Carina Bratt
Ele, aos quinze, queria
receber dela, de quatorze, um sorriso. Um sorriso de Érica (era esse o nome
dela), um sorriso só, bastaria para mudar todo o rumo da sua vidinha pacata de
garoto mal desabrochado para as coisas do amor. Queria ganhar um olhar mais
demorado, um olá, um oi, um tudo bem?
Sonhador inveterado se contentaria com um “senti a sua falta, que bom
que você veio”, a hora em que chegavam de frente à entrada da escola. Queria
acompanhar seus passos. Seguir o mesmo percurso até onde ela morava e a deixar
protegida, depois das aulas, no portão de casa.
Queria permanecer ao lado dela
todas as horas do dia e da noite. Desfrutar juntos, aqueles momentos em que ela
se punha sentada no banco em frente da igrejinha na praça central, para espiar
a imensidão do mar. Dalí o mar se agigantava em toda a sua beleza até se perder
no infinito. Nessas horas, os olhos dela ficavam distantes, perdidos num espaço
imensurável, num vão indistinto, onde os pensamentos, os pensamentos, sabem
Deus por onde se perdiam!...
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Ilustração: Gabriela Lemos |
Queria tocar as suas mãos,
acariciar seus cabelos, olhar demoradamente dentro de suas tristezas e tentar
entender de onde vinham tantas melancolias e sofrimentos. Ele queria mais:
almejava ser a estrada onde ela passaria. O chão de terra batida onde a
encantada pisaria. A cama, o lençol, o travesseiro onde a noite a princesa do
seu gostar se deitava para dormir.
Aos dezesseis, queria um pouco
além do inconcebível. Ser os cadernos na mochila, o romance que lia a caneta
que levava à boca. Igualmente a xícara em que tomava o café matinal, a cadeira
na varanda onde se sentava para estudar. Queria ser a água que molhava seu
corpo, a toalha que enxugava suas intimidades, a escova que deslizava em seus
cabelos compridos.
Aos dezessete, profetizava em
ser o sol que banhava todos os domingos o corpo dela na piscina do clube da
cidade para onde se dirigia em companhia dos pais. Daria a vida para ser o ar
que ela respirava, ou o vento que levantava seu vestido curtinho deixando quase
à mostra o escondidinho que ficava debaixo da calcinha. Ele queria, na verdade,
o impossível, o inalcançável, o irreal. Ele queria, não sabia como, apenas
queria...
Aquela menina, a Érica, um ano
mais nova que ele, parecia tão frágil, tão desprotegida – sentia isso em seu
rosto. Via em seus menores gestos uma solidão descomedida, e a achava, por tudo
isso, cada vez mais bonita e atraente, principalmente quando ela se misturava
aos demais colegas da turma onde sentavam quase a se esbarrarem um no outro.
Lado a lado, ela parecia intemporal. Dava a impressão de que os cosmos se
recriavam extraídos de uma jazida de diamantes.
Nas aulas, ele mal escutava o
que diziam os professores. As disciplinas só não se tornavam enfadonhas, porque
se constituía no único elo que o prendia à presença dela, as carteiras quase
coladas. Sentia, nesses instantes, o seu perfume, o seu cheiro, o seu respirar
entrecortado. Sentia seu calor, seu hálito, incrivelmente as batidas de seu
coração. Na hora do lanche, a turma inteira debandava. A escola em peso virava
um furdunço desordenado. Um griteiro estapafúrdico.
Mas a flor mimosa, não. A
linda, crescente em sua elegância e encantamento, não se misturava à confusão.
Ao contrário das demais mocinhas da idade, recatada se recolhia num cantinho
afastado e ali ficava sentada, quieta, comendo seu lanche, tomando seu suco,
compenetrada na sua solidão até a hora em que a campainha voltava a tocar
anunciando o final do recreio.
Todos então corriam para o
tédio dos bancos das carteiras e ele, para a agressividade do medo que o
dominava. Ele a contemplava, incansável como um menino bobo, tonto na sua
mudez. Perdia um tempo enorme em deslumbramentos infantis. Viajava longe,
rodava léguas e, ao menor movimento dela, bastava um olhar ligeiro. Um lápis
caindo, ou a borracha. O apontador e ele solícito pulava. Saltava correndo na
realidade que atropelava.
Aos dezoito, seu coraçãozinho
descompassava. Sua pele suava fria. Sentia ímpetos de se aproximar, puxar
conversa, deixar um bilhete na bolsa dela, porém um medo antigo, um medo sem
razão, um medo flagelado e suplicioso sem pé nem cabeça, tolhia seus movimentos
mais simples. Érica era a ternura que fluía de dentro dele, o desejo insano que
alimentava em taciturnidade. Quando ela não vinha, por algum motivo qualquer, o
padecimento dele se estampava em transe desconsolando seu rosto pálido e
tornado seu dia numa agonia martirizante.
Aos dezenove, se perguntou
diante de um espelho mudo: será que ela sabia de sua existência? Sim, ela
sabia! E ele sabia que ela sabia? O que pensaria dele? Isso ele não sabia.
Deveria, com toda certeza, achá-lo um tolo! E ele era, de fato, um imaturo, um
abobalhado, um matuto baboso e apaixonado. Apaixonadamente caído de quatro, os
seus fracos todos à mostra.
- Mãe Santíssima como me
achego a ela?
Assim passaram os anos. Eles
cresceram. Érica, aos vinte e cinco, mudou de casa, de rua, de bairro, mas não
de hábitos. Continuava indo até a calçada defronte da igrejinha onde se sentava
no mesmo banco e ficava a contemplar o mar distante. O mar, para ele, aos vinte
e seis, se constituía numa espécie de encarnação emblemática. Ela, para ele,
uma deusa moderna. A placidez das plácidas numa docilidade submissa. Uma
divindade da qual nasciam ramificações invisíveis e que continuavam a tecer
dentro de si, esperanças imorredouras.
Ele, aos vinte e sete,
trabalhava no posto de gasolina lavando carros. Ela, aos vinte e seis, arranjou
um emprego de balconista numa lojinha de roupas para senhoras e crianças
defronte ao posto. Ironia do destino? Sabe-se lá. Nas horas de folga, entre um
carro e outro, ele se punha a olhar para ela, através da vitrine. A espiar
longamente seus movimentos, como se tivesse com a cabeça fora de órbita. Muitas
vezes a flagrou devolvendo esses olhares, como se uma chuva de êxtases em delicadas
geometrias criasse vendavais e tempestades num impérvio sem talvez.
Desta loja, a Érica saia as
seis e ele cinco minutos antes dela. A jovem seguia a pé para casa, três
quadras apenas. No percurso, parava aqui e ali, arrancava uma flor, cheirava,
parava de novo, e contemplava a noite se aproximando. Ele ia alguns passos
atrás, sem dizer nada, sem se deixar perceber. Ela o via, claro. Sabia da sua
presença marcante, obstinada, contudo, não dava nenhuma brecha. Não abria a
guarda. Apenas o vigiava, de soslaio, e sabia que ele estava ali, no seu
encalço, como uma sombra acolhedora.
Aos trinta, como um anjo, ele
continuava a seguir e observar. Reparava e sofria. Sofria na quietude da sua
dor de amor que dia após dia parecia crescer mais e mais dentro de seu eu
estraçalhado. E junto com essa dor, mais se encantava dela. Mais se enamorava.
Mais a amava. Um dia, um dia criou coragem e resolveu chegar. Uma coragem
repentina se fez pesada e densa.
Para azar seu, o inexplicável
entrou em cena. Ele não a viu mais. Não a encontrou na loja em frente de onde
lavava os carros. Inquirida, a dona do comércio não lhe soube dar nenhuma
informação concreta. “Simplesmente não deu mais sinais de vida”. Os dias se
tornaram estéreis e insípidos. Não a viu sequer caminhando, a olhar o mar, a
colher as flores...
Uma semana, duas, cinco.
Passou então, a sofrer do pesadelo da ausência. Sua esperança naufragou,
aprisionada no alcatraz da alma despedaçada. Resolveu, finalmente, bater na
casa nova, para onde Érica havia se mudado. Tocou a campainha. Uma senhora em
idade avançada lhe veio ao encontro. Ao caminhar, a idosa parecia temperar a
cruz de seus dias com as gotas de seu próprio sangue. Ele se apresentou. Perguntou por ela, falou
da escola, da mesma sala, da loja em que ela trabalhava. Expôs as suas
peregrinações, seus medos, enfim...
A senhora a tudo ouviu, sem
interromper. Ao final do relato, se fez ligeira na sua explicação necessária.
Os olhos cansados, as palavras sem pernas. Soluços desesperadores seguidos de
um choro convulso, não davam tréguas. A sua filha Érica havia sido levada às
carreiras para São Paulo. “Sofria do coração, a coitadinha, desde os tempos da
escola primária”. A morte súbita cessou-lhe a vida num repentino. “Foi
fulminante meu rapaz!”.
Estas derradeiras palavras
ficaram gravadas no seu inconsciente. “Foi fulminante meu rapaz!”. Ele se
despediu, pesaroso, macambúzio, tentando engolir a má digestão da notícia
recebida num supetão demoníaco. Ele e seu ponto de fuga se quedaram, vencidos, num
falso ponto de fuga. O banco da praça onde ela se sentava para espiar o mar.
Acomodado nele, aos prantos e gritos, rasgou a sua dor em tiras de fúria.
Título e Texto: Carina Bratt, São Paulo Capital, 02-12-2018
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Com todo o respeito... mas não tem como ler esta frase e não sentir saudades da adolescência!
ResponderExcluir"...o vento que levantava seu vestido curtinho deixando quase à mostra o escondidinho que ficava debaixo da calcinha...."
Mas isto para a maioria de nós faz parte do século passado ,e está arquivado na nossa memória erótica , que insiste em sobreviver.
Teimooosa ela!!!
paizote
Pois é, meu jovem amigo Paizote. O Menino amava a menina, mas o receio mórbido de chegar até ela e dizer o que sentia, destruiu todo os seus sonhos. Se ele tivesse tido a coragem dos fortes e destemidos talvez não tivesse perdido a sua Érica. Bastava ter se achegado (e campo ele tinha para isso, tinha de sobra) e mandado vê. O recado que fluia de seu coração morreu na praia. O grande amor da sua vida estava ali ao lado só esperando uma oportunidade para se concretizar. A mensagem que tentei passar foi a que ficou embutida ou inserida no corpo do texto. Não devemos nos acovardar diante de nossos sonhos, ainda que pareçam impossíveis aos nossos olhos. Devemos lutar de unhas e dentes, até as últimas consequências, enfrentando os altos e baixos, os percalços e empecilhos que surgirem. Em nossa vida, o que realmente vale a pena, o que realmente conta é a busca pelo almejado. Se depois de conseguido, se esse sonho vai durar um dia, dois, ou sessenta anos, o que faz toda a diferença é o momento presente. O agora. E o menino não soube abrir seu coração. Obrigada por ter passado e deixado seu recado. Amei. De coração.
ResponderExcluirCarina,
Ca
(de Vila Velha ES).