sábado, 6 de setembro de 2014

O povo mais justo do planeta

Flavio Quintela

Um dos textos mais conhecidos do evangelho cristão é aquele em que Jesus se dirige a uma turma prestes a apedrejar uma prostituta, e lhes diz: quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. A lição, que deveria ser óbvia, é a de que somos todos imperfeitos, e portanto incapazes de fazer julgamentos sobre os outros. A narrativa bíblica confirma que os envolvidos no episódio captaram a mensagem, já que se retiraram um a um, deixando a cena do quase-linchamento.

Imagem: Agência Estado
O episódio envolvendo a torcedora gremista, Patrícia, e o goleiro do Santos, Aranha, é a prova de que nossa sociedade está profundamente adoecida. Não seria correto defender a atitude da torcedora, já que ela estava errada. Houve o xingamento, o xingamento foi racista, e a coisa toda foi gravada. Mas a sequência de fatos deflagrados por esse acontecimento pontual tomou proporções irracionais e absurdas, envolvendo desde pessoas comuns até entidades como o STJD, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva.

O código penal brasileiro prevê penalidades proporcionais para cada tipo de crime, aplicáveis apenas através do poder judiciário. Ele, portanto, veta o linchamento, ato que é criminoso e também passível de punição. Ora, se a torcedora ofendeu o goleiro, se foi configurado ato racista por parte dela, que sejam tomadas as ações judiciais cabíveis. Além disso, seria de se esperar que ela perdesse alguns colegas, até mesmo algum amigo, e que sofresse algum revés profissional por conta de seu comportamento. Tudo isso seria normal e previsível.

O que não é normal, e nem aceitável, é uma reação absolutamente desproporcional e insana contra a gremista. Ameaças de morte, apedrejamento de sua residência, perseguição, terror – tudo o que não se faz nem aos piores assassinos, se fez com a referida torcedora. Os “justos” não só atiraram a primeira pedra, como também a segunda, a terceira, e mais um caminhão delas. A sabedoria, a maturidade e a sensatez deram lugar a um comportamento animalesco, desonroso e hipócrita. Não é difícil imaginar que entre os acusadores de Patrícia haja canalhas, mentirosos, racistas, golpistas e ladrões, gente que talvez tenha desgraçado muito mais vidas, sem jamais ter recebido uma pedrada de reprimenda. Muitos o devem ter feito em oculto, e um bom tanto deles com certeza já usou a mesma palavra, “macaco”, para se referir a algum outro esportista negro de um time rival. Mas nesse momento todos se acham melhores do que ela, porque suas falhas não foram pegas por uma câmera, e nem espalhadas pelas redes sociais.

Para completar a loucura que se instalou no Brasil, o STJD resolveu punir um time inteiro e seus milhões de torcedores por causa da falha de uma pessoa. Todo pai ou mãe sabe que a pior coisa que se pode fazer é colocar os dois filhos de castigo por causa das travessuras de um deles. Assim como os méritos têm de ser reconhecidos individualmente, as punições devem atingir somente os autores dos delitos. Só assim se desenvolve a noção de responsabilidade. A coletivização da sociedade é uma desgraça que mata os talentos, impede o amadurecimento das pessoas, e não faz nada além de criar sub-cidadãos tutelados por um estado cada vez mais gigantesco e patronal.

Quem assiste à sociedade brasileira de hoje assiste a um misto de terror com ficção. Os brasileiros convivem com sessenta mil mortes violentas por ano como se fosse algo normal, mas revoltam-se com um xingamento acontecido dentro de um estádio de futebol, no meio de um jogo onde o juiz, sozinho, é mais xingado em noventa minutos do que muitos de nós numa vida inteira. É uma sociedade que aceita a desonestidade e abraça a malandragem, ao mesmo tempo que condena a virtude e ridiculariza o honesto. É o lugar onde os criminosos são tratados como vítimas, e as vítimas como opressoras. A inversão de valores é tão brutal que os parâmetros e padrões já não codificam mais nada na mente das pessoas. Estamos colhendo os frutos de décadas de plantio de relativismo moral e de sucateamento da intelectualidade.

O Brasil precisa de pessoas extraordinárias, e não de massas ordinárias. Precisa de indivíduos bem educados, e não de grupos inflamados. Menos “justos”, e mais justiça. E quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra.
Título e Texto: Flavio Quintela é escritor e tradutor de obras sobre política e filosofia, e autor do livro “Mentiram (e muito) para mim”.
Artigo publicado no Correio Popular de Campinas, seção Opinião, edição de 6 de setembro de 2014

Cristo e a adúltera, por Nicolas Poussin, Museu do Louvre, 1653.

2 comentários:

  1. Gostei do seu coerente texto, meu amigo Flávio Quintela. Há um ditado muito correto que diz: "macaco só repara o rabo dos outros, sem olhar para o seu próprio rabo". As pessoas acusam o erro dos outros, com severidade, sem fazer uma análise profunda se seus hábitos e atitudes podem servir de modelo para ser copiado! Eu, posso errar, mas o meu semelhante, não pode! A garota gremista errou? Errou. Mas deu um tremendo azar porque foi flagrada pela TV, ficando o seu ato bem documentado. Quem nunca errou de modo idêntico, ou até mesmo com outros tipos de racismo ou preconceito, que atire a primeira pedra... Quando vejo acusarem, xingarem ou amaldiçoarem políticos, me pergunto se não fariam o mesmo se no lugar deles estivem.
    Não existe neste planeta, qualquer ser humano que seja perfeito. Todos, todos, tem defeitos. É como diz muitas cabeças pensantes: "Todo homem, por mais honesto que seja, tem o seu preço". Hipocrisia, por exemplo, é um dos piores defeitos.
    Almir Papalardo.

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  2. Bom texto.
    Eu sou gaúcho não gayucho, como os times de são Paulo, Rio e minas cantam em seus estádios, e nas piadas discriminatórias ao povo gaúcho feitas pelos canais de televisão, em seus programas humorísticos.
    O primeiro negro a jogar em um time no rio Grande dos Sul foi Armando Antunes em 1912, e era sócio do tricolor. O time chamado do povo, colorado, teve seu primeiro negro em 1926, 14 anos depois.
    Um erro não justifica o outro, é bíblico, basta poucos gritarem Barrabás, e o povo grita junto.
    No final gostaria que você Jim, incorporasse o vídeo do qual passo o link:
    https://www.facebook.com/video.php?v=551578791636156
    Lá pelos idos de 1969 ou 1968 não lembro, bem fui assistir Grêmio e Floriano em Novo Hamburgo. o Grêmio perdeu de 1 x 0. Conto alguns detalhes:
    O bandeirinha que corria pelo lado que não era das sociais, bandeirava dentro do campo. Se corresse fora das linhas laterais, dava para segurá-lo pelos calção ou pela camisa.
    A s ofensas eram no ouvido, tete a tete. Eu estava junto a bandeirinha de escanteio, e dava para ver o jogador Loivo chorando, ao bater um tiro de canto ao final do jogo.
    O grêmio foi hostilizado em todo o Brasil por ter a primeira torcida Gay.
    Já que os erros não se justificam, porque o Corinthians não foi punido pela morte do menino?
    Porque Atlético e vasco não foram punidos pela batalha campal que travaram?
    Porque o Náutico não foi punido pelo assassinato com o lançamento de uma privada na torcida adversária?
    A raiva dos times do Rio Grande do Sul é imensa, ou seria raiva dos gaúchos?
    Amarramos nossos cavalos em suas praias e em seus obeliscos, mas todos os nosso presidentes foram honestos.
    Nosso estado lutou para ser brasileiro, e a guerra dos farrapos foi justamente feita, pela discriminação que o governo imprial fazia contra o nosso povo, e pelas dívidas da guerra que o império não pagava. Não foi o imperador que mandou tropas para defender o Rio Grande do Sul, foram os gaúchos que defenderam nossa terra para ficar sempre Brasileiro.
    Punam-se os culpados, nunca a coletividade.
    Pessoas públicas estão sujeitas às injúrias públicas, ou o governo vai punir 50000 gritando em coro para a Dilma ir comer tomate cru.
    Estamos no limite da hipocrisia, não basta conhecer o corno, se chamá-lo de boi é injúria ao pobre animal.
    bom dia.

    https://www.facebook.com/video.php?v=551578791636156


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