Fernando Gabeira
O ponto de partida é uma frase
de Lula: "Não deixarei que um tucano assuma de novo a Presidência".
Lembro, no entanto, que não sou de pegar no pé de Lula por suas frases. Cheguei
a propor um "habeas língua" para o então presidente na sua fase mais
punk, quando disse que a mãe nasceu analfabeta e que se a Terra fosse quadrada
a poluição não circularia pelo mundo. Lembro também que hoje concordo com o
filósofo americano Richard Rorty: não há nada de particular que os intelectuais
saibam e todo mundo não saiba. Refiro-me à ilusão de conhecer as leis da
História, deter segredos profundos sobre o que dinamiza seu curso e dominar em
detalhes os cenários futuros da humanidade.
Nesse sentido, a eleição de
Lula, um homem do povo, sem educação formal superior, não correspondeu a essa
constatação moderna de Rorty. Isso porque, apesar de sua simplicidade, Lula
encarnava a classe salvadora no sonho dos intelectuais, via luta de classes como
dínamo da História humana, e traçava o mesmo futuro paradisíaco para o
socialismo. Na verdade, Lula falava a linguagem dos intelectuais. Seus
comentários que despertaram risos e ironias no passado eram defendidos pelos
intelectuais com o argumento de que, apesar de pequenos enganos, Lula era
rigorosamente fundamentado na questão essencial: o rumo da História humana.
A verdade é que a chegada do
PT ao poder o consagrou como um partido social-democrata e, ironicamente, a
social-democracia foi o mais poderoso instrumento do capitalismo para
neutralizar os comunistas no movimento operário. São mudanças de rumo que não
incomodam muito quando se chega ao poder. O capitalismo é substituído pelas
elites e o proletariado salvador, pelos consumidores das classes C e D. Os
sindicalistas vão ao paraíso de acordo com os critérios da cultura nacional,
consagrados pela canção: É necessário uma viração pro Nestor/que está vivendo
em grande dificuldade.
Se usarmos a fórmula
tradicional para atenuar o discurso de Lula, diremos que o ex-presidente queria
expressar, com sua frase sobre um tucano na Presidência, que faria todo o
esforço para a vitória do seu partido e para esclarecer os eleitores sobre a
inconveniência de eleger o adversário. Lula sabe que ninguém manda no processo
eleitoral. São os eleitores que decidem se alguém ocupará a Presidência. Foi só
um rápido surto autoritário, talvez estimulado pelo tom de programa de TV,
luzes e uma plateia receptiva.
Se o candidato tucano for,
como tudo indica, o senador Aécio Neves, também eu, em trincheira diferente da
de Lula, farei todo o esforço para que o tucano não chegue à Presidência. Aécio
foi um dos artífices na batalha para poupar Sérgio Cabral da CPI e confirmou,
com essa manobra, a suspeita de que não é muito diferente do PT no que diz
respeito aos critérios de alianças e ao uso da corrupção dos aliados para
fortalecer seu projeto de poder. Tudo o que se pode fazer, porém, é tornar
clara a situação para o eleitor, pois só ele, em sua soberania, vai decidir
quem será o eleito.
Na verdade, essa batalha será
travada também na esfera da economia. Vivemos um momento singular na História
do mundo. A crise mundial opõe defensores da austeridade, como Angela Merkel, e
os que defendem mais gastos e investimentos, dentro da visão keynesiana de que
a austeridade deve ser implantada no auge do crescimento, e não durante o
período depressivo. O PT dirigiu o País num período de crescimento e muitos
gastos, não tanto no investimento, mas no consumo. É possível que esse modelo de
estímulo à economia tenha alcançado seus limites.
Muito possivelmente, ainda, o
curso dos acontecimentos não dependerá tanto da vontade de Lula nem dos nossos
esforços individuais. A democracia prevê alternância no poder. E a análise de
como essa alternância se dá na prática revela, em muitos casos, uma gangorra
entre austeridade e gastança. De modo geral, a crise derrota um governo austero
e coloca seu oposto no poder, como na França. Mas às vezes derrota um governo
social-democrata e elege seu adversário direto, como na Espanha.
Pode ser que o esgotamento do
modelo de estímulo ao consumo abra espaço para discurso de reformas fiscal e
trabalhista, de foco em educação e infraestrutura, enfim, de uma fase de
austeridade. E não é totalmente impossível que um partido de oposição chegue ao
governo. Restaria ao PT, nesse caso, um grande consolo: ao cabo de um período
de austeridade, o partido teria grandes chances de voltar ao poder com seu
discurso do "conosco ninguém pode", do "vamos que vamos",
"nunca antes neste país"... Não estou afirmando que esse mecanismo
vai prevalecer, é uma das possibilidades no horizonte. A outra é o próprio PT
assumir algumas das diretivas de austeridade e conduzir o processo sem
necessariamente deixar o poder.
Por mais que a crise seja
aguda, o apelo ao consumo e à manutenção de intensas políticas sociais é muito
forte na imaginação popular. O discurso de austeridade só tem espaço eleitoral
quando as coisas parecem ter degringolado.
O futuro está aberto e não
será definido pela exclusiva vontade de Lula. Com todo o respeito ao Ratinho e
sua plateia, o povo brasileiro é mais diverso e complexo. Se é verdade que a
História não se define nas academias intelectuais, isso não significa que ela
tenha passado a ser resolvida nos programas de auditório.
No script do socialismo real o
proletariado foi substituído pelo partido, o partido pelo comitê central e o
comitê central por um só homem. No script da social-democracia tropical Lula
substituiu o proletariado, o partido, o comitê central e o próprio povo
brasileiro ao dizer que não deixará um tucano voltar à Presidência. Se avaliar
com tranquilidade o que disse, Lula vai perceber que sua frase não passa de uma
bravata.
O que faz um homem tão popular
e bem-sucedido bravatear no Programa do Ratinho é um mistério da mente humana
que não tenho condições de decifrar. A única pista que me vem à cabeça está na
sabedoria grega: os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir.
Título e Texto: Fernando Gabeira, “Estado de S. Paulo”, 08-06-2012
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