida movimentada. Eu abraçaria seus medos, espantaria seus receios, beijaria seus pés, mordiscaria as suas orelhinhas, falaria palavras melosas em seus ouvidos e daria a você a paz das noites tranquilas. De manhã, acordaria você com um delicioso café completo, do jeito que você gosta. E quando você estivesse pronta para sair pela porta da sala, eu iria dentro do seu âmago não permitindo que ninguém mais ousasse perturbar o seu cotidiano. Eu sonho em ter seu coração e só este sonhar absurdo, me mantem respirando. Ca, ainda que você, depois desta declaração me tasque um processo de assédio, eu enfrentaria qualquer tribunal e mandaria o juiz para os quintos do inferno.
    https://www.youtube.com/watch?v=sPUkdtJfkQg&ab_channel=MidasMusic
    Aparecido Raimundo de Souza
    Da Lagoa, Rio de Janeiro.

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  2. Minha resposta à você vai ser e será bem curtinha.

    https://www.youtube.com/watch?v=O4isRVDaPY8

    Reveja o vídeo. Acho que ele fala ou esclarece a nossa situação perante todos, notadamente entre as 'nossas' famílias. O que nos separa são os andares. Você está no décimo segundo eu no vigésimo. Mas o prédio da Borges de Medeiros é o mesmo...

    Carina Bratt
    da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

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