quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

[Daqui e Dali] A burra de Martim Tirado

Humberto Pinho da Silva

No meu tempo de menino e moço, em terras de Bragança, ainda havia simpáticas e acolhedoras velhinhas, genuínos relicários, de velhas tradições e de verdadeira portugalidade.

Fiandeira e maçadeira, da Vilariça

Pela fresca de uma manhã de agosto, ainda ensonado por mal dormida noite, abalava, jovial, da estação de São Bento, em pitoresco comboio, que mais parecia regressado do passado, das terras áreas e ainda selvagens, do velho Texas.

Estação de São Bento, foto: António R.

Em velhíssima carruagem, de bancos de madeira envernizada, de cortinas de algodão, encardidas, que desfraldavam como bandeiras batidas pelo vento, observava o rio, que corria mansinho, sem pressa, entalado por montes cobertos de vinha.

Após atribulada viagem – comboio, carreira, jerico –, entrava, finalmente, pelo único caminho lajeado, que atravessava a aldeia de minha mãe.

Por trás de cada postigo, por trás de cada portada, entreaberta, pressentia curiosos olhinhos, observadores, como se fosse estranho ser, recentemente chegado a zoológico.

Em breve, familiarizava-me com a saudável vida campesina, e sentia-me tão bem, que, por lá ficaria, para sempre, se me deixassem.

Em noites de luar, o tio João e a “tia” Matilde, vinham sentar-se na soleira da porta de minha casa. Com eles, ajuntavam-se outros, em amena cavaqueira.

Para contentarem as crianças, contavam-se velhas e relhas histórias, algumas com bastante colorau e pimenta, nada próprias para gente miúda…; que arrancavam reparo dos sisudos, e valentes gargalhadas dos folgazões.

Entre outras, recordo a da “ Burra de Martim Tirado”.
Vou tentar reproduzi-la, com o saboroso linguarejar da região, infelizmente quase desaparecido, porque, agora, todos querem falar à “cidadosa”:

Ele era uma vez um home que tinha uma burra muito manhosa. Quando ia ao trabalho, com uma carga de lenha ou pão, sobre as engarelhas, sempre havia de deixar mal o patrão.

Um dia, que ia com ele, de Martin Tirado, à feira de Carviçais, ficava para trás… sempre p’ra trás… Até que passou um amigo do home, e viu aquele disparate:
- Bô! então a burra não anda!? ó João? Esgoda-lhe uma malagueta debaixo do rabo!
- Bô! ele dará resultado?!
E dito e feito, o home assim fez.
Foi por uma malagueta, esgodelhou-a no lugar indicado, e o resultado não se fez esperar: a burra desapareceu, a trote, pela estrada fora.

Vendo que não a podia alcançar, o home, pensou: “ora se fez andar a burra, também me faz a mim “. E fez a si próprio, o mesmo.
E dai a pouco, corria a bom correr, a caminho de Carviçais.
Quando passou pela burra, não conseguiu parar, e apenas pode dizer:
-Bô! tu ainda ai vais? Eu lá te espero, na feira, que agora não pode ser.

Será que ainda há transmontanos que conheçam essas velhas historietas, que os avós contavam à lareira? ou ao serão, nas noites de luar?
Receio bem que não…
Título e Texto: Humberto Pinho da Silva

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