terça-feira, 9 de junho de 2020

[O cão tabagista conversou com] Gabriel Mithá Ribeiro: “Não basta ser um político notável para resistir. É necessário algo mais. Bolsonaro tem esse algo mais que é difícil de definir”

Segunda parte.

Na primeira parte da nossa conversa nos informou que começou a trabalhar aos 14/15 anos, como servente de pedreiro. Qual a sua avaliação sobre “trabalho infantil”?
Na minha experiência de vida não vejo nada que se pareça com trabalho infantil. Trabalhar, para mim, desde o início foi uma escola de vida à qual muito devo e, sem dúvida, foi a forma de contribuir para que a minha família vencesse as dificuldades com que se confrontava.

Anoto que, em todas as épocas, as atitudes e os comportamentos dos membros mais velhos das famílias modelam os mais novos. A minha mãe sempre foi muito trabalhadora e o meu pai um funcionário cumpridor que nunca abandonou o dever de estudar. Eles não educavam tanto pelo discurso, mas pelo seu próprio exemplo. Se os meus irmãos mais velhos seguiam o mesmo padrão, como mais novo eu nasci e vivo sem sequer questionar os meus deveres de estudar e trabalhar.

Há meio século era esse o modelo da moral familiar, uma tradição quase natural, como a vida. Hoje é tudo muito diferente e para muito pior graças à afirmação das utopias progressistas que se lembraram de dissociar os direitos do cumprimento de deveres, e desde o berço. Aliás, o sucesso das novas utopias é o da sua insistência obsessiva apenas nos direitos, como se cada direito oferecido a alguém não significasse um dever para um outro, desde as famílias à sociedade em geral. Basta que alguém seja diminuído na sua consciência do cumprimento de deveres para alguém acabar sobrecarregado, e isso tem sido corrosivo para a funcionalidade e equilíbrio existencial das famílias.

Quando olho para a geração dos meus pais, tios, etc., gente idosa, e comparo com as gerações mais novas, é óbvio que entre uns e outros se perdeu muito, andamos para trás. Os mais velhos tendem a ser mais empáticos, simpáticos, cordiais, educados, pacientes, com um sentido cívico mais sólido e muito mais tolerantes a posições diferentes das suas. Pelo contrário, as gerações mais novas perderam o respeito pelas mais velhas por se terem tornado mais narcísicas, mais mimadas, arrogantes, altivas, menos pacientes na conquista do seu destino.

No meu tempo de infância, os que eu pensava que eram ricos, estou a falar de brancos em terra de negros no tempo colonial, não tinham nada da arrogância evidenciada por jovens músicos pop ou rappers de sucesso da atualidade que, mal conhecem o mundo e a vida, e já se acham no direito de guiar o destino dos outros com um ativismo besta insuportável. Isso reflete-se, por exemplo, nos comportamentos de indisciplina e violência nas escolas que geram consequências sociais desastrosas, como a má preparação para a vida e depressões que afetam professores ou, numa outra variante, na pressão psicológica abusiva que as novas gerações exercem sobre os polícias.

Algo de muito sério se perdeu que resumo numa expressão: perda do sentido de autorresponsabilidade pelo nosso próprio destino. A nobreza da vida familiar e social foi como que jogada no lixo. Todavia, nada do que refiro significa que ignoro o problema do trabalho infantil. Só que a questão tem um duplo sentido. Por um lado, os valores morais e sociais evoluem com o tempo e a proteção da infância é absolutamente fundamental e não tem de ser a mesma das gerações nascidas há meio século ou mais.

E não apenas a proteção contra o trabalho infantil, mas também contra os excessos de erotização do corpo infantil ou a pedofilia, agora latentes, por exemplo, no ensino da ideologia de género nas escolas contra a qual, felizmente, as sociedades começam a reagir. Não nos podemos esquecer que se deve à tradição religiosa, destaco a judaico-cristã, a primeira, mais sólida e milenar proteção moral e social da infância.

Por outro lado, também não nos podemos esquecer dos riscos do anacronismo, de remeter para o passado valores que se instituem em contextos distintos dos do presente. A isso acrescento ainda os riscos de abordagens por analogia no espaço, isto é, transferir diretamente valores e hábitos de sociedades com determinadas características para outras profundamente distintas.

Veja-se o caso das políticas de proteção da infância peculiares das sociedades ocidentais que foram transpostas pela esquerda globalista ocidental para as sociedades africanas e, consequentemente, instigaram a desautorização dos pais e dos mais velhos na regulação da vida familiar, uma orientação tradicional em África sempre havia funcionado. Essas mudanças foram impostas sem que, em troca, existissem em África instituições de ensino ou de preparação cívica com uma qualidade mínima que compensassem a desvalorização dos mais velhos e da família tradicional africana de tipo clânico.

Essa engenharia social progressista conduziu a situações de anomia social crescentes hoje seriamente ameaçadoras das sociedades africanas. Claro que a relação com o ideal de criança deve melhorar em todo o mundo, mas por vezes as utopias globalistas destroem o que existe sem garantir que a transformação será sustentável para, no final, tudo ficar pior ou mesmo muito pior do que estava. A isso chama-se irresponsabilidade.

Fiz trabalhos de campo nas diversas cidades moçambicanas, entre 1997 e 2015, e vi crescer esse tipo de fenômenos a olhos vistos. Questões como o disparar das gravidezes adolescentes, com crianças que crescem sem a presença do pai ou de um familiar masculino mais velho, ou mães adolescentes que ainda não chegaram aos vinte anos e já têm dois ou três filhos de pais diferentes.

A desestruturação das famílias africanas é demasiado preocupante. Elas já não são nem famílias tradicionais africanas, mas também não são famílias nucleares de tipo ocidental. Só isso basta para comprovar que a pobreza deriva da moral, das atitudes e dos comportamentos, e não de condições materiais prévias como nos querem fazer crer os marxistas, os pais da tragédia que África vive e que se arrastará por gerações. E não tinha de ser assim.  

Atualmente é professor universitário, certo?
O meu discurso não dá para isso. Tem de ter custos. A minha vida universitária vai aos solavancos. Isso tem um lado bom, pois os compromissos institucionais, como hoje funcionam, matam a liberdade de pensar.

Concluí o doutoramento e estive cerca de meia década como investigador bolseiro pós-doutoral no ISCTE-IUL, em Lisboa, num dos seus núcleos da esquerda radical, o dos estudos africanos. O que me havia de calhar! Claro que nunca tive qualquer convite, nessa universidade pública, para nada que fosse significativo, como leccionar uma das cadeiras dos cursos em estudos africanos. Investigava, publicava e fazia conferências de forma solitária, o que intelectualmente é ótimo, mas mau para a minha integração na instituição e na carreira acadêmica. Por ser como sou, nunca tive direito a mais. O mais era, e é, reservado aos acadêmicos de esquerda.

Saturado desse ambiente, mudei-me como investigador para o Instituto de Estudos Políticos, da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP), uma universidade privada a tender para a direita onde, de início, tive convites para leccionar. Mas tudo muito condicionado por relações e simpatias pessoais e, inclusive, algumas pessoas influentes iam me fazendo engolir alguns reparos sobre os meus posicionamentos públicos: Não aprecio a linguagem do seu texto [na imprensa].

Mantenho-me formalmente ligado ao IEP-UCP, mas em banho-maria. Como desde 1991 sou docente do ensino secundário, posso ciclicamente regressar ao meu posto. É a forma de garantir autonomia salarial e liberdade de não depender de bolsas, pareceres, financiamentos públicos associados a amizades e compadrios.

Essa independência tem sido a chave para poder pensar, publicar, escrever, intervir com liberdade. Se reparar, os acadêmicos de carreira – investigadores ou docentes – estão presos no mainstream, muito óbvio no espaço público, mesmo aqueles que em privado não são assim, são mais genuínos.

Como vou tendo convites para participar em júris acadêmicos, realizar conferências, seminários ou colaborar em alguns projetos universitários, ou de outra natureza, preservo a minha ligação ao meio com uma liberdade de pensar impagável.

Estou sem lecionar no ensino universitário há dois/três anos e, pelo menos para já, não tenho pressa em voltar e, se isso acontecer, gostava que ocorresse quando a minha liberdade intelectual estivesse absolutamente garantida no espaço público, quando fosse uma marca pessoal que não me fizesse depender de simpatias ou complacências.

Por coincidência, foi nesse período que publiquei o meu livro mais ousado. O sabor da liberdade. De resto, no ensino secundário leciono os décimos-segundos anos (pré-universitários), um programa que aprecio bastante e que, de algum modo domino, a história dos séculos XX-XXI. Aliás, quando estou alguns ciclos afastado do ensino secundário, o regresso é sempre bastante fértil para o tipo de investigação que faço sobre problemas sociais comuns, como a indisciplina, a violência, famílias desestruturadas, relações raciais, dificuldades socioeconômicas, pré-delinquência juvenil, ideologia de ensino, burocracia, comunidades minoritárias, imigração, entre outros.

Para mim tem sido muito importante nunca me ter isolado na redoma bem-pensante dos meios universitários, os espaços do mundo de onde a liberdade de pensar foi mais eficazmente banida pela esquerda.

Nas ciências sociais ou na história, em especial nos estudos africanos, é como se a vida inteligente tivesse sido morta e o debate acadêmico fosse uma mera cavaqueira de consensos. Claro que nas sociedades anglo-saxônicas é um pouco diferente, mas não em Portugal. Porém, em Portugal ou fora, na área dos estudos africanos onde fiz o mestrado, doutoramento e a investigação pós-doutoral venha o diabo e escolha.

Como é a convivência com os seus pares na Universidade, cientes que somos da ideologia política que os caracteriza, antípoda da que o professor defende?
Não alimento uma relação fácil com os meios acadêmicos, pelas razões que referi. Mas não se pense que o assunto se resume a acadêmicos e meios universitários de esquerda. A questão é bem mais abrangente e transversal. Há uma crise profunda do conhecimento e a universidade atravessa um ciclo muito mau enquanto lugar que deveria ser, por excelência, do pensamento crítico, do teste permanente ao conhecimento.

Só para lhe referir dois exemplos da minha experiência direta em Lisboa, enquanto a universidade de esquerda onde estive, o ISCTE-IUL, é um desastre teórico nos domínios onde trabalho por causa da sua orientação marxista omnipresente, porém ao nível metodológico é muito forte porque instiga a realização de trabalhos de campo, como entrevistas, inquéritos, pesquisas diversificadas no terreno para se captar, testar e compreender a vida vivida pelas pessoas comuns tal como efetivamente se manifesta no seu quotidiano, embora essa vantagem se perca por causa do ponto de partida teórico.

Por seu lado, a universidade de direita onde vou estando, o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP) é justamente o contrário. Teoricamente é muito mais forte, os grandes pensadores da milenar tradição ocidental têm muito peso, não há desprezo ou censura a esse nível, pelo contrário, e aprendi imenso, mas depois a nível metodológico é radicalmente provinciana, livresca, não sai da biblioteca ou do seminário para espreitar a rua, vivendo numa redoma de classe média e alta e, até, confundindo Lisboa com Londres.

A censura aqui, manifesta ou encapotada, dirige-se a quem pise o risco metodológico, a quem busca um genuíno suporte empírico para o conhecimento, o que acaba por deixar os ousados isolados ou serem afastados.

A minha experiência da universidade de direita deixou-me a impressão dela viver daquilo que se chama o saber sistêmico, a teoria pela teoria, o livro pelo livro, despidos da realidade vivida pelas pessoas comuns. As universidades ditas de direita traduzem, à letra, os bloqueios da direita política propriamente dita que quando não se quer submeter à esquerda, não sabe para onde ir e como, nem chegar à vida quotidiana propriamente dita.

Por exemplo, quando cheguei à Universidade Católica, em Lisboa, tive de engolir em seco uma expressão de um seu responsável máximo: Não quero cá isso de entrevistas. E eu questionando-me a mim mesmo: Então o que é a realidade para esta cabeça acadêmica?!!!

Tudo isso faz-me questionar qualquer desses modelos de universidade, um e outro vivem uma profunda necessidade de renovação. Não acredito que ela avance com amizades e compadrios, antes pela força do distanciamento crítico. Este só me parece possível de fora para dentro, da opinião pública para as universidades, uma vez que estas, por si mesmas, não mexem uma palha para se renovarem.

Pelo que vivi, tenho até a impressão, ou mais do que isso, a certeza de que as universidades são hoje focos de produção de estressados e deprimidos por causa das pressões das candidaturas e das carreiras, das burocracias, das relações pessoais, dos padrinhos, das amantes, das publicações de artigos científicos por medida, das dependências políticas, das benesses dos financiadores estatais ideologicamente orientados. Nada disso favorece a liberdade e a segurança indispensáveis à tranquilidade e fertilidade do trabalho intelectual.

É por isso que Olavo de Carvalho revolucionou o conhecimento e, através dele, a sociedade no Brasil. Ele não tem compromissos institucionais, seja com órgãos de imprensa, seja com universidades, seja com financiamentos públicos. Isso deu-lhe uma liberdade intelectual única.

Não basta ser um gênio intelectual, é preciso criar as condições para tal ao longo do tempo e, muitas vezes, escolhendo o caminho mais difícil ou o mais arriscado, o da independência funcional. Essa foi sempre a marca dos grandes intelectuais. As universidades atuais matam justamente essa possibilidade.

E não é por acaso que, desde 2005, para pensar em liberdade e em segurança sobre o Brasil, Olavo de Carvalho foi viver para os Estados Unidos da América, isto é, radicalizou a sua independência intelectual. Os resultados são inequívocos.  

E com os alunos?
A minha relação com os alunos tem sido bastante saudável porque gosto mesmo da profissão de professor, onde quer que a exerça. Sempre que reencontro antigos alunos, mesmo passados muitos anos, fico feliz porque, bem ou mal, as minhas aulas não lhes são indiferentes e, por vezes, lembram-me detalhes de que me havia esquecido, como uma história ou conversas.

Quando os alunos avaliam os docentes no ensino superior, esse para mim nunca foi um problema, e muito menos no caso das conferências. Bem pelo contrário. Mas aprendi que não é pelo que se faz ou deixa de fazer numa sala de aula que se rompem os compadrios que suportam as carreiras universitárias. Pode até ser o contrário. A liberdade de ensinar é um risco. Até porque se nós queremos que os nossos alunos pensem criticamente, que sejam inteligentes, não existe alternativa a posicioná-los criticamente contra o bloqueio intelectual das universidades, a começar pela sua própria universidade e pelos seus próprios professores.

Para a pessoa fazer isso, mesmo com rigor e prudência, tem de ser um outsider e manter certas distâncias ao nível dos relacionamentos pessoais e tudo mais e, como disse, isso tem custos. O que importa é lançar sementes para que alguma coisa mude no destino das nossas sociedades e do mundo, e essa compensação já tenho garantida. No ensino secundário é mesma coisa, embora aí pontualmente seja necessário alguma frontalidade, às vezes um pouco mais radical, para combater os abusos e a indisciplina.

Essa notícia só torna mais evidente aquilo que a comunicação social já há muito fazia com apoios do poder socialista através do Estado menos óbvios, mais indiretos. Praticamente desde o escândalo do Watergate, nos EUA, que a comunicação social foi transitando de garante da democracia e do pluralismo político e ideológico para, em vez disso, se ir colocando no âmago da ameaça a essa mesma democracia ao se ter tornado monoideológica esquerdista.

A imprensa portuguesa segue esse padrão de modo ainda mais radical porque nasceu dele, em 1974, ao contrário da imprensa americana que, apesar de tudo, tinha um longo passado diferente. Por si mesma, a imprensa trocou o papel distante do analista pelo papel de jogador de uma das equipas.

É nesse ponto que estamos em Portugal, e de forma ainda mais descarada desde 2015 pelas características radicalmente esquerdistas do governo, sendo que os apoios a pretexto da pandemia, em 2020, são mais uma escalada desse velho descaramento. A SIC e a TVI, como as mais fiéis entre as grandes cadeias de televisão e pelo seu impacto público, foram as mais compensadas. Mas também pelos seus ataques continuados ao governo anterior, de Pedro Passos Coelho do PSD que, se os meus desejos fossem para valer, bem que poderia ter privatizado a televisão pública, a RTP, outro sorvedouro esquerdista de dinheiros públicos.

Teria sido a forma de obrigar as três televisões – RTP, SIC e TVI – a concorrerem no mercado da publicidade a ver se eram mais ponderadas. Se a política é o que resulta da relação entre o Estado e a Sociedade, a comunicação social, em especial as televisões, corromperam essa relação porque, em vez de fazerem chegar as diferentes sensibilidades sociais ao Estado, de baixo para cima, fazem justamente o contrário. Comportam-se como máquinas de recados diários do Estado, isto é, do Governo para a Sociedade. Isso mata a vitalidade e fertilidade de qualquer sociedade. Mata qualquer democracia.

De resto, a correspondente brasileira da SIC, a jornalista Ivani Flora, representante oficiosa do PT há décadas e anti-Bolsonarista encartada nas telinhas de Portugal, está como peixe na água nesse jogo corrompido, nessa corrupção mental. Neste domínio e apesar de tudo, os EUA sempre foram diferentes e muito mais plurais.

O Brasil, por iniciativa das próprias pessoas, está a avançar para uma renovação fundamental no sentido do pluralismo da imprensa resgatando a liberdade da Sociedade na relação com o Estado. Há uma nova geração de gente da imprensa não comprometida com o marxismo que vai consolidando o seu espaço, que vai ganhando terreno à imprensa tradicional, como a CNN ou a Globo, o que é muito bom.

Infelizmente em Portugal não existe nada que se equipare à Jovem Pan ou ao Brasil Sem Medo. A pouca imprensa que tenta ser mais genuinamente próxima da verdade e do pluralismo, como o Notícias Viriato, um jornal online, é logo silenciada e perseguida, até judicialmente. Não só não tem apoios estatais, como é fortemente atacada por quem os tem, o que faz do mercado da informação, em Portugal, um atentado à liberdade e ao civismo. Não poderia ser pior. Está tudo muito distorcido. No contexto da Europa Ocidental, Portugal atual representa o terceiro-mundo.

Como e por que Portugal se tornou esquerdista?
Uma coisa é o regime e outra é a sociedade. Não creio que a sociedade portuguesa se tenha tornado esquerdista, ao contrário do regime político. O povo português é dos mais velhos na face da terra e tem tendências conservadoras e pacíficas sedimentadas no tempo. Mas isso no domínio cívico, identitário, cultural.

No domínio da participação política, o reflexo dessas características está na desmotivação e desmobilização, o que acaba por ser uma forma de resistência silenciosa contra o histerismo permanente da elite esquerdista que tenta moldar a cabeça dos jovens através do controlo agressivo do ensino, do básico às universidades, ou da comunicação social.

Isso começou em 1974 quando a esquerda passou a explorar os inegáveis traumas portugueses associados à guerra colonial (1961-1974) e à ditadura do Estado Novo (1926-1974). Porém, esse filão tem sido hipervalorizado e hiper-enviesado a favor da esquerda e, por isso, não durará para sempre, como toda a falsidade. Mas também porque a lenga-lenga esquerdista nunca fez o país mais próspero, e sabemos o valor que tem a autoridade moral da prosperidade que a esquerda nunca alcança, assim como à medida que o tempo vai passando os jovens portugueses ambicionam cada vez mais ser europeus, o que nunca será possível com a esquerda no poder.

Nesse contexto, e mesmo que de forma passiva e suave, o lado conservador e pacífico da sociedade portuguesa acaba por se revelar muito resistente e capaz de contrariar os ideólogos do ensino ou da imprensa através da intimidade dos ambientes familiares, religiosos, entre outros, o que agora avançou para a internet.

O número elevado de portugueses que não se dá ao incómodo de ir votar, cerca de metade dos eleitores inscritos, uma vez que o voto em Portugal não é obrigatório, é bastante sintomático disso mesmo, do seu conservadorismo.

Se as pessoas de esquerda fazem da ida às urnas uma espécie de missionação, nunca deixam de ir votar, o absentismo significa que existe um enorme potencial social para uma mudança social e política substantivas, e que dão sinais de se ter iniciado. Talvez venha a ser lenta, mas uma vez iniciada parece-me irreversível e continuará sustentável por gerações. Mas para isso ser saudável, para conduzir à estabilidade social e política e à prosperidade econômica, será necessário que uma parte das elites vá, conscientemente, buscando conciliar as profundas tradições morais, identitárias, sociais portuguesas com a liberdade e a democracia, um compromisso entre a tradição de matriz judaico-cristã e a modernidade que é fundamental e ainda está por fazer, justamente contra as revoluções progressistas e as suas sequelas que destroem mais do que criam.

O Chega, de André Ventura, está a conseguir abrir essa autoestrada que é a que a esquerda portuguesa mais teme, a candidatura deste às presidenciais de 2021 ajudará a consolidar essa ambição.

Esta não tem avançado mais porque uma parte da direita portuguesa é moralmente de esquerda e julga-se de direita, ou nem sequer consegue demonstrar uma identidade política consequente que seja confiável pelas pessoas comuns que não se reveem na esquerda, as que votam e a grande massa abstencionista.

Entre as cabeças desarrumadas, moral e politicamente, destaco a do atual líder do PSD, Rui Rio. Não poderia ser pior. Daí que a mudança tenha de começar justamente pelo debate sobre os fundamentos morais da existência humana em nada abonatório a qualquer aproximação à esquerda. Vamos aguardar.

O professor já declarou o voto nas próximas presidenciais portuguesas: André Ventura. O atual presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, na minha avaliação, é de uma inutilidade acachapante. Sabonete criação e sustentação da mídia militante. Se ele fosse alvo de somente dez por cento do ódio devotado pela mídia brasileira ao Bolsonaro, o senhor Sousa já teria voltado para a televisão...
Gosto da palavra acachapante. Língua maravilhosa! No passado, tive alguma simpatia pelo atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Ele até prefaciou um livro meu e votei nele nas presidenciais de 2016. Mas desde então tem feito o contrário do esperava dele.

A extrema-esquerda dizia da esquerda moderada que esta agarrava a viola com a mão esquerda e tocava com a direita, numa alusão à sua gestão do poder antes e depois das eleições. Marcelo Rebelo de Sousa fez justamente o inverso. Antes das eleições a sua base de apoio situava-se à direita e, após as eleições, abandonou-a para deslocar a sua ação política, tornando-a ostensivamente protetora da esquerda, da socialista à radical, num país onde a esquerda é hegemónica e a maior causadora de miséria.

O ciclo atual de relações institucionais entre o presidente da República e o governo, fortemente adornado à esquerda, anda perto de provocar uma ruptura desastrosa com o Brasil ou com os EUA, economias demasiado importantes para a economia portuguesa.

Não só o presidente da República não suavizou os riscos primários anti-Trump e anti-Bolsonaro da atual governação socialista portuguesa, como tem feito coro com ela e com os seus apoiantes da extrema-esquerda, agravando um problema que, infelizmente, deixará más sequelas para Portugal.

Além disso, por ser alegadamente de direita, Marcelo Rebelo de Sousa amordaçou, como nunca, a oposição do centro-direita, do PSD e do CDS-PP. O silêncio desta tem graves efeitos internos e externos para o país.

Para além da situação difícil das relações com o Brasil e com os EUA, a própria relação com a União Europeia caminha para um estado pantanoso, em especial com os Países Baixos/Holanda, deixando uma imagem dos portugueses como parasitas morais da Europa, a imagem do mendigo sem-vergonha e, por cima, agressivo e mal-educado, como há poucas semanas demonstrou o primeiro-ministro António Costa acusando o ministro das finanças holandês de ter proferido declarações repugnantes, como se ninguém, para cima uma figura institucional, pudesse fazer reparos a um miserável socialista do sul da Europa.

Alimentar essa imagem dos portugueses não tem perdão. No caso do Brasil, há até uma ingerência abusiva naquilo que são as decisões soberanas dos brasileiros que nunca fizeram nada de semelhante, ao longo da história, em relação aos governos de Portugal. Tudo isso é demasiado grave.

Por essas e outras razões, o meu apoio à candidatura presidencial de André Ventura é inequívoco. No passado, no início tive dúvidas e esperei algum tempo para avaliar o anterior primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e pouco depois de se tornar líder do PSD percebi tratar-se de um dos mais sólidos e respeitável estadistas portugueses.

Aconteceu o mesmo com André Ventura. De início tive dúvidas, não sobre a pessoa dele, mas sobre a sua capacidade de construir um caminho consistente, até por estar praticamente solitário. Pouco depois de se tornar deputado, em finais de 2019, e da sua ação ser publicamente visível, desfiz as dúvidas.

Ao não ter complexos em ser de direita, André Ventura será fundamental para a recuperação moral, identitária, econômica, civilizacional de Portugal. Antecipo-lhe um futuro consistente que, neste momento, não vislumbro em mais nenhum dos políticos portugueses da direita no ativo.

Como viu, e ainda vê, a malandrinha solução governativa costurada pelo senhor Costa e os dois partidos de extrema-esquerda, logo após a vitória do então recandidato, Pedro Passos Coelho, em outubro de 2015?
Muito mal. Mas favorável a prazo. Por razões históricas, a democracia portuguesa nasceu, em 1974-1975, com um forte pendor centrista, mas sempre a tender para a esquerda. Por um lado, isso foi fruto da profunda crise dos norte-americanos durante a guerra fria, após perderem a guerra do Vietname e por causa do escândalo do Watergate e do choque petrolífero. Tudo em 1973.

Logo, a revolução portuguesa de 1974 surgiu na dupla coincidência do retraimento dos EUA da cena internacional e do auge da influência soviética no mundo. Estava marcado nas estrelas: a renovação política em Portugal, e nas suas ex-colônias, tinha de ser de esquerda. Em 1974 não havia outra possibilidade.

Por outro lado, e porque apesar de tudo o país localiza-se no coração do Ocidente, a disputa política mais significativa nesse período de 1974-1975, decisivo na redefinição política do país, acabou por ser entre comunistas radicais de esquerda, seguidores das ditaduras da então Europa de Leste, e socialistas moderados, estes no sentido da socialdemocracia da Europa Ocidental, com vantagem para estes justamente por causa do contexto geográfico referido.

Contra os comunistas portugueses, os socialistas souberam aliar-se, nos momentos decisivos, ao PSD e ao CDS-PP, ambos da direita moderada, uma laica e outra cristã, porém ambas contaminadas pelo marxismo. Daí o forte pendor centrista do regime político português após a ditadura, uma democracia hegemonicamente dominada pelos partidos políticos do centro.

Todavia, a ruptura entre socialistas e comunistas foi sempre mais instrumental do que ao nível da essência dos seus ideais morais, intelectuais ou políticos. Esse equilíbrio durou de 1974-1975 a 2015, quarenta anos.

Foi no último ano que, para usurpar o poder do vencedor das eleições, Pedro Passos Coelho, do centro-direita pelo PSD, que se deu a grande mudança nos equilíbrios políticos da democracia portuguesa. O atual primeiro-ministro socialista, António Costa, homem capaz de vender a alma ao diabo em nome do controlo do poder, em vez de promover a velha aliança, contabilizou os apoios no parlamento à extrema-esquerda e virou-se para esse lado, para comunistas e para o bloco de esquerda, os velhos inimigos, inaugurando uma nova era na política portuguesa.

Foi António Costa quem arrumou a esquerda para um lado e a direita para o outro. Isso está a ser fundamental para a revitalização da democracia portuguesa. Não tanto por causa da esquerda, mas porque felizmente deixou uma parte significativa da direita dita moderada, do PSD e do CDS-PP, atarantadas. Mas têm de se redefinir ou definhar. Ainda bem.

Até agora, só André Ventura foi inteligente para perceber que a renovação da democracia portuguesa passa pela clara separação de águas entre a esquerda e a direita, e que a direita tem de se assumir enquanto tal, tem de ser decididamente anti-esquerda, seja ela radical ou moderada. Esse é o caminho do futuro.

Antes das próximas eleições legislativas de 2023, penso até que se Pedro Passos Coelho regressar à vida política ativa e à liderança do PSD, como desejo, e sem se confundir com o espaço político, entretanto consolidado por André Ventura, a direita no seu conjunto terá condições para iniciar um projeto sólido.

E quando digo sólido, digo válido para as próximas gerações. Espero que um e outro protagonistas, Pedro Passos Coelho e André Ventura, entendam isso mesmo. Mas temos de esperar para ver. E claro, não fica de fora a hipótese de ser um outro protagonista no PSD que não Rui Rio, mas que saiba capitalizar a herança de Passos Coelho e obter o seu apoio.

Como conheceu Olavo de Carvalho?
Desde a minha infância, em África, sempre tive interesse pelo Brasil. Porém, a chegada ao poder do PT esmoreceu esse interesse que, no entanto, retomei aquando da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência da República. Mesmo não conhecendo a fundo o Brasil, era óbvio que o país tinha de mudar para melhor, mas paradoxalmente parecia impossível.

Para a minha sensibilidade, tudo se precipitou com o atentado de Juiz de Fora, em setembro de 2018, cometido contra o então candidato, Jair Bolsonaro. Daí em diante passei a seguir um pouco mais o que se passava no Brasil. Inclusive, o episódio de Juiz de Fora acabaria por ser decisivo para o livro que publiquei em 2019, Um século de escombros.

Foi naquela altura, em 2018, que descobri os vídeos de Olavo de Carvalho, pensador que desconhecia. Constatei logo que era um analista notável. Mas também fui tomando consciência de que o poder da censura da esquerda acadêmica, intelectual e da imprensa, brasileira e portuguesa, iam muito além do que eu poderia imaginar. Era brutal.

Eles foram capazes de esconder deste lado do Atlântico, dos portugueses, por bem mais de uma década um dos intelectuais mais brilhantes do Brasil, Olavo de Carvalho. Como é possível alguém cujo livro vendeu meio milhão de exemplares no Brasil seja, ainda hoje, ignorado pelos portugueses, em especial pela intelectualidade portuguesa? Além disso, um ou outro intelectual de vão de escada português, por cima, dá-se ao trabalho de distorcer e achincalhar, por ignorância, o pensamento de Olavo de Carvalho. Pura maldade esquerdista. Pura violência censória.

Depois, quando li «O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota» (2013) fiquei absolutamente convencido. Olavo de Carvalho é o primeiro e único sábio pós-marxista a reinventar a palavra escrita, o verbo, enquanto força moral e intelectual que se transmuta em força cívica, política, social, identitária. Com Olavo de Carvalho voltou a ganhar vida própria uma escrita portadora da capacidade de gerar pessoas predispostas a impor a transição das palavras aos atos, do papel para a rua, do intelecto para a vida prática da gente comum, do abstrato para a intimidade da alma do sujeito. Isso é notável no século XXI. Ele é a alma do novo Brasil ao conseguir resgatar a identidade brasileira do comunismo.

A sociedade brasileira é hoje um caso notável de disputa entre duas repúblicas de filósofos, a marxista, estafadamente testada, e a olaviana, à procura do seu lugar ao sol. Olavo de Carvalho fez as pessoas comuns, a rua, perceberem isso, um caso único no mundo de ligação entre um pensamento filosófico com uma dada orientação moral, a da secular tradição acidental, e a vida quotidiana.

E o facto de haver um distanciamento claro entre o pensador, Olavo de Carvalho, e o político, Jair Bolsonaro, torna o caso extraordinariamente interessante porque faz do Brasil o símbolo de uma disputa que é a maior disputa do mundo na transição do século XX para o século XXI.

Supondo que o presidente Jair Bolsonaro continue a resistir no poder, olho para o papel do Brasil, no século XXI, como para o papel da Rússia, no século XX. A Rússia mudou o mundo para o Mal e o Brasil de Olavo de Carvalho tem tudo para mudar o mundo para o Bem. Nunca torci tanto pelo sucesso do Brasil.   

Tem acompanhado a dificuldade de Jair Bolsonaro em governar?
Como referi, desde o atentado de Juiz de Fora, de 2018, que sou um apoiante incondicional de Jair Bolsonaro. Ele conquistou uma segunda existência após o atentado e revitaliza-a a cada episódio que parece uma montanha difícil de escalar, mas o presidente do Brasil consegue.

Sejam as insinuações torpes associadas ao assassinato de Marielle Franco, sejam as barbaridades que se escreveram sobre os incêndios na Amazônia, sejam as acusações absurdas do ex-ministro Sérgio Moro, dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, ou sobre a gestão da pandemia do vírus chinês, ou ainda a invenção acusatória da criação do Gabinete do Ódio. Apenas exemplos que nunca param.

Não basta ser um político notável para resistir a tudo isso. É necessário algo mais. Bolsonaro tem esse algo mais que é difícil de definir, mas tem a ver com uma ligação transcendental com a vida que faz com que ele se imponha a si mesmo um rumo que segue e que o torna socialmente contagiante. É aquilo que o Max Weber designou por carisma, mas este sociólogo não pensava em sociedades onde o poder seria fortemente disputado a cada dia.


É por isso que Jair Bolsonaro tem mais qualquer coisa do que o simples carisma, o que se reflete numa maneira de se exprimir que é sempre genuína, da boa disposição à irritação.

Claro que num mundo de elites idiotas cujas cabeças têm como modelos Lenine, Estaline, Mao, Ho Chi-Minh, Fidel, Chávez, Kim Il-sung, Che Guevara e outros que tais, muitos não conseguem enxergar a singularidade de políticos como Jair Bolsonaro. Mas uma cabeça razoável que seja capaz de distinguir o essencial do acessório percebe, à distância de um continente, que Bolsonaro já é maior do que o seu país, apesar deste ser do tamanho de um continente, em termos de influência e tem tudo para reinventar os destinos do mundo, em especial do hemisfério sul no seu conjunto.

Reduzir Jair Bolsonaro a um político brasileiro acidental é uma das manipulações mentirosas da esquerda brasileira e mundial justamente porque estão assustadas, e de tão assustadas confirmam a dimensão política de Bolsonaro.

Quem sonha que os africanos, os da África, odeiam Jair Bolsonaro, a prazo irá perceber as razões do seu tiro ter saído pela culatra. Basta que o atual governo do Brasil seja eficaz no combate aos homicídios e à criminalidade, que reverta o mal da corrupção, que corrija a situação de descalabro econômico que herdou ou que melhore o ensino, e já existem sinais de sobra que isso vai acontecer, tudo males de que África padece em larga escala, para Bolsonaro se transformar num modelo além-fronteiras em aspetos cruciais da governação contra as pesadas heranças deixadas pelos marxistas por todo o mundo.

As pessoas comuns não são estúpidas. Só a imprensa acredita no contrário. Há um dia em que a mudança se inicia. Parece-me que nem os brasileiros que o apoiam, e nem o próprio presidente Jair Bolsonaro, perceberam que ele já é uma figura mundial para uma parte significativa do mundo, imagem que nada tem a ver com o que a imprensa quer fazer crer.

Hoje, e por todo o mundo, os indivíduos são escolarizados e têm acesso às tecnologias de comunicação e informação e, tal como sempre, têm sempre um papel ativo na construção do seu próprio conhecimento sobre o mundo que o rodeia, as suas cabeças não são meras caixas vazias para as quais se despeja passivamente o que quer que seja. Como é que um indivíduo que vive num país pobre de ladrões, corruptos e incompetentes, o que não falta pelo mundo senão não havia tanta miséria, passa a olhar para o seu governo quando sabe que há um tal Bolsonaro que é o oposto dos seus próprios governantes e lá no Brasil as pessoas afinal confiam nele?

Daí que me pareça que o combate frontal à comunicação social tradicional esquerdista ultrapasse o mero detalhe. É um aspeto fundamental. O presidente Jair Bolsonaro e os seus conselheiros devem perceber que furar essa comunicação social perversa não é só importante para a sua mensagem chegar aos brasileiros, mas também ao mundo.

Ninguém pede ao presidente Jair Bolsonaro que ambicione mudar o mundo, o que é um absurdo. O que se pede é que tenha consciência e se concentre em mudar o Brasil, e para isso já comprovou ter uma força extraordinária, mas que faça com que o mundo pobre, e não apenas o mundo rico, perceba por si mesmo essa mudança. Ao fazer isso, há um efeito de contágio.

Os que melhoram as suas famílias e sociedades são aqueles que se mudam e melhoram a si mesmos em primeiro lugar, e depois ou outros reconhecem e podem seguir o modelo. Só o narcisismo da mente esquerdista acha que deve mudar tudo à sua volta para ela continuar como sempre.

Aliás, se a esquerda brasileira ousar derrubar Jair Bolsonaro que desfaça desde já as ilusões. Em África e, no geral no hemisfério sul, é muito mais provável que a esquerda passe a ser olhada com hostilidade, jamais com a bonomia com que o mundo olhou para Lula da Silva e para o PT. Isso é passado, e para sempre. Quanto ao hemisfério norte, as reações anti-regresso da esquerda brasileira ao poder antecipo que sejam ainda mais hostis a prazo.

Lourenço Marques era mais bonita do que Luanda?
Para mim, é difícil comparar Lourenço Marques com Luanda. Conheci e cresci na Pérola do Índico e conheço a sua beleza, quer associada à orla costeira e ao mar, quer as características urbanísticas que continuaram mais ou menos preservadas mesmo depois da independência, embora cada dia mais descaracterizada. É uma cidade rasgada por grandes avenidas retilíneas, como a Avenida Pinheiro Chagas/Eduardo Mondlane e a 24 de Julho, e composta por quarteirões bem arrumados que geram uma continuidade harmoniosa entre a parte alta e a baixa.

LOURENÇO MARQUES. Avenida da República. Ed. Livraria e Papelaria Progresso. SD. Circulado em 20-6-1969. Coleção de Aurélio Guerra
Com o aumento da densidade do trânsito já no século XXI, essas características belas, no entanto, tornaram-se disfuncionais para a circulação. Basta uma das grandes avenidas ficar congestionada para que o trânsito se torne num caos, posto que ficam impossibilitados de circular para um dos lados da cidade, a baixa ou a alta, e desde a independência não houve a compensação de uma rede pública de transportes que corrigisse o traçado original das ruas.

A cidade tem sofrido muito também com a falta de civismo, quer da parte dos moradores que não fazem a manutenção das habitações que, no caso dos prédios, é muito degradante para as condições de vida e para o aspeto da antiga bela cidade, quer no que têm a ver com a ocupação e usufruto dos espaços públicos. Por exemplo, as pessoas urinam onde não devem, a recolha do lixo não é a mais eficaz, os mercados de rua são caóticos, assim como os locais onde param os transportes públicos.

Claro que há esforços das autoridades para resolver esses problemas, mas é muito difícil. Por outro lado, muita da nova construção fere os traços arquitetônicos originais com a nova colonizadora, a China, a querer deixar a sua marca arquitetônica que fica deslocada da história arquitetônica da cidade.

Esta preserva edifícios magníficos da era colonial, como a estação central do caminho-de-ferro, na baixa, a Casa de Ferro, a Praça do Município, a Catedral, a Igreja da Polana, entre tantas outras construções. Mas parece valer tudo para destruir a herança colonial.

LOURENÇO MARQUES - Praça Mouzinho de Albuquerque, Catedral Nossa Senhora da Conceição
Outro problema da cidade resulta do descontrolo da criminalidade que a tornou de segura no tempo colonial, quando ainda era Lourenço Marques, numa Maputo que se foi transformando numa espécie de bunker de gente aterrorizada que protege as suas habitações com gradeamentos, mesmo em apartamentos em pisos um pouco mais elevados, o que dá à cidade atual um aspeto de permanente estado de sítio, de um lugar de relações pessoais e sociais patológicas, violentas.

Não era assim, nem tinha de ser assim, não fosse o marxismo que tem destruído o significado e valor da propriedade na cabeça das pessoas comuns. Quando, em 1975, o Estado tomou de assalto a propriedade, nacionalizando-a a pretexto do abandono dos colonos, nunca mais o respeito cultural pela propriedade voltou a ser o mesmo. Daí que a corrupção e a criminalidade tenham disparado, e não se prevê que se revertam nas próximas gerações. Tão terrível quanto tipicamente marxista.

Um outro aspeto curioso da transformação de Lourenço Marques em Maputo, em 1976, foi a mudança dos nomes das ruas. Um verdadeiro hino à violência política e social. O país libertado do que dizem ter sido o horror colonial, por exemplo, mudou o nome da Avenida General Rosado para Avenida Kim Il-sung e a Avenida Andrade Corvo virou Ho Chi Minh. A troca de nomes de colonizadores portugueses mais ou menos anônimos por genocidas de craveira mundial foi uma ironia do destino de uma cidade cuja criminalidade e violência chegaram em força nos anos noventa. O inferno marxista.

Quanto a Luanda, conheci apenas depois da independência, portanto não tenho a época colonial como termo de comparação. Foi em 2006, e a degradação e o congestionamento do trânsito, além da forte agressividade que senti no contacto social habitual, não me agradaram.

Entretanto, não voltei a Luanda. De resto, e apesar da desgraça marxista, os meus conterrâneos moçambicanos nunca perderam uma certa cordialidade, a que fez Vasco da Gama designar Inhambane, no sul, como a terra da boa gente quando, em 1498, os portugueses pisaram pela primeira vez solo moçambicano.

O seu livro Um Século de Escombros, lançado em setembro do ano passado (boicotado pela Livraria Travessa), “ilustra, de forma brilhante, a doxa atual político-midiática. Quer isto dizer, a aliança, descarada, mas jamais assumida, entre políticos, ‘jornalistas’ e ‘professores universitários’, além de artistas que o povo ignora ou não gosta.” Passados nove meses, que capítulo você acrescentaria?


Na verdade, não se trata de um livro fechado ou acabado, que necessite acréscimos ou atualizações. É uma reflexão sobre os grandes princípios que fazem funcionar a vida social e o mundo para que cada leitor possa tornar mais lúcidos os significados da sua vida pessoal. Para isso, é fundamental compreender como chegamos ao presente, por que razões o mundo atual é como é, tendo em conta um conjunto de grandes fenômenos transversais ao destino individual e ao destino coletivo, aqueles fenômenos dos quais depende a forma como pensamos e agimos.

O livro Um século de escombros trata da ordem moral das sociedades, do racismo, da colonização europeia, da imigração, do ensino básico e secundário e do ensino superior. Quanto melhor compreendermos esses fenômenos massificados, tanto melhor conseguiremos contribuir para o sucesso das nossas sociedades e do mundo, agora e no futuro.

É por isso que a intenção do livro é a que refere na sua pergunta, a necessidade que a atual geração tem de desarmadilhar o conluio instituído, ao longo do século XX pelos marxistas, entre políticos, jornalistas, acadêmicos e o meio artístico. Eles têm cavado o insucesso das sociedades à custa do seu sucesso particular.

Como essa tendência tem de ser revertida por todo o mundo, o livro possui uma forte carga universal. A qualidade de uma reflexão dessa natureza atesta-se pela sua resistência ao desgaste do tempo, isto é, Um século de escombros foi pensado e escrito para sobreviver à passagem do tempo.

Decorridos apenas nove meses, o que eu acrescentaria ao livro não era um novo capítulo, nem pretendo reescrever o que quer que seja tal como ficou registrado, antes aproveito a sua pergunta para acrescentar um apelo para que as pessoas o leiam no sentido de irem confrontando o seu conteúdo com o mundo em que efetivamente vivem.

Um livro que não sirva a relação do leitor com a sua vida concreta, um livro que não interpele o quotidiano das pessoas, o seu destino individual, da sua família e das pessoas de que mais gostam não deve servir para grande coisa. De resto, contento-me com a possibilidade de, quem sabe, voltar a publicar outro ou outros livros.

Uma pergunta que não foi feita?
Há sempre motivos para perguntas e as conversas não têm fim. Mas esta já vai longa.

A derradeira mensagem:
Um grande abraço a O Cão Que Fuma. Fuma mesmo?!

Muito obrigado, Professor! 

Conversas anteriores:

3 comentários:

  1. Outra excelente aula!
    Mais uma vez, obrigado, Professor!

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  2. Muito boa a entrevista, providenciarei adquirir o livro.

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  3. Parabéns pela eleição do domingo, 10 de março. 👏

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