quarta-feira, 10 de maio de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Carne trêmula

Aparecido Raimundo de Souza

UM
TODO FINAL de ano a história se repetia. Mal se aproximava o dia do aniversário de Priscila, a mãe, começava a se debulhar numa choradeira sem fim. E, atrás dela, de roldão, dona Matilde e seu Conrado, os avós maternos. O único que segurava a barra era o pai, Moacir Conrado, talvez pelo fato de ser excessivamente militar e duro na queda, graduado nas fileiras do exército ao posto de major. Em razão disso, parecia feito de granizo, como se visitado por recordações inestéticas que provocavam amarguras imorredouras dos tumultuados dias em que esteve, como bucha de canhão, nas linhas de frente, em defesa do que, naquela época, considerava sua pátria. No lugar do coração, grassava um surto incurável, deixado, quem sabe, pelo destino, que desde os primórdios da existência vinha lhe preparando surpresas pouco agradáveis.

DOIS
Sem maiores emulações para sobreviver em outro campo, desnutrido pelos rigores da escolha que fizera se tornara frio, indiferente, desprendido, insensível, razão pela qual não derramava uma lágrima. Não entristecia a alma com a dor e o sofrimento dos parentes mais chegados, nem curvava o orgulho diante das evidências que se impunham à sua passagem. Moacir, no fundo, demorou um pouco para aceitar a extinção prematura da única filha, ceifada do seio familiar, aos dez anos de idade. Com o passar dos meses se conformou, muito embora a ferida aberta em seu corpo nunca tenha, de fato, cicatrizada.

Prova disso, desde o instante em que o corpo da jovem saíra com destino ao cemitério, se trancou em torno de muros altos. Nem um excelente escalador de montanhas, por mais profissional que fosse, conseguiria chegar até ele. Jamais lapidou em seu rosto um sorriso, ainda que fugaz, e por incrível que pareça, voltou a pôr os pés no quarto onde ela mantinha seu pequeno mundo particular.

TRÊS
A mãe, ao contrário, não arredava. A cama estava como da última vez em que lá dormira. No roupeiro de seis portas (jaziam nos cabides, as muitas jeans, vestidos, saias e blusas em cores e tons variados), assim como na penteadeira embutida, continuavam seus minúsculos vidrinhos de perfumes espalhados, batons, prendedores de cabelos, o pente, a escova, o secador, a caixinha de música com as joias e uma dezena de brincos e produtos de beleza. Numa cômoda com sapateira (ao lado da janela e da mesa do computador), álbuns de fotografias, papéis de cartas, bilhetinhos embolorados, e uma dezena de pares de sapatos também se conservavam intocáveis e, sutilmente, guardavam forte cheiro de saudade. Sobre o criado-mudo, uma coleção dos clássicos da literatura infantil, ladeada pelos dragões de Cressida Cowell, livros dos quais lia, todas as noites, pequenos trechos, antes de se recolher.

QUATRO
Dona Matilde, a avó, era outra que praticamente batia às portas do desespero. Vez outra, acordava meio da noite, respirando com esforço, as vistas vagas e enevoadas, a face enrugada, mãos trêmulas, ouvindo a voz da neta chamando seu nome. A boa velhinha, nessas ocasiões, sentava, na cama, e ficava por um longo período conversando e gesticulando, como se papeasse animadamente com a falecida. O companheiro, Eustáquio, quando topava com essas cenas estranhas, consolava a consorte de quase sessenta anos de casamento. Pensava, com seus botões (porque os poucos cabelos se foram em face de uma alopecia de fundo nervoso), que a pobre caducava, decrepitada pelo peso do tempo cruel. Relevava a situação e, com destreza e carinho, contornava o problema sem magoar a esposa e amiga de tantos janeiros.

CINCO
Dona Luzia seguia um conjunto de formalidades como se obedecesse a um protocolo idolátrico. De memória episódica, depois do primeiro dejejum, começava os preparativos para a grande noite. Enfeitava a sala de canto a canto, pendurava balões coloridos, alugava de um ateliê de festas infantis, painéis com temas do PIU PIU, convidava os amigos da escola, e do prédio, encomendava na padaria um bolo gigante, comprava refrigerantes. 

Impreterivelmente, às dezenove horas em ponto, a cerimônia acontecia como se Priscila estivesse viva e gozando a plenitude de seus anseios. Essa repetência contínua se fez presente por cinco anos. Dona Luzia, como qualquer mãe, não aceitava a morte. A fístula ficara entalada em sua alma, como uma doença incurável, interligando o passado e o agora, através de uma ponte invisível. Deixara um ócio de enormes lacunas, entre minúsculas ilhas de lembranças e inesgotáveis horas de mais profundo vazio. Seu chão sumira dentro de um nada fugaz, como se no lugar tivesse surgido um enorme bolsão de areia movediça. Para ela, Priscila, saíra para um passeio com as amigas e logo voltaria. Alimentava a ilusão que, de um momento para outro, a garota chegaria, da rua, assobiando, à saída do elevador e, antes de entrar em casa, soaria a campainha cinco vezes, com toques curtos.

SEIS
Depois meteria o rosto sem abrir de todo a porta, pediria a benção à mãe e aos avós e, em seguida, correria a beijar um por um, começando sempre pelos mais velhos. Um ritual seguido à risca, parte, efetivamente de uma sentimentalidade que brotava do mais profundo da alma.

Priscila poderia ser descrita como um amor de filha. O exemplo da mocinha recatada, quieta, obediente, educada, companheira, extremamente organizada e humilde. Nutria verdadeira adoração pelos avós. No trato com eles, se desmanchava em favores. Com a mãe, e o pai, não ficava, igualmente, a dever nada. Despida dos prazeres da vida rica (embora tivesse nascido em berço de ouro), levava uma existência pacata. Os pais procuravam suprir suas necessidades mais prementes: laptop, aparelho celular de última geração, roupas da moda, tênis de marca, uma mesada regular para não fazer feio quando saía com as amigas para as matinês nos cinemas do shopping.

SETE
Até aquela manhã fatídica de sábado, ao deixar a academia de ginástica, se viu envolvida, no meio da rua (juntamente com a Adriana, uma coleguinha inseparável, um ano mais nova que ela; residia no condomínio ao lado), numa fuga inconsequente de menores infratores que haviam acabado de assaltar uma loja de conveniências num posto de gasolina. Os pivetes saíram correndo, atirando a torto e a direito e, no encalço deles, policiais militares que passavam, por acaso, fazendo a ronda em duas viaturas. Adriana tomou um tiro nas costas, à altura da espinha dorsal e caiu morta instantaneamente. Priscila teve igual sorte. Uma das balas foi de encontro à fronte esquerda e, no minuto seguinte, tropeçou sobre os próprios passos e emborcou, de barriga no asfalto quente. Chegou, ainda, a ser socorrida, permaneceu por dias na CTI, mas não aguentou e veio a óbito trinta dias depois.

OITO
Priscila partiu no albor dos dez anos. Deixou um monte de planos. Cadernos cheios de decalques do PIU-PIU, com frases e pensamentos exprimindo desejos incompletos, entre eles o de se formar em médica para curar os males que afligiam seus avós. Embarcou numa viagem comprida, sem promessa de volta, sem adeus ou até breve. Permaneceu um vazio enorme, uma dor imensa e uma tristeza grande e indescritível. E mais: a vontade de debutar na festa dos quinze anos, o que aconteceria cinco anos à frente. De dançar com o pai, no salão do Clube dos Oficias. De declamar uns versinhos que compusera para os avós. Nesse vinte de dezembro, todo o pessoal do condomínio, as famílias de Adriana, bem como as crianças, os amigos comuns das duas, estavam na festa dos quinze anos.  Como nos anos anteriores ao seu óbito. Não houve excepcionalmente, nesse encontro derradeiro, o salão enfeitado do clube dos oficiais, com a orquestra dos militares executando a famosa “Vozes da primavera”, de Strauss, onde o pai, Moacir Conrado, vestido a caráter, bailaria, com a filha sorridente e jorrando de alegria e felicidade.

NOVE
Contudo, na mesa do apartamento, foram vistas duas cadeiras ladeadas e vazias, simbolizando os assentos de Priscila e Adriana. Elas não se fizeram materializadas, mas dona Matilde, a avó, na refutação da fé inquebrantável que a mantinha viva, rupturada de todos os pensamentos inaptos, garantiu, agarrada à sua insanidade de rigor inflexível, que a sua netinha ocupou, faceira, aquele lugar em volta da bancada farta, rodeada entre os convivas, e, na hora em que as luzes cessassem o fluxo contínuo para a exuberância dos “Parabéns”, a sua mocinha apagaria, enleada entre júbilos esfuziantes, uma a uma, as quinze velinhas sobrepostas sobre o bolo de chocolate. 

DEZ
Distribuindo a sua ternura inimitável, a adolescente sorriria, depois, um sorriso infrene, indescritível e sem igual, deixaria no ar, um rejubilar contagiante que não poderia ser obliterado, medido, menos sequer comparado, àqueles das princesas encantadas dos imutáveis contos de fadas. Assim foi. Sem tirar nem por. Cessado o coro fervilhante das congratulações e aquietado os estrépitos dos aplausos, uma a uma, como por encanto, nunca se saberá ao certo (e antes que alguém reacendesse as lâmpadas) as velinhas se consumiram. Restaram somente duas acesas.  O inesperado e jamais entendido. Em todo o apartamento, não havia janelas ou portas que não estivessem abertas. Tampouco corrente de vento soprando de fora, nem ventilador ligado ou ar condicionado funcionando. Um enigma inexplicável, um instante irrepetível, observado, lá de cima, pela mansuetude incomensurável dos olhos de Deus.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Curitiba, no Paraná. 10-5-2017 

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