O que começou como um protesto local de
caminhoneiros no Canadá, ignorado pela mídia, agora se transformou em uma
manifestação mundial contra o fascismo da covid
Foto: Darryl Barton |
Ana Paula Henkel
Todo dia 2 de fevereiro, data
que marca exatamente metade do período entre o solstício de inverno e o
equinócio da primavera no Hemisfério Norte, diversas cidades dos Estados Unidos
e do Canadá celebram o “Groundhog Day”, uma tradição popular
iniciada em 1887 que acontece nos dois países. A celebração popular
norte-americana, que é conhecida no Brasil como o “Dia da Marmota”, deriva-se
da superstição de imigrantes holandeses e alemães do Estado da Pensilvânia de
que, se uma marmota sair de sua toca neste dia e vir sua sombra, ela voltará
para sua toca e o inverno continuará por mais seis semanas. Se o roedor não
conseguir ver sua sombra, a primavera chegará mais cedo.
O evento ficou mundialmente
famoso devido ao filme Groundhog Day, de 1993, lançado no
Brasil com o nome de Feitiço do Tempo. O roteiro apresenta o
meteorologista Phil Connors, interpretado por Bill Murray, que reluta em viajar
para Punxsutawney, na Pensilvânia, para cobrir as celebrações do Dia da Marmota
da pequena cidade, por considerar a cobertura do tradicional evento uma perda
de tempo. Já hospedado em um hotel local, ele acorda no dia seguinte e se vê
preso em um looping temporal, sendo forçado a viver o feriado
repetidamente. Todas as manhãs, em sua cama no Cherry Tree Inn, ele desperta
com a música I Got You, Babe, de Sonny e Cher, tocando no
rádio-relógio:
“They say we’re young and
we don’t know / We won’t find out until we grow / Well I don’t know if all
that’s true / ‘Cause you got me, and baby, I got you…”
“Dizem que somos jovens e não
sabemos / Não vamos descobrir até crescermos / Bem, eu não sei se tudo isso é
verdade / Porque você me tem, e baby, eu tenho você…”
Mas o filme de 1993, considerado
uma das maiores comédias de todos os tempos, dirigido por Harold Ramis e
produzido por Ramis e Trevor Albert, pode, no entanto, ser em alguns aspectos
um ensaio sobre uma perspectiva mais atual que nunca. Em um bar local, Connor
desabafa com um homem: “Eu acordo todos os dias, bem aqui em Punxsutawney, e é
sempre 2 de fevereiro. E não há nada que eu possa fazer sobre isso. O que você
faria se estivesse preso em um lugar, e todos os dias fossem exatamente iguais,
e nada do que você fizesse importasse?”
Os dias continuam a se repetir
e, sem esperança, Connors decide se comportar da pior maneira possível, já que
“nada muda”. E este é o dispositivo quase escondido no filme, que acaba se
tornando atemporal, como um perfeito atalho para os dias atuais, no melhor
sentido de “a mesma coisa de sempre em um dia diferente”. Connors passa um
número desconhecido de dias repetindo exatamente o mesmo dia várias vezes.
Todas as outras pessoas vivenciam aquele dia pela “primeira” vez, enquanto
Connors tem de encarar sua rotina como Sísifo, personagem da mitologia grega
condenado a empurrar eternamente uma enorme pedra morro acima que, ao atingir o
seu topo, cai novamente, fazendo esse processo ser repetido por toda a
eternidade.
Há exatos dois anos,
escrevemos sobre liberdade, sobre autonomia, sobre direitos, sobre a verdade,
sobre uma pandemia que devorou o intelecto humano
O que poderia ser apenas um filme de comédia, muitas vezes tachado de tolo, na verdade mostra algumas pistas de um possível mistério central que nos aproxima de um arco moralmente mais denso e poderoso para o personagem principal. Quando Connors percebe que não é louco e que pode, na verdade, viver para sempre sem consequências (se não há amanhã, como ser punido?), ele se entrega ao seu “eu adolescente”. Fuma dezenas de cigarros sem medo de julgamentos ou doenças, dirige embriagado, usa um leque de mentiras para levar muitas mulheres para a cama, rouba dinheiro e se perverte de uma maneira descontrolada. Depois de mais uma noite de orgias e bebedeira, ele declara: “Não vou mais jogar pelas regras deles!”.
Algum tempo depois de abusar
de uma liberdade que acreditava ter, Connors é tomado por um vazio inexplicável
e se torna suicida, percebendo que toda a gratificação material e sexual do
mundo não se sustenta espiritualmente. De qualquer forma, ele culpa a marmota
e, em um pacto de assassinato-suicídio, mata o roedor. Mas nem isso faz com que
Connors acorde de seu pesadelo. Depois de inúmeras tentativas de tirar sua
própria vida, ele continua acordando no dia seguinte, sem ser o dia seguinte.
No fim, exausto e sem expectativas de sair daquela maldição, resolve dar uma
guinada. Começa a tocar piano, ler poesia, decide ajudar os moradores locais em
assuntos grandes e pequenos, incluindo pegar um menino que cai de uma árvore
todos os dias, mas que nunca lhe agradece, apaixona-se pela pessoa que jamais
imaginaria se apaixonar; e começa a prestar atenção no amor em várias camadas e
vertentes.
Ele, então, descobre que há algumas coisas que não pode mudar, mesmo repetindo-as todos os dias. E, em sua dedicação pelo seu presente, finalmente acorda em 3 de fevereiro, destravando o ciclo interminável do Dia da Marmota. A maldição é suspensa quando Phil Connors agradece o dia em que acabou de viver, deixando o melhor que podia no presente, mesmo sabendo que teria de repetir tudo mais uma vez no dia seguinte. Connors lentamente percebe que o que faz a vida valer a pena não é o que você obtém dela, mas o que você coloca nela.
Uma das ideias centrais de
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão cuja obra exerceu uma influência profunda
na história intelectual moderna, é imaginar a vida como uma repetição sem fim
dos mesmos eventos que repetimos. Como isso moldaria suas ações? O que você
escolheria para viver por toda a eternidade? Mas esse existencialismo não
explica o apelo mais amplo de um filme aparentemente bobo que conversa com
nossa atual realidade e sociedade. É na ressonância religiosa, que tanto tentam
expurgar de nossa vida cotidiana (vide as eternas ordens de lockdowns para
igrejas e templos, a tentativa da diminuição da importância da fé), que o filme
chamou minha atenção na última vez a que o assisti. Connors vai para sua
própria versão do inferno, do qual ele é libertado ao abandonar seu egoísmo e
se comprometer com atos de amor da vida real de quem está à sua volta.
Peças inesperadas no
tabuleiro
Desde 2020, quando sento
semanalmente para pensar no assunto que abordarei em meu artigo semanal, às
vezes tenho a sensação de que estamos vivendo no filme de 1993, no Dia da
Marmota. O que você faria se estivesse preso em um lugar, e todos os dias
fossem exatamente iguais? Há exatos dois anos, escrevemos sobre liberdade,
sobre autonomia, sobre direitos, sobre a verdade, sobre uma pandemia que
devorou o intelecto humano e sobre personagens que continuam desafiando as
novas leis do silêncio impostas ao mundo. Martin Kulldorff, Jonathan Isaac,
Robert Malone, Joe Rogan, Eric Clapton, Novak Djokovic, Aaron Rodgers, Nicki
Minaj, quantos nomes temos trazido para demonstrar a bravura de homens e
mulheres que continuam, com declarações firmes, expondo os covardes. Nomes que
decidiram não aceitar mais as guilhotinas virtuais e a imposição de que todos
nós temos de sentar no sofá quente dos lobbies. Mas, mesmo depois
de tantos excepcionais exemplos, o que mudou? Estamos vivendo um eterno Dia da
Marmota? Aonde vamos chegar? Estamos, realmente, fazendo tudo o que podemos
fazer para estancar essa insanidade? O que você fez, aí mesmo, perto de você,
para quebrar esse ciclo medonho?
Em toda revolução importante, e acredito que estamos dentro de uma, peças inesperadas podem surgir. A última movimentação nesse tabuleiro, crucial para a sobrevivência da liberdade como a conhecemos no mundo, foi brilhantemente feita pelos canadenses, mais especificamente os caminhoneiros canadenses. O que começou como um protesto local, ignorado pela mídia, agora se transformou em uma manifestação mundial contra o fascismo da covid. Após as medidas do governo canadense de impor vacinas para caminhoneiros que cruzam a fronteira EUA–Canadá, os motoristas lançaram um movimento de protesto apelidado de “Freedom Convoy”, que começou na Província da Colúmbia Britânica, no início da semana passada, e chegou à capital canadense, Ottawa, na última sexta-feira.
Estacionados em frente ao
Parlamento, os caminhoneiros se juntaram a milhares de canadenses para
expressar sua oposição às ordens de uma vacina experimental, cada vez mais
draconianas no país. “Queremos ter nossa escolha novamente e queremos esperança
— e o governo nos tirou isso”, disse Harold Jonker, motorista de caminhão.
Originalmente esperando cerca de 10.000 pessoas até o final de sábado, a
polícia canadense disse que, à noite, não havia uma estimativa oficial do
tamanho da multidão. Mas, de acordo com o Toronto Sun, um dos
principais jornais do país, o comboio poderia incluir 50.000 caminhões do leste
e oeste do país e até dos Estados Unidos. No sábado, uma multidão se encontrava
no centro de Ottawa, apesar das baixas temperaturas, que chegaram a 15 graus
(Celsius) negativos. “Vim pela liberdade de escolha”, disse Bogdan Dulhariu,
que trabalha como motorista de caminhão em Montreal há 17 anos. Ele disse estar
totalmente vacinado, mas ainda assim indignado com as regras ineficazes
impostas pelo governo canadense para conter a propagação da covid: “Você não
pode impedir as pessoas de trabalhar e cuidar de suas famílias apenas por causa
de vacinas e outras coisas”, acrescentou o caminhoneiro.
O primeiro-ministro canadense,
Justin Trudeau, saiu às pressas da capital para um destino não informado e
disse essa semana que os manifestantes que estavam em Ottawa eram uma “pequena
minoria de marginais” que mantêm “visões inaceitáveis que não representam as
opiniões dos canadenses que pensam nos outros”. Tamara Lich, uma das principais
organizadoras do grupo Freedom Convoy 2022, disse, em um vídeo postado na conta
do Facebook do grupo — perfil que foi derrubado pela plataforma: “Este é um
evento familiar, seremos pacíficos e não instigaremos nada. Estamos todos
preparados para ficar aqui o tempo que for preciso. Estamos juntos para
recuperar nossas liberdades”.
Na luta contra os decretos
totalitários de seu governo, os caminhoneiros do Canadá também já inspiraram
vários protestos em estilo de comboio em todo o mundo. Na Austrália, os
caminhoneiros estão planejando um protesto “Comboio para Canberra” contra as
ordens inconstitucionais e as restrições médicas do país. Na Holanda,
motoristas realizaram seu próprio protesto de comboio, “tudo e todos sobre
rodas” são bem-vindos. Aqui nos EUA, caminhoneiros planejam o início de um
grande comboio, que deverá sair da Califórnia nas próximas semanas e atravessar
o país até a capital, Washington, DC, para protestar contra a tirania do inútil
passaporte vacinal, que não bloqueia a transmissão do vírus.
Achatar a curva, lockdown,
vacina, tranca tudo e não questiona nada, transmissões em alta, nova cepa,
passaporte vacinal, agora vamos achatar a curva, lockdown, vacina,
tranca tudo e não questiona nada, transmissões em alta, passaporte vacinal… E o
rádio-relógio continua tocando a mesma música. E a vida segue imitando a arte.
E se o amanhã que deixaremos para os nossos filhos for o mesmo de hoje? Um
conto draconiano que sufoca qualquer palavra contra os tiranos? Uma repetição
sem inspiração, sem propósito e sem esperança?
No filme de 1993, o personagem
de Bill Murray, Connors, encontra um mendigo todos os dias e, em um gesto de
desprezo, faz questão de bater nos bolsos da calça, como se nunca tivesse dinheiro.
Mais tarde, preso naquele feitiço do tempo, mas já com a mente voltada para
outros caminhos, o meteorologista tenta ajudar repetidamente o mendigo, mas
acaba descobrindo que não importa o que faça, o homem sempre morre. É a lição
da Oração da Serenidade, escrita pelo teólogo Reinhold Niebuhr e posteriormente
cooptada pelos Alcoólicos Anônimos pelo mundo: “Deus, conceda-me a serenidade
para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem de mudar as coisas que
posso e sabedoria para saber a diferença”.
Não dá mais para
procrastinarmos o encontro com a realidade, que vai requerer um esforço de
todos nós. Cada dia que vivemos não é tão diferente do anterior. No entanto, as
mudanças existem e estão nos detalhes que precisam da nossa coragem para ser
exaltados e para seguir seu caminho da transformação. Às vezes, só estamos
entediados e repetindo nossos maus hábitos porque estamos no piloto automático,
dentro no nosso próprio feitiço do tempo. E nos acomodamos, ouvindo a música de
Sonny e Cher, esperando que o feitiço se quebre sozinho… “Dizem que somos
jovens e não sabemos / Não vamos descobrir até crescermos…”.
Nessa tragicomédia que estamos
vivendo, o que fazemos, de fato, como os caminhoneiros canadenses, para quebrar
o feitiço que tentam nos impor nos últimos dois anos? Os tempos são
assustadores, mas a inspiração está por toda parte. Não interessa mais se tudo
não passa de um sonho ruim ou um pesadelo. É chegada a hora de despertar.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista
Oeste, nº 98, 4-2-2022
Leandro Ruschel
ResponderExcluir@leandroruschel
O mais interessante do protesto em Ottawa é observar extremistas de esquerda, que até ontem pediam o fim da polícia, exigindo que policiais prendam os caminhoneiros. Homem dando de ombros