Olavo de Carvalho
Se informo que, em dezembro de
2001, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva assinou um pacto de solidariedade com a
narcoguerrilha colombiana, respondem-me que sou um sujeito raivoso e muito
malvado. Se daquele dado extraio a conclusão logicamente incontornável de que o
presidente eleito não poderá reprimir as atividades das Farc no Brasil sem
romper o compromisso firmado e atrair contra si a ira de seus antigos aliados,
aí então sou diagnosticado como um caso perdido de direitismo, hidrófobo,
satânico, genocida.
E essas respostas não vêm de
analfabetos nem de meninos de 12 anos. Vêm de pessoas adultas e diplomadas. Vêm
da classe dita superior, dirigente, consciente e sabedora.
Que mais posso concluir daí
senão que muitos componentes dessa classe já não sabem distinguir entre um fato
e uma opinião pessoal, muito menos entre uma análise lógica e a expressão de um
sentimento?
O nome dessa incapacidade é analfabetismo
funcional. O problema das classes falantes no Brasil é que, excetuando
mensagens corriqueiras, não compreendem o que leem, portanto, muito menos
compreendem o mundo real, seja na escala macroscópica dos acontecimentos
mundiais, seja naquela mais próxima e modesta do seu horizonte de experiência
direta.
Pois o sentido de um texto,
que já vem hierarquizado em categorias – pré-mastigado, por assim dizer –, é
infinitamente mais fácil de apreender do que o nexo entre acontecimentos reais,
onde a inteligência do observador tem de fazer sozinha todo o serviço, desde as
analogias primitivas até as últimas precisões lógicas.
O sujeito que é burro diante
de um escrito é necessariamente mais burro diante da vida, exceto, é claro, no
círculo limitado da sua experiência repetitiva, onde a eficácia das soluções
herdadas lhe dá uma ilusão de inteligência.
Para piorar, quanto mais um indivíduo se mostra incapaz de apreender a mera referência fática do que a gente lhe diz, mais se sente habilitado a diagnosticar, por adivinhação, os sentimentos íntimos e as motivações ocultas do interlocutor – como se a inépcia linguística fosse um atestado de especial acuidade psicológica.
Ao ler este mesmo artigo, certos
leitores, justamente por não ter concentração bastante para comparar com os
dados de sua experiência interior as reações nele descritas, para ver se o caso
assinalado não é precisamente o seu, se sentirão instantaneamente habilitados a
proclamar que o escrevi por tais ou quais motivações sórdidas ou doentias, tão
somente para insultá-los sem razão, por mero sadismo.
Cada analfabeto funcional que
encontrei nesta vida imaginava ser o dr. Freud em pessoa. Um pequeno estoque de
chavões psicológicos prêts-à-porter é a melhor defesa contra os riscos
da autoconsciência, sempre um tanto humilhantes.
Quando, num teste de
compreensão de leitura entre estudantes de 32 países, os brasileiros tiraram o
último lugar, afirmei resolutamente que o resultado seria o mesmo se em vez de
estudantes os examinandos fossem profissionais adultos – incluindo acadêmicos,
jornalistas, educadores, parlamentares, ministros da Educação e (por que não?)
presidentes da República.
Os estudantes não deveriam ser
considerados a priori uma exceção devida a fatores acidentais, mas uma amostra
significativa da população em geral.
Por mais razoável que fosse, a
conclusão pareceu hiperbólica e ditada – é claro – unicamente pelos meus maus
instintos. A hipótese de confrontá-la com os dados objetivos nem sequer passou
pelas cabecinhas que a repeliram com esgares de indignação moral.
Claro: o primeiro e mais
patente dado objetivo a ser levado em conta teria de ser precisamente esse – o
fato de que, naquele mesmo momento, não estavam entendendo o que liam.
Todo esse estado de coisas,
que já era alarmante uns anos atrás, agravou-se muito com a onda nacional de
entusiasmo em torno da pessoa do sr. Luiz Inácio da Silva, cuja vitória foi,
explicitamente, uma vingança da incultura ressentida contra a erudição
supostamente real e supostamente pecaminosa que, sem a mínima razão plausível,
se associava à imagem de seus adversários.
Parece incrível, mas, num país
onde as maiores conquistas da inteligência foram mérito de pés-rapados – um
Machado de Assis, um Capristano de Abreu, um Cruz e Souza, um Farias Brito e tutti
quanti – a cultura continua a ser vista, sobretudo pelos que têm preguiça
de adquiri-la, como um bem de consumo reservado às classes superiores, um
emblema de chiqueza com que os pedantes humilham os pequeninos.
Daí a ambiguidade dos
sentimentos que evoca: todos a desejam, mas apenas para usá-la, sem que ela os
afete por dentro. A cultura deve permanecer exterior, como uma peruca ou um soutien,
que embelezam sem modificar substancialmente a coisa embelezada.
Cultura é a capacidade de
expressar com requintes de linguagem acadêmica as mesmas opiniões toscas e
preferências irracionais que o sujeito já tinha antes de adquiri-la. Nenhum
objeto de desejo poderia ser mais ambíguo e perturbador: quanto mais
intensamente cobiçado mais absurdo parece, e mais revoltante a cobrança social
que o exige para o desempenho de certos cargos.
Daí o inevitável choque de retorno: exausto de lutar em vão pela posse inútil
de um simulacro vazio, o cidadão por fim se revolta e proclama, do alto dos
telhados, a superioridade da ignorância explícita, agora rotulada “experiência
da vida” e enobrecida por um doutorado honoris causa.
A farsa, cansada de si mesma, assume-se como tal e obtém uma vitória de Pirro na afirmação gloriosa da falsidade de tudo. Como o Falstaff de Verdi, que, condenado a ser sempre o bufão da história, encontra alívio na proclamação da universal bufonaria: Tutto nel mondo è burla .
Título e Texto: Olavo de
Carvalho, Zero Hora, 15-12-2002, in “o mínimo que você precisa saber para
não ser um idiota”, páginas 249, 250 e 251
Digitação: JP, 5-5-2021
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