Para o comitê central de administração da pandemia, a população paulista não está à altura do governo e dos seus colaboradores
J. R. Guzzo
O Alto Comissariado da Gestão
da Covid em São Paulo, um agrupamento de médicos geralmente empregados no
serviço público, burocratas diversos e especialistas em marketing,
é um caso raro na história gerencial do Brasil: quanto maior é o seu fracasso
na tarefa que foi encarregado de executar, maior é o seu poder junto ao
governador do Estado — ou seja, quanto mais gente morre, mais eles querem
mandar, no governo e na vida dos cidadãos. Os comissários, que operam sob o
nome oficial de “Centro de Contingência”, estão governando cada vez mais no
lugar do governador. Começaram como subordinados, passaram a ser autônomos e
hoje estão no comando.
Isso não acontece só em São
Paulo. Ao contrário, é mais ou menos a regra na maioria dos Estados
brasileiros, onde os governadores e os secretários de áreas não ligadas
diretamente à saúde foram largamente substituídos em sua autoridade legal por
comitês de “gestores de covid”: assinam os decretos e o resto da papelada, mas
estão indo a reboque das decisões tomadas por médicos, sanitaristas, técnicos e
todos os que se apresentam hoje sob a denominação genérica de “cientistas”. São
Paulo se destaca apenas porque é o Estado que tem mais mortos e infectados, e pelo
fato de ser também o mais populoso. Os “gestores”, em São Paulo, estão
especialmente agitados.
Não é que os governadores estejam proibidos de mandar. Dar ordens, oficialmente, eles até que podem; mas não têm mais força para ir contra as decisões que lhes são levadas pela polícia sanitária que montaram ao seu redor. Para não fazer o papel de quem recua no combate à pandemia, acabam aceitando e aprovando as medidas cada vez mais radicais propostas pelos especialistas-cientistas — e, como frequentemente acontece nesse tipo de organização, a ala extremista está no controle da maior parte dos grupos de administração da epidemia. Aos governadores, como o de São Paulo, resta assinar os decretos e receber elogios por sua “coragem” por parte do comissário-chefe. É aquele tipo de elogio que deixa mal o elogiado — no caso, ele é louvado pela coragem de fazer o que lhe dizem para ser feito. É isso, e só isso.
Não poderia haver sinal mais
claro desse descontrole na ordem natural — e legal — das coisas do que a atitude
da cúpula do “Centro de Contingência” de São Paulo diante do desastre que o
Estado vive no momento, por causa da covid e das medidas que estão sendo
tomadas para lidar com ela. O comitê dá a impressão, a cada dia, de estar mais
e mais à beira de um ataque de nervos. Os integrantes do grupo não são
políticos de ofício nem foram eleitos para nada; ignoram, assim, o livrinho de
regras básico de quem tem de governar alguma coisa. O resultado é que, diante
da adversidade formada à sua volta, reagem exatamente ao contrário do que se
espera de um governante: põem a culpa do problema nos governados. Já culparam a
“falta de um plano nacional”, a “postura do governo federal” etc. etc. Agora,
sobrou para o povo em geral.
“Não estamos satisfeitos com o
resultado obtido”, avisou o coordenador-executivo do Centro de Contingência
paulista. Ele se referia ao fato de que não houve melhora nenhuma na situação
depois que São Paulo adotou, dias atrás, a “fase emergencial”, a mais extremada
de todas as que foram tentadas até agora com o propósito de proibir a
circulação do vírus. Que melhora ele esperava, se continua aplicando as mesmas
medidas que vêm dando errado até agora? O coordenador-executivo e os seus
colegas querem, como na definição clássica da inutilidade, chegar a resultados
diferentes recorrendo aos mesmos métodos. Pretendem alcançar o sucesso fazendo
as mesmas coisas que os levaram ao fracasso; não pode dar certo. Como não
conseguem, e não vão admitir nunca que estão equivocados, têm de dar alguma
explicação. A última explicação que acharam é esta: “A culpa é da população de
São Paulo. Nós estamos certos, quem está errado é o povo”.
Os “gestores”, no caso, acham
que a população não está obedecendo direito às suas ordens — e, se não
“colaborar mais”, será punida com medidas ainda mais “duras e dramáticas”,
segundo adverte o chefe do grupo. Dizem, à sua volta, que “milhares de pessoas
estão morrendo” e que a repressão às liberdades públicas e aos direitos
individuais irá “até o Natal”. É um despropósito: como uma autoridade pública
vem culpar as vítimas pelas mortes que a pandemia causou? Como os cidadãos
podem ser ameaçados em função de algo que não fizeram? O governador João Doria,
que é político e entende as obrigações básicas de um político, dificilmente
diria uma coisa dessas. Mas aí é que está: o gestor-chefe da covid diz, e é
considerado um grande sujeito no governo do Estado.
Mas o que, na prática, a
população de São Paulo estaria fazendo de tão errado para ser ameaçada desse
jeito? Aparentemente, o motivo principal do desagrado do coordenador é que há
gente demais no metrô; na sua opinião deveria haver menos. Ninguém, ao que se
saiba, toma o metrô para passear. Todos, ali, têm a necessidade absoluta de
trabalhar para se manterem vivos; não podem fazer home office, como
recomendam os cientistas do “Fique em casa”. Além do mais, se não se amontoarem
no transporte público para ir ao trabalho, como é que se vai fazer o delivery para
os doutores do comitê? Como vai haver comida nos supermercados e remédios nas
farmácias? Quem vai resolver a falta de luz e o vazamento do gás? Quem vai
cuidar da água — fria e quente? Infelizmente, para fazer tudo isso, e um milhão
de coisas a mais, é indispensável que milhões de pessoas trabalhem todos os
dias e, com isso, desagradem o coordenador-executivo do Centro de Contingência.
É a velha história. Para a empregada doméstica, trabalho; para o patrão e a
patroa, home office.
O Alto Comissariado age como se São Paulo fosse um grande hospital
Circulam diariamente no
sistema de metrô e trens metropolitanos de São Paulo perto de 8 milhões de
pessoas, na capital e na área em sua volta; não existe nenhuma possibilidade
física de manter o “distanciamento social” num negócio desses, nem aqui nem em
lugar nenhum do mundo — coisa que, aliás, deveria estar clara para cientistas.
O que o Comissariado da Covid está querendo não faz nenhum nexo. “Esperávamos
que após uma semana de fase vermelha (ou ‘emergencial’) tivéssemos mais
cumprimento das recomendações, que não tivéssemos mais aglomerações, sobretudo
no transporte coletivo”, disse o gerente do grupo. Ou seja: as mortes se
multiplicam por culpa das pessoas que não cumprem as “recomendações” do governo
e usam o transporte público para ir ao trabalho. Há pior. Os gestores da covid
escalonaram os horários do metrô e dos ônibus. Pensaram: se houver menos metrô
e menos ônibus em circulação, haverá menos gente dentro, certo? Errado, é claro
— a única coisa que aconteceu é que houve o mesmo número de gente para um
número inferior de ônibus e de composições de metrô. Resultado: aglomeração
dentro e fora. Na visão dos comissários, o povo viaja amontoado e de pé porque
gosta — ou porque não sabe obedecer às ordens do governo.
É isso mesmo que se pode
esperar, na verdade, de um agrupamento como esse que o governo de São Paulo
montou para administrar a epidemia. Nunca na vida, pelas experiências que
tiveram, seus integrantes precisaram pensar em coisas como direitos
constitucionais, garantias para o cidadão, liberdades públicas ou cumprimento
da lei. Não é esse o seu mundo — como não faz parte do seu mundo, hoje,
qualquer coisa que não diga respeito à covid. Milhões de empregos perdidos?
Falências? Vidas arruinadas? Sua resposta automática para tudo isso é: “Salvar
vidas é mais importante”. Nunca lhes ocorreu, até hoje, que é indispensável
salvar, ao mesmo tempo, a vida de quem pega a doença e a de quem não pega; uma
e outra valem por igual. Os comissários não são ditadores por vocação, nem
pessoas de má índole. São médicos. Constituição, economia, trabalho? “Essas
coisas não são com a gente”, acham todos eles. “Não podemos ficar pensando
nisso se quisermos fazer o nosso trabalho.” Estão convencidos de que têm
questões mais importantes a tratar.
Os gestores da covid em São
Paulo, no fundo, acham muito natural que você tenha o mesmo estilo de vida que
eles têm — como é natural que um médico de regime, por exemplo, escolha o que o
cliente deve comer. Podem ter as melhores intenções, mas não são feitos para
governar, da mesma forma que nenhuma ocupação profissional qualifica alguém
para o trabalho de governo — a começar pelos militares, como tanto se sabe e se
repete. Se com militar não dá certo, então por que daria certo com médico? O
Alto Comissariado age como se São Paulo fosse um grande hospital, onde o médico
resolve e o paciente obedece — para o seu próprio bem. Mas São Paulo não é um
hospital. É um território onde vivem 45 milhões de pessoas; a imensa maioria
não é de funcionários públicos, nem de executivos com salário garantido. Seu
trabalho é sempre “presencial”, como se diz hoje. Seus filhos têm de ir à
escola. Sua renda depende de comparecerem ao serviço. Não podem ficar “em
casa”.
Nada disso existe para os
médicos-gestores de São Paulo. Por suas próprias palavras, como deixou claro o
coordenador-executivo, o trabalho é nocivo ao isolamento; no momento, está
fazendo muito mal ao Centro de Convergência. O resumo dessa ópera é que as
autoridades paulistas perderam a confiança no público — esse público que não
obedece direito às instruções que recebe e não colabora como deveria colaborar.
Neste momento, segundo os repetidos manifestos do comitê central de
administração da pandemia — e dos altos funcionários que passaram a se formar
em sua volta —, a população paulista, positivamente, não está à altura do
governo e dos seus colaboradores.
É uma comprovação do estado de
desordem mental em que se encontra o combate à covid em São Paulo a ideia,
realmente extraordinária, de que os paulistas estão morrendo não por causa de
um vírus que o governo não consegue controlar com medidas repressivas, e sim
porque não cumprem as ordens do Centro de Contingência. Os gestores se queixam
de que não há mais leitos de UTI suficientes — e, na mesma frase, acusam os
cidadãos pela situação de “extrema gravidade” na qual o Estado se vê envolvido.
Não há leitos nas UTIs porque as autoridades fracassaram na tarefa de
providenciar leitos nas UTIs. O que a população tem a ver com a administração
do sistema público de hospitais? Sua única culpa é ficar doente. A realidade é
que o “Fique em casa” deu errado — é o que mostram os números e os fatos,
expostos nas próprias entrevistas de quem foi incumbido de combater a
epidemia. Não foram capazes, até hoje, de apresentar nenhum argumento
sério para negar o seu fracasso. Não adianta, aí, assumir um ar indignado
contra a “irresponsabilidade” e botar a culpa nos mortos e feridos.
Todo o desmanche psicológico
que afeta hoje as autoridades do Estado de São Paulo foi ilustrado, de forma
quase cômica, pela secretária de Desenvolvimento Econômico. Numa entrevista à
Jovem Pan — uma das poucas ou a única emissora de rádio do Brasil em que se
pode ouvir hoje alguma pergunta que incomode os gestores da covid —, o
jornalista Paulo Figueiredo indagou: “A senhora continua recebendo o seu
salário?”. Essa é, no fundo, a grande divisão da história toda: de um lado, os
que continuam ganhando, e não precisam comparecer ao local de trabalho; e do
outro, os que não estão ganhando nada, porque perderam o emprego ou fecharam o
seu negócio. A secretária ficou muda. Tudo o que disse e repetiu, exaltada,
foi: “As pessoas estão morrendo!”. Poderia muito bem ter respondido: “Sim,
continuo recebendo porque continuo trabalhando”. Mas não. Entrou em transe, não
respondeu nada e pareceu desorientada. Foi triste.
Tudo isso é muito simples. Por
isso é preciso complicar tudo.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 52, 19-3-2021
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