Acostumemo-nos a longas horas de fugas do
trabalho, dessocialização real, imersões de hora em hora na fingida alegria
alheia. É o fim do mundo? Não
Carlos de Freitas
Há uns vinte anos você podia
ir no seu bar preferido, encontrava um monte de gente distinta, gente das mais
variadas visões etílicas (até mesmo gente sóbria dava as caras por lá) e podia
discutir qualquer polêmica tendo sempre no horizonte que, dependendo do que
dissesse, poderia levar uma garrafada de Passport ou de Malte 90 na testa.
Quem viveu nesse tempo sabe que
não é qualquer chororô (palavra bem mais refinada que mimimi) que vai convencer
gente que passa a semana se matando de trabalhar e que, na doce sexta-feira
(dia oficial do porre no boteco), quer desfrutar uma discussão genuína, dessas
que acabam com declarações de amor ou boletins de ocorrência na polícia.
Isso já não é mais possível. O
advento da internet deu carga à cólera de uma miríade de antissociais
ressentidos; gente doentinha que andava na rua de cabeça baixa, ajeitando a
camisa dentro da calça.
Mas esse texto não é uma
condenação ao universo virtual. Esses tipos esquisitos são o efeito colateral
de uma nova forma de ver e agir no mundo. As redes sociais mudaram os móveis de
lugar e toda a configuração da vida. Elas são um saco, eu sei. Mas sem elas,
ainda estaríamos colocando muito etecetera nos assuntos.
As redes sociais são um saco.
Mas sem as redes ainda estaríamos acreditando em pesquisa do Datafolha, matéria
emotiva no Fantástico e capa da Veja.
Sem as redes, Miriam Leitão e
Jô Soares seriam tratados como intelectuais, Pedro Bial, com seus textos de
BBB, seria o máximo do estilo literário, e pior: teria gente tendo que rir,
mesmo fora da UTI, de Marcelo Adnet e Greg Duduvier com medo de ser chamado de
chato.
As redes são um baita problema: perfil fake, valentão de um metro e quarenta com foto de lenhador, tutor da cultura pop, subcelebridade com 17 pontos de QI. É verdade. Lembra do efeito colateral? Muitas vezes, dá uma preguiça. Mas sem elas, as redes, ainda estaríamos elegendo petista (há o risco no ar novamente), gente do DEM e do MDB.
Ou vocês ainda acreditam na
Globo? Só quem não sabe amarrar o próprio cadarço sozinho ainda acredita nessa
turma.
Tá bom! Elegemos um monte de
cabeça de bagre também; levamos a sério Lobão e Andreazza, Reinaldo Azevedo,
Kim Kataguiri e João Amoedo. Gente desprezível hoje comenta em rádio; alpinista
intelectual se acha influenciador.
Mas as próprias redes se
encarregam de desmascará-los.
Parece que foi ontem: eu
conversava numa mesa com uns amigos que estavam elogiando o Jô. O acima
mencionado Jô. Pois eu me viro e digo: – Jô não é um intelectual.
Entreolharam-se todos, abismados com a heresia. Sem as redes, ainda estariam
lá, os olhos esbugalhados, imaginando que eu era um tipo de bárbaro ao pé de
uma cidade, pronto a destruí-la.
As redes consagram e condenam
num átimo de tempo. Vá lá. Sem as redes, a fama e o desterro perduravam.
Pisaram na alma do Wilson Simonal, trituraram-lhe o canto. As capitanias da
cultura não toleravam desvios. Hoje, depois das redes, só pré-adolescente de 40
anos da Vila Madalena ainda ama o Chico.
As redes também nos distraem
das importâncias da vida. Eu por exemplo devo todos os meus oito livros não
escritos à pressão exercida pelo pequeno diabinho da procrastinação que foi
libertado assim que se disse a mágica palavra: ORKUT¹.
Elas vieram e de cá não sairão
mais. Acostumemo-nos a longas horas de fugas do trabalho, dessocialização real,
imersões de hora em hora na fingida alegria alheia. É o fim do mundo? Não. Não
é nem o fim de Veras, Adnets e Jô’s. E nem tenho essa pretensão de mandar pro
ostracismo gente que trabalha pra isso com muito mais afinco que eu.
As redes, hoje, são o pavor
dos que adoram falar e não querem ouvir. Produzem personalidades de cera,
cheias de vaidade e com um cagaço titânico da controvérsia.
Não temam as redes. Usem-na
com sábia moderação. Nenhum Hamlet deixaria de ser escrito se Shakespeare, ao
invés de destroçar tecos inteiros de sua alma, esmagado nalgum pub quinhentista,
estivesse curtindo a foto do último ensaio de Marlowe. Eu mesmo, que não sou
nenhum Marlowe e não realizo ensaios, não perderia meu tempo tentando agradar
um Shakespeare qualquer numa rede social.
¹ Orkut, em braile e em
sânscrito, quer dizer: larga esse livro e vem ver isso aqui!
Título, Imagem e Texto: Carlos
de Freitas, Senso Incomum, 11-3-2021
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