sábado, 7 de novembro de 2020

O que virá?

Na América partida, o tecido social está bem esgarçado e parece cada vez mais difícil imaginar uma pacificação 

Rodrigo Constantino 

O democrata Joe Biden assumirá o comando da Casa Branca em 20 de janeiro de 2021. Há dúvidas se Trump questionará judicialmente o resultado, já que em vários Estados o saldo foi bem apertado e há algum indício de fraude. O que virá em seguida? 

Ninguém sabe ao certo, eis a verdade. Mas podemos fazer algumas previsões. A primeira constatação óbvia é quão dividido está o país. Essa margem estreita em inúmeros Estados demonstra uma população rachada ao meio. Quando se observa o mapa nacional, o que vemos é uma divisão mais clara entre as costas de leste e oeste, democratas, e o centro, republicano.

Isso reforça uma das principais teses que explicam os fenômenos políticos modernos, como o próprio Trump presidente ou o Brexit. Há um abismo crescente entre a elite cosmopolita “liberal” e o “povão” mais conservador, que não se sente representado por essa elite no poder, e rejeita suas bandeiras “progressistas” para costumes e imigração, além de se sentir desassistida por uma “globalização administrada”, ou o globalismo. 

Essa seria a tal “traição das elites” de que falava Christopher Lasch. As redes sociais acabaram dando voz a essa multidão que estava cada vez mais cansada da classe política, da mídia tradicional, dos “intelectuais” da academia e da cultura pop dominada pela esquerda hollywoodiana. 

O tribalismo acabou sendo alimentado, e a política virou uma torcida de futebol. Os democratas dobraram a aposta nesse viés mais radical “progressista”, enquanto os conservadores queriam alguém que representasse o “dedo do meio” a essa turma toda, para “drenar o pântano de Washington”. É o establishment de um lado contra os “homens esquecidos” do outro. 

Por quatro anos os eleitores republicanos escutaram da mídia que Trump era um fascista, uma ameaça à democracia, um perigo para as minorias. Nada disso se revelou verdadeiro, mas essa demonização produziu mais ressentimento, mais divisão. E a hipocrisia democrata, de se vender como o partido “pacificador”, só gera mais revolta, pois todos percebem que é justamente a esquerda que investe na divisão constantemente, jogando homens contra mulheres, negros contra brancos, gays contra heterossexuais. Sua política de identidades é uma espécie de marxismo em nova embalagem. 

O Colégio Eleitoral serve para frear o ímpeto populista das metrópoles mais populosas

Nesse clima, uma vitória bastante apertada de qualquer lado seria risco de fagulha num paiol de pólvora. Alguns chegaram a falar em “guerra civil”, o que parece certo exagero. Mas não restam dúvidas de que o tecido social norte-americano está bem esgarçado, e que parece cada vez mais difícil imaginar uma pacificação. Nesse contexto, podemos ficar otimistas com o futuro governo Biden? 

Difícil. Apesar da aparência de moderado, Biden é praticamente um octogenário um tanto senil, e a tese de que simboliza um “cavalo de Troia” para a chegada da ala mais radical do partido ao poder não deve ser descartada. Kamala Harris, sua vice, é uma das senadoras democratas mais à esquerda, e aí é que mora o perigo. Se os democratas enxergarem a possível vitória como uma carta branca para avançar com seus projetos mais socialistas, a situação poderá sair de controle.

Afinal, não houve nada parecido com a tal “onda azul” de que muitos falavam, com apoio da imprensa. Os democratas perderam cadeiras na Câmara e não conseguiram reverter a maioria republicana no Senado. A Suprema Corte conta com maioria folgada conservadora, e imaginar, com esse Congresso, uma tentativa de “empacotar a Corte”, como alguns democratas sugeriram (ou ameaçaram), parece fora de contexto: não vinga. 

Além disso, é preciso lembrar que em dois anos há nova eleição e, se o governo Biden se mostrar ousado demais do lado “progressista”, isso pode levar a um massacre nas urnas em 2022. Aí nada mais seria aprovado. Apesar de o Executivo ter bastante poder no regime presidencialista norte-americano, esse poder está longe de ser ilimitado, e o mecanismo de pesos e contrapesos costuma funcionar. 

Essa é a grande questão, afinal: as instituições republicanas ainda funcionam nos Estados Unidos? Os mais pessimistas temem que não, acham que seu enfraquecimento, que vem de longa data, já é enorme. Outros, dos quais faço parte, entendem os riscos, mas acreditam ser cedo demais para cantar uma derrota final do modelo norte-americano. Os “pais fundadores” pensaram em muitos riscos, como a “tirania da maioria” e também de uma minoria “iluminada”. 

O Colégio Eleitoral, tão criticado por alguns, serve justamente para frear o ímpeto populista das metrópoles mais populosas. 

Trump não estava no patamar de um Ronald Reagan, por exemplo

Os Estados Unidos não vivem sua melhor fase, isso está claro. Mas ainda são uma nação com sólidas instituições, com uma cultura de liberdade, e isso não é facilmente destruído. É verdade que seus pilares vêm sendo atacados faz tempo, por uma esquerda que cospe no legado norte-americano, que sente vergonha de seu passado, que tenta subverter os valores morais que atuam como cola do tecido social. Mas há reação. 

Biden não terá essa autonomia toda para impor o projeto da base radical de seu partido. Terá de fazer muitas concessões. E os republicanos poderão aproveitar a ocasião para refletir sobre o estilo de Trump, talvez necessário para oferecer resistência aos mais revolucionários do outro lado, mas em muitos momentos excessivamente agressivo ou fanfarrão, o que certamente afugentou votos das “mães de subúrbio”. 

Para unir essa América partida, será necessário o surgimento de um estadista. Com todas as suas qualidades, e com vários acertos em suas políticas, Trump não era essa figura, não estava no patamar de um Ronald Reagan, por exemplo. E Joe Biden com certeza passa mais longe ainda desse perfil. Logo, será preciso aguardar uma pacificação maior para os norte-americanos lembrarem que, apesar das grandes diferenças ideológicas, estão todos no mesmo barco e devem buscar denominadores comuns para permitir a prosperidade e a segurança da sociedade. Até lá, resta torcer para que as instituições resistam. Espero — e acho — que sim.

Título e Texto: Rodrigo Constantino, revista Oeste, 7-11-2020 

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