João Pereira Coutinho
Meu caro Amigo,
Obrigado pela sua carta.
Recebia-a hoje de manhã e fui
lendo durante o dia. Sou bicho de compreensão lenta, mas de infinita bondade.
Vou responder a todas as suas perguntas, uma por uma, e no final V. envia o
cheque. Brinco. Não brinco. Quero mesmo esse cheque. Sim, Rilke tinha vícios
baratos.
Pergunta-me V., com sereno
entusiasmo, se assisti aos Óscares do passado domingo. Entendo. Os Óscares são
o acontecimento midiático do ano. Realizador que é realizador teve, ou tem, a
estatueta sobre o armário. Como Capra, que ganhou três. Ou John Ford [foto abaixo], de quem
ambos gostamos, com quatro. Mas não se esqueça de todos aqueles que morreram
sem igual prazer. Citar Fellini ou Bergman seria demasiado fácil: os europeus
não entram na contagem, certo?
Mas o que dizer de Chaplin ou
Hawks, nomeados uma única vez e ganhadores nenhuma vez? Para não citar Hitchcock
(ou King Vidor), que passaram cinco vezes pela passadeira vermelha e voltaram
para casa. De mãos vazias.
O problema, porém, é mais
fundo. Não vi os Óscares porque, confissão pessoal, nunca fui entusiasta de
‘filmes políticos’. Conhece o gênero: filmes sobre temas ‘importantes’ que
conferem um PH.D. instantâneo a qualquer analfabeto que entre na sala de
cinema. Só este ano, vários conhecidos meus fizeram doutoramentos em história
do Médio-Oriente (depois de Syriana
ou Munique) e um deles tirou um mestrado
em jornalismo (infelizmente, adormeceu a meio de Capote). Eu entendo: num tempo em que ler é uma perda de tempo,
nada melhor do que a ilusão de que um filme confere sabedoria necessária para
entender o mundo.
Infelizmente, não confere. Boa Noite e Boa Sorte é filme competente
sobre a perseguição aos comunistas na década de 50? Sem dúvida. Mas seria
desnecessário que George Clooney apresentasse Annie Moss como faxineira débil e
semiletrada perante a inquisição de McCarthy. Annie Moss era membro do PC.
Mesmo. Não que isso retire indignidade às perseguições de McCarthy. Mas fatos
são fatos.
E, por falar em fatos, entendo
a mensagem simpática de Munique: não
devemos responder ao terrorismo com as práticas próprias dos terroristas. Mas,
pergunto ainda, será legítimo colocar no mesmo plano terroristas que matam
civis (como nos Jogos Olímpicos de 1972) e agentes policiais que matam
terroristas?
Sobre os caubóis gays, nenhum comentário: só um inocente
acredita que uma história entre dois homens continua a ser, hoje, o amor que
não ousa dizer o seu nome. Pelo contrário: é um amor que não se cala, vinte e
quatro horas sobre vinte e quatro horas, sete dias por semana. Ah, sobra Crash, denúncia antirracista que ganhou
o Óscar da noite. Uma confissão a respeito do tema: eu preferia ser imigrante
nos Estados Unidos do que em qualquer parte do mundo. Europa incluída.
Mas a arte ‘política’ não é
apenas simplificadora e ignara. Ela acaba por morrer com o seu tempo. Eu
acredito que The Best Years of Our Lives,
Óscar em 1946, seja um documento tocante e pacifista sobre o regresso dos
soldados americanos depois da Segunda Guerra. Mas eu aposto que, todos os
Natais, não é o filme de Wyler que V. gosta de rever na televisão. É It’s a Wonderful Life, de Capra, que
aliás perdeu o Óscar para Wyler no mesmo ano.
Eu sei que In the Heat of the Night [foto abaixo], vencedor em
1967, é uma denúncia ‘corajosa’ e ‘necessária’ (é assim, não é?) da tensão
racial nos Estados Unidos. Mas, aqui entre nós, não é mil vezes preferível
rever The Graduate, perdedor no mesmo
ano, com uma Anne Bancroft que inicia Dustin Hoffman nos seculares prazeres da
cama? Aposto que todas as amigas da sua mãe ganharam aos seus olhos outros
contornos. Mais, digamos, humanos. Confesse, confesse.
Sidney Poitier e Rod Steiger |
Meu caro amigo: a grande arte
não vive de Bush, do petróleo árabe ou da martirologia gay que faz as delícias da brigada. A grande arte não vive do ruído
que vem, do ruído que passa. A grande arte vive do que é permanente e, se me
permite, só a natureza humana é permanente. É com ela que V. terá de lidar.
Para que, daqui a uns anos, eu possa ler e reler a sua prosa pela manhã. Como
se fosse a primeira vez.
Um abraço imaginário,
João
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S.
Paulo, 8-3-2006, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 77
e 78.
Digitação: JP
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