Quem se nega a enxergar as bandalheiras de Lula tem sérias avarias na cabeça
Augusto Nunes
Não existe a verdade de cada
um. Há uma só: a verdade factual, que é o contrário da mentira. Não tenho
compromisso com o erro: constatado o equívoco, trato de reconhecê-lo, peço
desculpas ao leitor e sigo em frente, amparado na certeza de que nunca errei
por má-fé. Depois de tantos anos lidando com notícias, aprendi a ver as coisas
como as coisas são e a contar o caso como o caso foi. É falso que a história
seja escrita pelos vencedores. A versão que difundem tem a duração da sua
permanência no poder, porque os fatos não morrem. Frequentemente desmaiam. Às
vezes, depois de submetidos a selvagens sessões de tortura, passam longos
períodos em estado de coma. Mas acabam recuperando a saúde e acabam triunfando
sobre falsidades inevitavelmente frágeis. Brigar com fatos é perda de tempo. É
coisa para estrábicos por opção.
Eu estava de férias na França
no dia em que ouvi a conversa entre Aécio Neves e Joesley Batista. Conhecera o
então senador quando era o secretário do avô Tancredo. Acompanhei com admiração
sua trajetória em política, as relações sempre amistosas se estreitaram. Apoiei
ostensivamente Aécio na eleição presidencial de 2014 e, mesmo depois da derrota
na disputa contra Dilma Rousseff, continuei acreditando que ele ainda chefiaria
o governo brasileiro. Naquele dia em Paris, alguns minutos de conversa gravada
bastaram para escancarar a verdade: eu fora um dos milhões de iludidos pelo
homem que, em tantos anos de estreita convivência, nada aprendera com Tancredo
Neves.
Suspendi o período de folga, fui para o hotel e, uma hora depois, enviei o comentário para a Jovem Pan. Num texto curto, incluí-me entre os brasileiros que votaram no risonho Dr. Jekill sem imaginar que havia o sombrio Mr. Hyde que acabara de aparecer. Surpreso com o linguajar de pátio de cadeia, afirmei que a forma era mais detestável que o conteúdo, embora o que Aécio e Joesley disseram recomendasse a retirada das crianças da sala. Encerrei o comentário com um lembrete sempre oportuno: para casos de polícia, o remédio é cadeia. Voltei às férias, comprei uma garrafa de vinho e, em silêncio, ergui um brinde aos seres humanos honestos. Parece mentira, mas são muitos.
Pouquíssimos — se é que
existem — são os esquerdistas nativos dispostos a enxergar (e confessar que
enxergaram) o que até um cadáver exumado pode ver nitidamente, e sem se dar ao
trabalho de abrir os olhos. Como decifrar essa cegueira voluntária e
irredutível? O que leva alguém a venerar um corrupto duas vezes condenado em
duas instâncias? Como explicar o sumiço da autonomia intelectual em cérebros
onde já houve vida inteligente? O fato é que os devotos da seita veem as coisas
pelo avesso. Os reais negacionistas são os que negam que o chefão tenha cometido
um único e escasso pecado venial. Negaram a existência do Mensalão, negam o
Petrolão e negarão os escândalos ainda por devassar. Negam as bandalheiras do
PT. Negam-se a contemplar o Himalaia de provas e evidências que instalou na
cadeia o alto comando da quadrilha. Negam-se a reconhecer que, se Getúlio
Vargas saiu da vida para entrar na História, Lula perdeu o rumo da História e
caiu na vida. Numa vida bandida.
Eles qualificam de fascistas todos os que discordam do Evangelho
segundo Lula
A cabeça avariada dos
negacionistas produz imbecilidades que deixariam constrangido o cretino
fundamental de Nelson Rodrigues. A tribo jura que há uma democracia em Cuba,
recita que Nicolás Maduro transformaria a Venezuela numa potência mundial se os
norte-americanos deixassem e ouve em silêncio de catedral Lula avisando que
Napoleão invadiu a China. Os discípulos do mestre que não lê nem sabe escrever
acreditam que Sergio Moro descobriu em 2015 que Jair Bolsonaro se elegeria
presidente em 2018 e, para impedir que o maior presidente da História voltasse
ao poder, juntou numa aliança de proporções siderais delegados da Polícia
Federal, procuradores federais, desembargadores do Tribunal Regional Federal,
ministros do Supremo, diretores da Petrobras nomeados por Lula e envenenados
pela ingratidão, empreiteiros beneficiados por Lula também envenenados pela
ingratidão, uma frente multipartidária de políticos dispostos a delatar
inverdades, espiões treinados pela CIA e agentes do FBI fluentes em português,
fora o resto.
Os pajés ensinam que Lula
acabou com a pobreza em 2010 e Dilma erradicou a miséria em 2014, e que a
multidão de andrajosos que seguem acampados nas ruas, praças e avenidas do país
são brasileiros que subiram para a classe média durante os governos do PT e
foram devolvidos às divisões inferiores por Michel Temer e Jair Bolsonaro. A
esquerda negacionista também nega que seja orientada por uma cabeça baldia.
Aprenderam com a filósofa Marilena Chauí que, “quando Lula fala, o mundo se
ilumina”. E descobriram, graças ao professor Antonio Candido, que a fobia por
bancos escolares não impediu que o gênio da raça aperfeiçoasse uma intuição
mais aguda que a de Pelé invadindo a grande área inimiga. Está garantida a vaga
na sala principal de um Museu dos Estadistas ainda à espera da fundação.
Eles acordam declarando amor à
democracia e dormem declamando poemas que exaltam a liberdade. Mas negam o
convívio dos contrários, não admitem opiniões divergentes e qualificam de
fascistas todos os que discordam do Evangelho segundo Lula. Acham que o país é
presidido por um genocida decidido a exterminar todos os brasileiros, inclusive
os que o elegeram. Estão convencidos de que Bolsonaro não acredita na
existência de pandemias. E que é por culpa dele que sobram mortos e faltam
vacinas, que há mais doentes do que leitos de UTI, que o vírus chinês resolveu
acampar no Brasil até morrer de velhice. Quem discorda dessas certezas é
fascista, sonha com a ditadura e é negacionista.
Negacionista é marmanjo que se
nega a pensar com independência, é ovelha que acompanha o sinuelo na trilha que
conduz ao despenhadeiro. Para uma figura assim, aliás, negacionista talvez seja
pouco. Eis aí uma perfeita besta quadrada.
Título e Texto: Augusto
Nunes, revista Oeste, nº 52, 19-3-2021
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