Não houve milagre epidemiológico em Portugal. Mas na política, há um milagre: o conforto com que a elite do poder preside à crise epidemiológica, ao declínio económico, e à degradação institucional
Rui Ramos
Sim, temos dos piores números da epidemia na Europa: há vários dias que morrem em Portugal mais de quatro pessoas por hora com Covid. Sim, fomos dos países cujas economias menos cresceram no mundo nas últimas duas décadas. Sim, passamos, há vinte anos, pelo mais longe período de divergência em relação à Europa ocidental desde a II Guerra Mundial.
Sim, nunca na nossa história
nos vimos tão dependentes do exterior, com uma das maiores dívidas da Europa,
que só a política do BCE viabiliza. Sim, continuamos à espera do julgamento do
primeiro chefe de governo, na nossa história democrática, acusado de corrupção
e suspeito de conspirar contra o Estado de Direito. E sim, tudo isso aconteceu
sob governos socialistas, que foram quase sempre os governos deste país nos
últimos 25 anos. Mas enquanto a mortalidade sobe, eis que o partido que nos
governa também sobe nas sondagens, à frente de todos os outros.
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Quadro de David Teniers Li Le Jeune |
Em abril do ano passado,
falaram-nos de milagre a propósito da epidemia. Como vemos agora, não houve
milagre epidemiológico nenhum. Mas na política, sim, há um milagre: está no
aparente conforto com que a elite do poder preside em Portugal à crise
epidemiológica, ao declínio econômico, e à degradação institucional.
Nos EUA ou no Brasil, vimos
governantes justa ou injustamente responsabilizados pelas infecções e pelas
mortes.
Em Portugal, com as suas
emergências cheias de excepções para o PCP e com as suas embirrações
ideológicas contra parte do sistema de saúde, o governo parece livre de errar e
de vacilar sem quaisquer custos. Basta-lhe anunciar que as escolas ficam
abertas para, no meio do descalabro, arrancar palmas a uma plateia
aparentemente desesperada por arranjar motivos para aplaudir.
Milagre? Não há aqui milagre nenhum. O que há é poder, e um poder como a sociedade portuguesa nunca conheceu desde 1976. E não conheceu, porque nunca, como até hoje, um partido dominou tanto o Estado, e nunca o Estado dominou tanto uma sociedade cada vez mais enfraquecida e dependente. Por isso mesmo, é que ao poder socialista se pode aplicar o proverbial dito do quanto pior, melhor.
Quanto mais acentuada a
estagnação económica e quanto mais devastadora a opressão fiscal, menos há na
sociedade civil barreiras ao Estado e menos há no espaço público contestação ao
poder socialista. Eis porque a pandemia foi, para o socialismo, um presente dos
deuses. Fechou empresas, fragilizou outras, e submeteu ainda mais gente aos
favores públicos.
Sim, temos um Estado falido,
mas que, garantido pelo BCE, é agora, com as ajudas europeias, a grande fonte
de dinheiro num país onde o que não foi estrangulado pelo fisco e pela
regulação, acabou demolido pelos confinamentos. Perante isto, o que há de
milagroso na ânsia com que se aplaude os donos do país, ou no medo de opinar
contra eles? É que a oligarquia socialista não se distingue apenas pelo poder
que acumulou, mas pela brutalidade com que o exerce.
O mês passado, o chef Ljubomir
Stanisic atreveu-se a protestar, como se faz nos países democráticos. Ei-lo
imediatamente exposto em escutas telefónicas comprometedoras, como acontece nos
países não democráticos. Esta semana, soubemos que o Ministério Público
passou a vigiar e a perseguir jornalistas a pretexto do mitológico“segredo de justiça”. Entretanto, os donos disto tudo nos pedem para
estarmos muito preocupados com a democracia – nos EUA.
Em outros tempos, isto acabaria
quando acabasse o dinheiro. Agora, porém, o BCE nunca deixará que o dinheiro
acabe. Não haverá outra crise de dívida soberana como em 2010-2011. Aliás,
mudanças de poder nunca são simplesmente um efeito de crises, como é costume
pensar. São, acima de tudo, produto do dinamismo de uma sociedade.
Em 1979, a vitória da AD, após
cinco anos de esquerdismo, não foi apenas consequência da austeridade negociada
pelos socialistas com o FMI em 1978, ou do gênio de Francisco Sá Carneiro. Tudo
isso contou, claro. Mas além disso havia uma sociedade que, embora mais pobre
do que hoje, dispunha de focos de independência econômica, como a indústria e a
agricultura que, no Norte, haviam escapado às expropriações e nacionalizações
que o poder militar, por cálculo, conteve a sul. Mais: era uma sociedade mais
jovem, que passara não apenas pela revolução de 1975, mas pela convergência
econômica com a Europa nos anos 60, quando começou a comprar televisões e
automóveis.
Passara a ter expectativas de
ascensão social. Acreditava na possibilidade de viver melhor, o que muitos,
aliás, tinham experimentado, enquanto colonos, nas cidades de Angola e de
Moçambique. E claro, o horizonte da adesão à CEE justificava otimismos. Por
tudo isso, cansou-se da estagnação revolucionária, e foi capaz de apreciar um
líder político crítico do sistema e de votar decisivamente por uma alternativa,
como fez em 1979 – a primeira vez, na história de Portugal, em que partidos da
oposição chegaram ao governo por via eleitoral.
Uma sociedade envelhecida e
dependente não tem os mesmos recursos para sustentar dissidências e
alternâncias. Não por acaso, todas as forças políticas decaíram. Comunistas e neocomunistas
desistiram das suas manifestações, greves gerais e contestação na comunicação
social, e tornaram-se, através da geringonça, meras tendências dentro da
holding socialista. Foi assim que tivemos o primeiro governo, desde 1975, que
jamais enfrentou uma manifestação, nem paredes pintadas a mandá-lo embora. À
direita, a crise e a tentação de colaborar é a mesma. Nunca a direita valeu tão
pouco, nem mesmo em 1975. O PSD desespera do futuro do seu aparelho autárquico.
O CDS foi arruinado pela facção que o dirigiu até ao ano passado. As
fragilidades são tão grandes, que nem foram capazes de resistir à manobra
socialista para, aproveitando a participação do Chega na nova maioria açoriana,
tornar uma derrota dos socialistas num “problema” — da direita.
Fazer oposição, divergir das
opiniões recomendadas pela oligarquia socialista tornaram-se opções de custo elevado.
Thomas Jefferson disse que “nem toda a diferença de opinião é uma diferença de
princípio”. Para os situacionistas – socialistas, comunistas, neocomunistas e
os seus compagnons de route à direita – toda a diferença de
opinião é necessariamente uma diferença de princípio, no sentido em que quem
não concorda com o poder socialista, não é “democrata” e agora, como se viu nas
acusações de António Costa a Paulo Rangel, também já nem é “bom português”.
Nada disto é novo em Portugal.
O Dr. Salazar tinha o hábito de acusar toda a oposição de ser comunista e antipatriótica.
Os atuais situacionistas seguem a velha cartilha: todos os seus críticos são,
só por isso, “radicais”, “populistas”, potenciais “assaltante do Capitólio”.
Com esta intransigência, sabem o que fazem: reduzem o debate político à questão
de saber quem é “fascista”, e arrogam-se o direito de excluir do espaço público
todos os que não estão nas listas dos “bons”.
Eis como a mortalidade pode
bater recordes, o SNS pode entrar em colapso, o governo pode mentir, a imprensa
pode ser perseguida, e toda a gente, mesmo à direita, continua demasiado
ocupada a afligir-se com a “direita iliberal”. É significativo quando só uma
candidata tresmalhada da área socialista diz o evidente, que é já termos no
poder em Portugal uma espécie de Viktor Orbán (o qual não, não é
claramente André Ventura). Eis o milagre português: é sinistro. E é triste.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
15-1-2021
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