Alexandre Homem Cristo
Nesta tentativa de silenciamento
parlamentar, surgiu uma novidade: desta vez, não foi a vontade do PS a definir
as regras do jogo. Parece pouco, mas a sessão legislativa começou com uma vitória.
É-nos ensinado e relembrado
sucessivamente que o nosso regime democrático, como em todas as repúblicas
liberais, está enquadrado por leis, separação de poderes, tradições, práticas
procedimentais e instituições independentes. É inquestionável que assim sucede.
Mas há uma regra não-escrita que permanece crucial para compreender como todas
as peças deste puzzle se encaixam em harmonia: há um partido que decide quando
é que a lei se aplica, quando é que a regra é válida, quando é que a excepção
se impõe, quando é que a tradição impera. Esse partido é o PS.
Os últimos dias trouxeram um
novo exemplo, à conta da discussão sobre os tempos de intervenção dos novos
partidos no parlamento. Ao contrário do que muitos comentadores avaliaram, o
cerne da questão nunca esteve nos precedentes parlamentares ou no cumprimento
escrupuloso do regimento da Assembleia da República, muito menos em eventuais
“incoerências” dos partidos à esquerda – tudo isso seria o importante numa
discussão racional e séria, mas há muito que a seriedade se perdeu. A bússola
necessária para compreender este debate está em conhecerem-se os interesses
circunstanciais do PS.
Em 2015, dava jeito permitir
ao deputado-único do PAN discursar no hemiciclo? Então, instaure-se uma excepção
ao regimento.
Em 2019, é conveniente
silenciar os novos partidos? Nesse caso, cumpra-se rigorosamente o regimento.
Sim, nas palavras do deputado socialista Pedro Delgado Alves, “a democracia também é aquela coisa chata das regras e regulamentos”. Pois, é. Mas a maior das chatices é verificar que o
cumprimento das regras ou a concessão de excepções varia em função das
conveniências socialistas.
Não é a primeira vez, nos
últimos anos, que surge uma tão-evidente exibição desta “soberania” de quem entende o regime
democrático como extensão da sua vontade. Quando, em 2015, se levantou a
possibilidade (até então inédita) de um derrotado em eleições legislativas
formar governo, lançou-se o debate: as eleições legislativas serviriam, para
além de eleger 230 deputados, para a escolha de um primeiro-ministro? Se o
entendimento fosse que “sim”, então a legitimidade de António Costa estaria
posta em causa. E, como tal, não faltaram “soberanos” para logo virem
esclarecer que tal manifestação de preferência popular era um absurdo.
Eventualmente, até será.
O problema é que, em 2004 e
perante igual dilema (a nomeação de Santana Lopes como primeiro-ministro, sem
convocação de eleições), os mesmos “soberanos” interpretaram ao contrário:
Santana Lopes não poderia ser primeiro-ministro porque para esse efeito não
havia sido “eleito” em eleições legislativas.
Um desses “soberanos” foi
Diogo Freitas do Amaral. Vale a pena recordar a sua argumentação, em 2004, em carta aberta ao Presidente da República: “Embora, no
plano jurídico-formal, as eleições legislativas tenham apenas por objeto a
designação de 230 deputados, a verdade é que uma análise substancial de ciência
política mostra claramente que elas têm hoje dois outros grandes objetivos –
revelar o peso proporcional dos vários partidos, e escolher um
primeiro-ministro. (…) Sendo as coisas assim, como são, temos de concluir que
as chamadas eleições “legislativas” se transformaram numa escolha popular do
primeiro-ministro”. Ora, no ano seguinte, 2005, Freitas do Amaral foi
ministro de José Sócrates e, anos depois, em 2015, contrariou o seu argumento inicial para não encontrar
problemas na nomeação de António Costa como primeiro-ministro. Muitos outros
socialistas, como Ferro Rodrigues, foram protagonistas dos mesmos ziguezagues.
O que une estes episódios
referidos – em 2004, 2015 ou 2019 – e muitos outros do dia-a-dia parlamentar é
que os argumentos políticos usados foram sempre contraditórios, mas coerentes
com as prioridades políticas do PS. O que oferece perspectiva sobre o que
aconteceu nos últimos dias entre a conferência de líderes e as comissões
parlamentares.
Sim, as circunstâncias
presentes obrigaram o país a uma discussão desnecessária e absolutamente
ridícula sobre a possibilidade de os novos partidos intervirem nos debates
quinzenais (e se teriam 1 minuto ou 1 minuto e 30 segundos para discursar). E,
sim, tudo foi resolvido atempadamente, de modo a que os deputados-únicos
pudessem usar da palavra no debate de ontem.
Mas a novidade política a
reter foi outra: desta vez, não foi a vontade do PS a definir as regras do
jogo. Parece pouco, mas esta sessão legislativa começou com uma vitória.
Título e Texto: Alexandre
Homem Cristo, Observador,
14-11-2019
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