Para o Estado, e para a lei, não deveria
haver senão cidadãos. É absurdo criticar as “identidades” sem compreender a sua
trafulhice intrínseca, ou contrapondo quadros “identitários” similares.
Alberto Gonçalves
Em Julho passado, aquando do lançamento
de uma seleção de crónicas que publiquei (“O Estado a que Isto Chegou”, ed.
Alêtheia, 392 pág. – uma obra-prima sob diversos pontos de vista, sobretudo o
meu), um senhor de certa idade aproximou-se de mim e acusou-me de ter medo de
me afirmar de direita. Informei-o de que o medo não tinha nada a ver com o
assunto, e tentei explicar-lhe o que é que tinha. O senhor de certa idade não
me quis ouvir. Conto, agora, com os leitores do Observador para me quererem
ler.
Não me digo de direita por
várias razões. A primeira é superficial: soa parolo, a parolice daqueles
sujeitos que se dizem do centro, da Confraria do Rabanete ou, pior ainda, de
esquerda. A autodefinição é um exercício intrinsecamente pateta.
A segunda razão é perceber que
existe uma data de direitas com apetites contrários entre si e, para o que aqui
importa, contrários aos meus. Dou um exemplo. Há oito dias, o assessor da
deputada do Livre penetrou a Assembleia da República vestido com saiote e
peúgas à vista. Esta mera rábula, que pretendia mostrar irreverência e apenas
mostrou o imenso vazio naquelas cabecitas, desencadeou em inúmeras almas
assumidamente de direita uma indignação monstra. Umas lamentaram o desrespeito
pelo parlamento, na suposição de que é possível desrespeitar mais uma casa que
alberga negacionistas e entusiastas do estalinismo. Outras lamentaram uma
suposta libertinagem, sem notarem que, apesar do nome e à semelhança dos
restantes bandos de extrema-esquerda, o Livre é reduto de beatos e pregadores,
unicamente especializados em proibir, perseguir e punir o próximo. À conta de
tamanha sensibilidade, o moralismo infantil do Livre passou por ousado e o
rústico do saiote já anda pelos programas das manhãs televisivas, a aproveitar
a fama.
Um dos problemas da direita,
ou o problema de algumas direitas, é levar à letra as “causas” da esquerda – e em
seguida enfurecer-se com as ditas. Desde logo, convém arranjar paciência e
explicar, pela enésima vez, que o chamado “marxismo cultural” não se preocupa
com o alegado objeto das “causas”, e sim com a capacidade de arregimentar
tropas.
O Livre, o BE, o PCP e o PAN,
com focos ocasionalmente distintos, não sofrem de facto com as desditas dos
homossexuais, dos pobres, das mulheres, das minorias éticas, das senhoras que
abortam, dos doentes terminais ou dos bichinhos. Aliás, de acordo com as
circunstâncias e a geografia, não faltam situações em que os partidos em
questão defendem regimes particularmente empenhados em espezinhar os grupos acima
citados. Estes, os objetos das “causas”, são simples desculpas para abrir
pontos de conflito em volta de matérias complicadas e tratadas à bruta, ou de
complicações imaginárias tratadas como autênticas. No processo, tão sofisticado
quanto uma bigorna e “fundamentado” nas oposições nós/eles, ou
bonzinhos/malvados, conquistam-se aficionados e, no lado oposto da trincheira,
definem-se inimigos. A esquerda é exímia nestas manigâncias primárias. E a
direita, ou algumas direitas, é exímia em morder o isco.
A direita, ou algumas
direitas, confunde a cretinice das “políticas identitárias” e o grotesco culto
da “vítima” com os anônimos que, sem querer, são usados em tais estratégias de
poder – e abomina tudo. Porém, nem todos os africanos querem subir na vida à custa
da “carta racial” nem todos os gays elevam as preferências sexuais em estatuto.
O perigo das “causas” não são os pretextos de que se servem, mas o método das
“causas”, que é dividir, e o objetivo das “causas”, que é reinar. As “causas”
visam a nacionalização das vontades, um sonho totalitário a que importaria
resistir com lucidez.
Resistir sem lucidez é julgar
contrariar as “causas” enquanto se concorre para o mesmo fim: a supressão das
liberdades. Dito de maneira diferente, faz sentido promover a liberdade
económica e desconfiar das restantes? Eu acho que não. A direita, ou algumas
direitas, acha que sim, não importa muito se por convicção se por equívoco. E
nisso, ao acautelar a propriedade e desprezar os comportamentos dissonantes da
“tradição”, a direita, ou algumas direitas, não se distingue da direita, ou de
algumas direitas, que se alia pontualmente à esquerda para abraçar as “causas”,
e tomá-las pelo seu valor facial. Ambas acabam a desprezar o indivíduo em favor
de coletivos em última instância irrelevantes. No mundo, há mulheres e homens,
homo e heterossexuais, pretos e brancos, ricos e pobres, crentes e ateus. Para
o Estado, e para a lei, não deveria haver senão cidadãos. É absurdo criticar as
“identidades” sem compreender a sua trafulhice intrínseca, ou contrapondo
quadros “identitários” similares. Racionalmente, em que é que a doutrinação
nacionalista se distingue do catecismo LGBT?
Em suma, eu seria de direita
se a direita fosse sempre o exato oposto do que a esquerda é: um projeto de
avanço e conquista e domínio através da eliminação da esfera privada, a começar
pelos negócios e a terminar na cama. A direita, ou algumas direitas, devia
combater o que a esquerda realmente quer e não o que a esquerda finge querer.
Título e Texto: Alberto Gonçalves,
Observador,
2-11-2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-