Se receiam ser enxovalhados por recusar a “cultura”, Carlos Moedas e Isaltino Morais têm todo o direito de oferecer um museu à senhora dona Joana. Desde que o paguem dos próprios bolsos.
Alberto Gonçalves
Soube pela crónica de João
Miguel Tavares, no “Público”, que as câmaras de Lisboa e de Oeiras andam à
bulha para decidir qual delas espatifa 10 ou 15 milhões de euros num museu que
guarde a obra de uma senhora chamada Joana Vasconcelos. Noto que a luta é para conseguir
o direito a espatifar o dinheiro, e não o inverso. Sobre o assunto, o João
Miguel escreveu o essencial. Naturalmente, tenciono encarregar-me do acessório.
O primeiro ponto é o custo do
armazenamento. Em tempos, a pretexto de mudanças, tive de alugar duas garagens
durante meses e a coisa ficou longe das verbas mencionadas acima. Estava capaz
de sugerir às autarquias em questão que procurassem alternativas e, de caminho,
despedissem os orçamentistas. Não o faço porque não vejo motivo para as autarquias
patrocinarem a senhora dona Joana como não me patrocinaram a mim e aos milhares
de discriminados que pagam dos seus bolsos o aconchego das respectivas tralhas.
Alguns dirão que, ao contrário das minhas, as tralhas da senhora dona Joana são arte. A esses respondo com o benefício da superioridade argumentativa. Por um lado, eles não conhecem o magnífico acervo que possuo. Por outro, com a ajuda da internet, conheci, entretanto o acervo da senhora dona Joana. Três palavras: credo em cruz! Aquilo é arte apenas na medida em que o edifício onde Cristiano Ronaldo plantou a marquise é arquitetura, e os livros do ministro António Costa Silva são literatura. Do que vi, vi sapatos enormes, galos de Barcelos enormes, chaleiras enormes, candeeiros enormes, brincos de Viana enormes, garrafões de vinho enormes, tudo concebido numa espécie de croché de cores garridas e desagradáveis. Na verdade, as bugigangas da senhora dona Joana são o tipo de quinquilharia que qualquer português, sem contributo camarário, arrecada na garagem – apenas em maior e mais feio. É arte na perspectiva da família Carreira.
A parolice é justamente esta
incapacidade em distinguir a arte da fancaria, e a inclinação para, em caso de
dúvida, preferir a fancaria, que é fácil, vistosa e, embora não se entenda a
que título, dita “irreverente”. Não é um problema exclusivamente nacional: a
propósito das misérias da “arte contemporânea”, o maior cronista inglês do século
XX notava os “vigaristas e charlatães que as vendem e comentam, os pobres
atarantados que as produzem, e o tímido e sisudo ‘establishment’ que receia
acusações de filistinismo.” Mas é natural que num país periférico e semialfabetizado
estas características sejam aprimoradas.
O pormenor dos “pobres
atarantados que produzem” as misérias é que é duvidoso. A senhora dona Joana
não é pobre, salvo de talento artístico, nem é atarantada, pelo menos na arte
da “cunha”. Aliás, é ela que, adoptando uma tradição local iniciada nas últimas
décadas, reclama junto dos poderes públicos o museu de que se acha merecedora.
Percebo a necessidade de espaço para acomodar os gigantones que a senhora dona
Joana manda fabricar (“Emprego mais de 50 artesãos de alta qualidade”,
orgulha-se ela). E percebo a necessidade de esconder semelhantes embaraços em
lugar que ninguém, no seu juízo perfeito, visitará. O que não percebo é o papel
dos munícipes de Lisboa e Oeiras nesse drama.
Cito o João Miguel: é evidente
que a senhora dona Joana “tem todo o direito a ter o seu museu” – como
eu tenho a ter um porta-aviões ou uma casita em Laurel Canyon – “desde que o
pague do seu próprio bolso”. É igualmente evidente que, se pretendem
dispensar a senhora dona Joana de encargos e receiam ser enxovalhados por
recusar a “cultura”, Carlos Moedas e Isaltino Morais têm todo o direito a
oferecer-lhe um museu. Ou dois, para solucionar a compita. Desde, lá está, que
o paguem dos próprios bolsos. O chato é que, entre nós, a “visão”, o
“empenhamento”, a “iniciativa” e (desculpem) a “pró-atividade” raramente
coincidem com os proprietários dos fundos que alimentam virtudes tão louváveis.
Nas artes alegadas e nas restantes artimanhas, a “pró-atividade” é deles, o
dinheiro é nosso.
Com a razão do costume, Vasco
Pulido Valente disse que “A história da pintura podia ser escrita e bem
escrita, sem sequer uma nota de pé de página sobre o que os portugueses
pintaram.” Ou esculpiram, acrescento. Ou ordenaram a 50 artesãos de alta
qualidade que fizessem. Já a história do atraso de vida exigiria um volume
dedicado a Portugal. Um volume gigante, forrado a rendas de bilros e com o
título em pechisbeques brilhantes.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
11-6-2022
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