O 'jornalismo de resistência' é uma missão,
não um ofício: a verdade é aquilo que se decide nas redações, e nada mais
J. R. Guzzo
O resultado das eleições na
Câmara dos Deputados e no Senado Federal é mais uma prova de que a mídia deste
país que chama a si própria de “grande”, ou de “nacional”, ou coisa parecida,
está se tornando um novo tipo de fenômeno — uma atividade que, definitivamente,
não consegue mais operar de acordo com a sua natureza. É como um navio em que
os tripulantes querem navegar terra adentro, e não mar afora. Meios de comunicação,
pelo entendimento geral que se tem a respeito das suas funções, servem para dar
ao público informação sobre as realidades que existem à sua volta — é por isso
que as pessoas compram os seus serviços, e por nenhuma outra razão. Cada vez
mais, porém, a mídia brasileira vem se mostrando incapaz de exercer a sua
atividade natural. Em vez de transmitir fatos, passou a transmitir crenças;
está se tornando uma religião, em que toda a energia se concentra em divulgar
um evangelho no qual os comunicadores comunicam o que acham certo, virtuoso e
obrigatório para a sociedade, e não o que está acontecendo. O resultado básico
disso é que o público é apresentado, o tempo todo, a um mundo que não existe.
Dizem que está acontecendo uma coisa e acontece outra — ou, frequentemente,
acontece o contrário.
Não é uma questão de ponto de
vista; é algo que pode ser constatado com elementos que os advogados chamariam
de “prova material”. O episódio da escolha dos novos presidentes da Câmara e
Senado é a última comprovação objetiva dessa anomalia — um clássico, na
verdade, em matéria de desinformação em estado puro. Há uns dois meses, desde
que o assunto apareceu no noticiário, o público foi informado, do primeiro ao
último minuto, sobre algo que simplesmente não estava acontecendo: uma disputa
duríssima, dessas em que tudo pode acontecer, entre candidatos do governo e
candidatos da oposição. Só que jamais existiu, no mundo dos fatos, disputa
nenhuma, nem candidato nenhum da oposição — os únicos candidatos para valer,
desde o começo, eram os do governo, e a única coisa que podia acontecer era a
sua eleição.
Não custa lembrar. No início dessa história o público leu, viu e ouviu, como notícia de grande seriedade, que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, poderia ser reeleito para o cargo. Maia, que de uns tempos para cá se “reinventou” como líder da esquerda nacional e marechal de campo da oposição, iria causar uma derrota mortal para o governo com a sua vitória; já podiam chamar o padre e encomendar o caixão para o presidente Jair Bolsonaro. Em nenhum momento, na verdade, Maia teve chance alguma: a lei proíbe que presidentes da Câmara sejam reeleitos, e o Supremo Tribunal Federal decidiu que a lei deveria ser mantida. Se nem o STF aceita uma aberração dessas, qual a chance real da reeleição? Três vezes zero, mas a fantasia foi mantida viva, respirando por aparelhos, até a mídia informar que não, não tinha rolado.
Como não dava com Maia, teria
de dar com outro; em cinco minutos apareceu um “candidato da oposição”,
apresentado como perfeitamente capaz de ganhar a presidência da Câmara. A
ficção foi mantida até o fim. A sessão decisiva já tinha começado, e os
candidatos já tinham feito os seus discursos finais, o da oposição em favor “da
democracia” — e a imprensa em peso continuava dando a disputa, que nunca
existiu, como “aberta”, quando ela já estava fechada antes de começar. Minutos
depois, concluída a contagem dos votos, o candidato do governo teve 302 votos
contra 145 — não uma diferença de dez ou vinte votos, mas mais do que o dobro.
Que disputa era essa? No Senado aconteceu a mesma coisa — mais de 70% dos votos
foram para o candidato do governo.
Nada disso é um erro de
avaliação. É o resultado inevitável do abandono da atividade de informar em
favor de um “jornalismo de resistência”. No entendimento dos que o praticam, e
que hoje formam a maioria, a imprensa é uma missão, e não um ofício: dizer que
a verdade é aquilo que se decide nas redações, e nada mais, tornou-se uma
espécie de dever moral, político e patriótico. O público, para o seu próprio
bem e para o bem do país, só pode ler, ver e ouvir o que os comunicadores acham
que lhe deve ser dito. Do contrário, a população, na sua ignorância, no seu
amadorismo ou na sua indiferença, vai ser enganada pelo governo, pela direita e
pelo mal — e a mídia, em nome da sobrevivência da democracia e outros valores,
está aí para combater nessa guerra que considera santa.
Jornalistas não gostam de
admitir,
nem para si próprios, que perderam
a importância
A cara da mídia brasileira tem
sido essa, de maneira geral, nos últimos cinco anos — possivelmente, desde que
foi consumado o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Isso pode ter começado, para os peritos em ciência política, bem antes. Afinal,
seja lá pela razão que for, o jornalismo é uma atividade que atrai
preferencialmente pessoas de esquerda — e pessoas que se entendem como “de
esquerda” não gostam, naturalmente, que presidentes de esquerda sejam depostos,
ou que a direita forme qualquer tipo de maioria. Mas essa é uma data tão boa
quanto outras, com a vantagem de estar mais próxima e envolver episódios ainda
não esquecidos. Assim que Dilma foi posta na rua, por decisão de mais de três
quintos do Congresso Nacional e com a aprovação do STF, a imprensa passou a
divulgar a tese de que tinha ocorrido um “golpe”. De lá para cá, não mudou mais
de ideia nem de assunto.
Quando alguém se mete nesse
caminho e não olha para mais nada, é inevitável, a uma hora qualquer, que acabe
dizendo que 2 + 2 são 22. Mais: se, em nome da fé, perde a capacidade de
admitir que errou, vai continuar errando. É a vida diária da imprensa
brasileira desde que se transformou em culto político e ideológico: faz
militância ativa em favor de uma visão de mundo e de vida, e, quando não tem
apoio nos fatos, pior para os fatos. Obviamente, essa conduta gera
consequências práticas. É uma espécie de engrenagem. Um veículo que coloca os
desejos de seus colaboradores acima das realidades acaba informando mal. Se
informa mal, perde a credibilidade. Se perde a credibilidade, perde a
importância. É onde estamos no momento: uma mídia cada vez mais excitada e cada
vez menos relevante.
Realmente, se um comunicador
diz uma coisa e acontece outra, e isso durante o tempo todo, qual a surpresa de
ver as pessoas levarem cada vez menos a sério o que ele anuncia? Mais ainda,
muita gente já nem se dá mais ao trabalho de utilizar os meios de comunicação
tradicionais para se informar. O Instituto Verificador de Circulação, órgão que
contabiliza o número de leitores na mídia impressa, anuncia que apenas entre
2018 e 2020 os jornais perderam um terço de sua tiragem; os dez maiores diários
do Brasil, somados, têm hoje uma circulação pouco acima de 400 mil exemplares
por dia em suas edições impressas. A audiência da televisão aberta e dos
telejornais enfrenta uma concorrência cada vez mais dura das transmissões
alternativas.
Após o impeachment de
Dilma, a mídia brasileira se meteu num desastre serial. Agiu ativamente para
derrubar o seu sucessor legal, Michel Temer; a maior rede de televisão do país
chegou, num lance extraordinário, a exigir sua renúncia em editorial levado ao
ar no chamado horário nobre. Bastou o presidente decidir que não iria
renunciar; pronto, não aconteceu nada. Deveria ter sido visto, aí, um sinal de
que as coisas não eram as mesmas — o veículo considerado o mais poderoso do
Brasil já não assustava nem Michel Temer. Mas ninguém viu coisa nenhuma. A
mídia, em seguida, entrou de corpo, alma e tudo o mais contra a candidatura de
Bolsonaro na campanha presidencial de 2018; chegaram a dizer, como fato, que
ele iria perder de “qualquer candidato no segundo turno”. Quem perdeu foi a
mídia: o resultado acabou sendo exatamente o oposto do que os comunicadores
comunicavam, e o vencedor foi um político que mal tinha 1 minuto de tempo no
horário eleitoral obrigatório da televisão. Foi anunciado, em seguida, que as
eleições poderiam ser anuladas por causa de um artigo de jornal — e por aí
vamos, de “Queiroz” a Sergio Moro, de genocídio a impeachment, de
nada em nada, até a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.
A imprensa brasileira, nisso
tudo, mostra um bloqueio mental curioso — em vez de aprender alguma coisa com a
observação da realidade, e de pensar se não seria o caso, talvez, de rever o
tipo de jornalismo que está praticando, faz o contrário: a cada fracasso, dobra
a aposta. Pensar no público, e indagar o que ele estaria achando de um
noticiário que só erra, e erra sempre do mesmo lado, não é uma opção na mídia
brasileira de hoje — jornalistas não gostam de admitir, nem para si próprios,
que perderam a importância. Vivem entre si mesmos, ou então no meio do seu
público — políticos, intelectuais, celebridades e assemelhados —, e preferem
continuar dizendo uns aos outros que são pessoas decisivas para estabelecer o
que acontece no Brasil e no mundo.
Se a maior emissora de
televisão do país, certa do peso decisivo de sua palavra, afirma que o
presidente da República tem de renunciar, mas o presidente ignora a ordem e não
acontece rigorosamente coisa nenhuma; se a imprensa toda não admite que um
candidato ganhe a eleição, mas ele ganha e também não acontece nada etc. etc.
etc. — bem, é sinal de que as coisas não estão correndo como os meios de
comunicação querem que elas corram. Mas e daí? Obviamente, deixou de haver
contato entre a realidade e o conteúdo da mídia. Não fica resíduo nenhum do que
acontece; cinco minutos depois da eleição do novo presidente da Câmara, a
questão mais notável para os comunicadores era relacionar tudo o que ele já
fez, está fazendo ou vai fazer de errado. Como na antiga casa real da França,
ninguém aprende nada nem esquece nada.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, 5-1-2021
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