Reinaldo Azevedo
Nelson Mandela morreu. E uma
África do Sul ainda está por nascer. Não que ele não tenha feito um trabalho
gigantesco. Todas as homenagens são justas. Pertencia a um aparelho chamado
Congresso Nacional Africano, o partido que centralizou a luta contra a
delinquência moral do apartheid e que, no poder, se transformou numa formidável
máquina de assalto ao estado. A questão se torna particularmente complicada
porque o partido traz consigo a densidade moral da histórica luta contra o
regime racista, de que ele se tornou a expressão máxima.
A biografia de Mandela está
aí, em toda parte. Não vou repisar o que todo mundo já leu, já sabe ou pode
acessar num clique. Vamos lá. Qual foi o grande acerto de Nelson Mandela? Ter,
a partir de determinado momento, percebido que a luta pacífica — sem jamais ter
desmobilizado seus partidários — era o melhor caminho. Ele fez, sim, parte de
um grupo que se dedicava a ações violentas e a sabotagens — e por isso foi
preso e condenado à prisão perpétua.
O CNA tinha o seu braço
armado, o Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), também conhecido como MK.
Oficialmente ao menos, até a libertação de Mandela, o MK jamais renunciou à
luta armada, mas o líder, mesmo na cadeia, percebeu que aquela era a pior
escolha. A mística, no entanto, continuou. Abaixo há um vídeo de 2006, sete
anos depois de ele ter deixado a Presidência, em que ainda canta o hino do MK.
A letra fala por si: eles dizem se orgulhar de matar os brancos.
Era só memória de um tempo
apenas. Na década de 80, o concerto das nações não podia mais admitir um regime
oficialmente racista. Da cadeia, contrariando as alas mais radicais do CNA, o
ex-guerrilheiro passou a negociar com o governo a transição pacífica. Libertado
em fevereiro de 1990, elege-se presidente em 1994, cumpre o mandato até 1999 e
deixa o poder, recusando a reeleição, o que teria conseguido sem esforço.
No governo, em vez de promover
a revanche contra os brancos, Mandela investiu no entendimento. Sabia que a
eventual perseguição à minoria poderia representar o caos econômico para o
país. Preferiu investir na paz, não na guerra. Criou a Comissão da Verdade e da
Reconciliação para que se contasse a história do período, não para perseguir os
antigos poderosos. Crimes cometidos por pessoas ligadas ao próprio CNA também
foram tornados públicos, como os cometidos por Winnie Mandela, sua ex-mulher,
depois tornada inimiga política.
O Mandela da paz, assim, se
tornou uma figura política realmente gigantesca. A África do Sul poderia ter
involuído, num primeiro momento, para uma guerra contra os brancos e, depois,
para uma guerra entre os próprios negros, separados por etnias e ideologias.
Foi o que aconteceu, por exemplo, em Moçambique e, especialmente, Angola.
Mandela percebeu que a luta na África do Sul tinha características diferentes
de uma guerra contra um colonialismo decadente, excrescente e anacrônico. Era outra
coisa. Não havia um país estrangeiro fazendo escolhas em lugar dos
sul-africanos. Certamente passou poucas e boas na prisão, mas o fato é que, ao
ser retirado da rota das várias derivações do marxismo armado que se espalharam
pela África — o movimento que levou, por exemplo, Che Guevara ao Congo —, teve
a oportunidade de sonhar outro sonho, em parte realizado.
Além do símbolo
A África do Sul baniu,
evidentemente, todas as leis discriminatórias. Segue sendo o país mais rico e
desenvolvido do continente e o único que aderiu, no que concerne às
instituições, a um regime realmente democrático. Se alguém da minoria branca
vencer a eleição vai governar o país — assim como Obama, pertencente a uma
minoria de 13% nos EUA, governa os EUA.
Ocorre que não há chance de um
branco vencer a disputa no país. É compreensível. O apartheid ainda está vivo
na memória. O problema é outro: é impossível que um candidato desvinculado do
CNA vença a eleição. O partido, que nunca foi muito ortodoxo em matéria de
moralidade, tornou-se uma máquina gigantesca, que tem o pleno domínio de todas
as instituições do estado. É impossível fazer negócio no país sem, como direi?,
pagar um tributo extra a alguma autoridade do CNA.
No ranking dos países
considerados mais corruptos — ou em que há a percepção de corrupção —,
elaborado pela Transparência Internacional, a África do Sul está junto com o
Brasil: em 72º lugar. Numa escala de zero (totalmente corrupto) a 100 (livre da
corrupção), os dois países obtiveram a mesma nota: 42.
Quando um partido se torna de
tal sorte hegemônico — e o apartheid é que acabou sendo o grande estímulo à
hegemonia exercida pelo CNA —, as forças políticas já não lutam para convencer
a sociedade , mas para controlar esse aparelho. É o que PT sonha realizar no
Brasil — em parte, já realiza. Por isso investe na fábula ridícula do “nós”
contra “eles”. O petismo pretende ser, assim, o nosso CNA, e seus “negros”
seria a “maioria discriminada”…
O apartheid político e racial
é uma realidade superada. Acabou. Os brancos que eventualmente sonham com o
status anterior não têm voz relevante. A questão agora é saber como a sociedade
sul-africana vai controlar a máquina corrupta do CNA. Mandela não teve tempo de
se ocupar no assunto na Presidência. Ao encerrar o seu mandato, permaneceu como
um símbolo, uma referência, mas sem força para pôr o partido nos trilhos. A
tensão social no país, que também é notavelmente violento, é gigantesca. Em
agosto do ano passado, um confronto entre mineiros em greve, todos negros, e
policiais, todos negros, fez 44 mortos. A violência urbana é proverbial pela
crueldade dos crimes cometidos.
Por incrível que pareça, com o
fim do apartheid, aumentou a desigualdade social no país — abrindo-se também um
valo entre negros e negros —, e caiu a expectativa de vida em razão da
violência brutal e da AIDS. O país atentou muito tarde para o risco da doença.
O atual presidente, Jacob Zuma, que tem três mulheres e confessou ter um filho
com uma amante, chegou a admitir que manteve relações sem proteção com uma mulher
que sabia contaminada. Em seguida, afirmou, tomou um banho. Ele não acreditava,
então, que o vírus fosse o responsável pela doença e sugeriu que era coisa só
de homossexuais. A África do Sul entrou muito tarde no combate à Aids e a
doença virou um flagelo no país.
O grande desafio da África do
Sul, hoje e nas próximas décadas, será se livrar do poder acachapante do CNA;
será, em suma, criar forças políticas as mais distintas, que possam garantir a
alternância de poder — não a alternância entre negros e brancos, mas aquela que
existe entre os que divergem. Ou negros não divergem de negros?
Essa poderá ser uma luta mais
longa do que a travada contra o apartheid.
Título e Texto: Reinaldo
Azevedo, 06-12-2013
De tudo que foi dito e é dito, qual o maior legado de Madiba?
ResponderExcluirUbuntu. É o que foi dito pelo Mestre dos mestres. Continua dizendo a mesma coisa.
Ubuntu!
http://vimeo.com/4983892
Ubuntu é uma palavra africana que traduz a essência do ser humano. Originária do idioma Bantu refere-se ao componente presente em todas as pessoas que as capacita, potencialmente, ao entendimento, relacionamento, colaboração. Em muitas pessoas esse potencial se manifesta naturalmente. Na maioria, com maior ou menor intensidade, precisa ser estimulado, despertado.
Desculpe esqueci
ResponderExcluirComentário por IVAN Ditscheiner
Aposentado assistido Aerus