UM
TODO FINAL de ano a história se repetia. Mal se aproximava o
dia do aniversário de Priscila, a mãe, começava a se debulhar numa choradeira
sem fim. E, atrás dela, de roldão, dona Matilde e seu Conrado, os avós
maternos. O único que segurava a barra era o pai, Moacir Conrado, talvez pelo
fato de ser excessivamente militar e duro na queda, graduado nas fileiras do
exército ao posto de major. Em razão disso, parecia feito de granizo, como se
visitado por recordações inestéticas que provocavam amarguras imorredouras dos
tumultuados dias em que esteve, como bucha de canhão, nas linhas de frente, em
defesa do que, naquela época, considerava sua pátria. No lugar do coração,
grassava um surto incurável, deixado, quem sabe, pelo destino, que desde os
primórdios da existência vinha lhe preparando surpresas pouco agradáveis.
DOIS
Sem maiores emulações para sobreviver em outro campo,
desnutrido pelos rigores da escolha que fizera se tornara frio, indiferente,
desprendido, insensível, razão pela qual não derramava uma lágrima. Não
entristecia a alma com a dor e o sofrimento dos parentes mais chegados, nem
curvava o orgulho diante das evidências que se impunham à sua passagem. Moacir,
no fundo, demorou um pouco para aceitar a extinção prematura da única filha,
ceifada do seio familiar, aos dez anos de idade. Com o passar dos meses se
conformou, muito embora a ferida aberta em seu corpo nunca tenha, de fato,
cicatrizada.
Prova disso, desde o instante em que o corpo da jovem saíra
com destino ao cemitério, se trancou em torno de muros altos. Nem um excelente
escalador de montanhas, por mais profissional que fosse, conseguiria chegar até
ele. Jamais lapidou em seu rosto um sorriso, ainda que fugaz, e por incrível
que pareça, voltou a pôr os pés no quarto onde ela mantinha seu pequeno mundo
particular.
TRÊS
A mãe, ao contrário, não arredava. A cama estava como da
última vez em que lá dormira. No roupeiro de seis portas (jaziam nos cabides,
as muitas jeans, vestidos, saias e blusas em cores e tons variados), assim como
na penteadeira embutida, continuavam seus minúsculos vidrinhos de perfumes
espalhados, batons, prendedores de cabelos, o pente, a escova, o secador, a
caixinha de música com as joias e uma dezena de brincos e produtos de beleza.
Numa cômoda com sapateira (ao lado da janela e da mesa do computador), álbuns
de fotografias, papéis de cartas, bilhetinhos embolorados, e uma dezena de
pares de sapatos também se conservavam intocáveis e, sutilmente, guardavam
forte cheiro de saudade. Sobre o criado-mudo, uma coleção dos clássicos da
literatura infantil, ladeada pelos dragões de Cressida Cowell, livros dos quais
lia, todas as noites, pequenos trechos, antes de se recolher.
QUATRO
Dona Matilde, a avó, era outra que praticamente batia às
portas do desespero. Vez outra, acordava meio da noite, respirando com esforço,
as vistas vagas e enevoadas, a face enrugada, mãos trêmulas, ouvindo a voz da
neta chamando seu nome. A boa velhinha, nessas ocasiões, sentava, na cama, e
ficava por um longo período conversando e gesticulando, como se papeasse
animadamente com a falecida. O companheiro, Eustáquio, quando topava com essas
cenas estranhas, consolava a consorte de quase sessenta anos de casamento.
Pensava, com seus botões (porque os poucos cabelos se foram em face de uma
alopecia de fundo nervoso), que a pobre caducava, decrepitada pelo peso do
tempo cruel. Relevava a situação e, com destreza e carinho, contornava o
problema sem magoar a esposa e amiga de tantos janeiros.
CINCO
Dona Luzia seguia um conjunto de formalidades como se obedecesse
a um protocolo idolátrico. De memória episódica, depois do primeiro dejejum,
começava os preparativos para a grande noite. Enfeitava a sala de canto a
canto, pendurava balões coloridos, alugava de um ateliê de festas infantis,
painéis com temas do PIU PIU, convidava os amigos da escola, e do prédio,
encomendava na padaria um bolo gigante, comprava refrigerantes.
Impreterivelmente, às dezenove horas em ponto, a cerimônia
acontecia como se Priscila estivesse viva e gozando a plenitude de seus anseios.
Essa repetência contínua se fez presente por cinco anos. Dona Luzia, como
qualquer mãe, não aceitava a morte. A fístula ficara entalada em sua alma, como
uma doença incurável, interligando o passado e o agora, através de uma ponte
invisível. Deixara um ócio de enormes lacunas, entre minúsculas ilhas de
lembranças e inesgotáveis horas de mais profundo vazio. Seu chão sumira dentro
de um nada fugaz, como se no lugar tivesse surgido um enorme bolsão de areia
movediça. Para ela, Priscila, saíra para um passeio com as amigas e logo
voltaria. Alimentava a ilusão que, de um momento para outro, a garota chegaria,
da rua, assobiando, à saída do elevador e, antes de entrar em casa, soaria a
campainha cinco vezes, com toques curtos.
SEIS
Depois meteria o rosto sem abrir de todo a porta, pediria a
benção à mãe e aos avós e, em seguida, correria a beijar um por um, começando
sempre pelos mais velhos. Um ritual seguido à risca, parte, efetivamente de uma
sentimentalidade que brotava do mais profundo da alma.
Priscila poderia ser descrita como um amor de filha. O
exemplo da mocinha recatada, quieta, obediente, educada, companheira,
extremamente organizada e humilde. Nutria verdadeira adoração pelos avós. No
trato com eles, se desmanchava em favores. Com a mãe, e o pai, não ficava,
igualmente, a dever nada. Despida dos prazeres da vida rica (embora tivesse
nascido em berço de ouro), levava uma existência pacata. Os pais procuravam
suprir suas necessidades mais prementes: laptop, aparelho celular de última
geração, roupas da moda, tênis de marca, uma mesada regular para não fazer feio
quando saía com as amigas para as matinês nos cinemas do shopping.
SETE
Até aquela manhã fatídica de sábado, ao deixar a academia de
ginástica, se viu envolvida, no meio da rua (juntamente com a Adriana, uma
coleguinha inseparável, um ano mais nova que ela; residia no condomínio ao
lado), numa fuga inconsequente de menores infratores que haviam acabado de
assaltar uma loja de conveniências num posto de gasolina. Os pivetes saíram
correndo, atirando a torto e a direito e, no encalço deles, policiais militares
que passavam, por acaso, fazendo a ronda em duas viaturas. Adriana tomou um
tiro nas costas, à altura da espinha dorsal e caiu morta instantaneamente.
Priscila teve igual sorte. Uma das balas foi de encontro à fronte esquerda e,
no minuto seguinte, tropeçou sobre os próprios passos e emborcou, de barriga no
asfalto quente. Chegou, ainda, a ser socorrida, permaneceu por dias na CTI, mas
não aguentou e veio a óbito trinta dias depois.
OITO
Priscila partiu no albor dos dez anos. Deixou um monte de
planos. Cadernos cheios de decalques do PIU-PIU, com frases e pensamentos
exprimindo desejos incompletos, entre eles o de se formar em médica para curar
os males que afligiam seus avós. Embarcou numa viagem comprida, sem promessa de
volta, sem adeus ou até breve. Permaneceu um vazio enorme, uma dor imensa e uma
tristeza grande e indescritível. E mais: a vontade de debutar na festa dos
quinze anos, o que aconteceria cinco anos à frente. De dançar com o pai, no
salão do Clube dos Oficias. De declamar uns versinhos que compusera para os
avós. Nesse vinte de dezembro, todo o pessoal do condomínio, as famílias de
Adriana, bem como as crianças, os amigos comuns das duas, estavam na festa dos
quinze anos. Como nos anos anteriores ao
seu óbito. Não houve excepcionalmente, nesse encontro derradeiro, o salão
enfeitado do clube dos oficiais, com a orquestra dos militares executando a
famosa “Vozes da primavera”, de Strauss, onde o pai, Moacir Conrado, vestido a
caráter, bailaria, com a filha sorridente e jorrando de alegria e felicidade.
NOVE
Contudo, na mesa do apartamento, foram vistas duas cadeiras
ladeadas e vazias, simbolizando os assentos de Priscila e Adriana. Elas não se
fizeram materializadas, mas dona Matilde, a avó, na refutação da fé
inquebrantável que a mantinha viva, rupturada de todos os pensamentos inaptos,
garantiu, agarrada à sua insanidade de rigor inflexível, que a sua netinha
ocupou, faceira, aquele lugar em volta da bancada farta, rodeada entre os
convivas, e, na hora em que as luzes cessassem o fluxo contínuo para a
exuberância dos “Parabéns”, a sua mocinha apagaria, enleada entre júbilos
esfuziantes, uma a uma, as quinze velinhas sobrepostas sobre o bolo de chocolate.
DEZ
Distribuindo a sua ternura inimitável, a adolescente
sorriria, depois, um sorriso infrene, indescritível e sem igual, deixaria no
ar, um rejubilar contagiante que não poderia ser obliterado, medido, menos
sequer comparado, àqueles das princesas encantadas dos imutáveis contos de
fadas. Assim foi. Sem tirar nem por. Cessado o coro fervilhante das
congratulações e aquietado os estrépitos dos aplausos, uma a uma, como por
encanto, nunca se saberá ao certo (e antes que alguém reacendesse as lâmpadas)
as velinhas se consumiram. Restaram somente duas acesas. O inesperado e jamais entendido. Em todo o
apartamento, não havia janelas ou portas que não estivessem abertas. Tampouco
corrente de vento soprando de fora, nem ventilador ligado ou ar condicionado
funcionando. Um enigma inexplicável, um instante irrepetível, observado, lá de
cima, pela mansuetude incomensurável dos olhos de Deus.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De Curitiba, no Paraná. 10-5-2017
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