O deputado foi eleito pelo voto de 430 mil cidadãos e destituído por três magnatas que jamais tiveram um único voto na vida
J.R. Guzzo
Vai se tornando muito difícil,
para qualquer cidadão que tenha a capacidade de pensar dentro dos princípios da
lógica mais simples, acreditar que o Brasil viva numa democracia — ou, pelo
menos, o que se entende por democracia nas sociedades onde ela é realmente
praticada. Não é preciso entrar num curso de ciência política para se ver isso.
Uma das exigências mais básicas das democracias de verdade é ter um sistema de
justiça que funcione, que seja compreensível pelo cidadão comum e cujas
decisões se possa prever — elas precisam, essencialmente, seguir o que está
escrito nas leis e prover soluções justas, onde se veta o que está errado e se
aceita o que está certo. O Brasil de hoje não tem isso.
O que temos, na realidade do dia a dia, é uma justiça que produz injustiça; está fazendo exatamente o contrário do que se espera que fizesse, e com isso perde o seu nexo lógico. Quem precisa de injustiça? Ninguém — sobretudo uma democracia, que não pode funcionar sem um sistema judicial coerente. Decisões injustas, assim, são uma agressão direta ao regime democrático, sobretudo quando se tornam uma ação permanente do Estado. Acontece o tempo todo, e acabou de acontecer com a cassação do deputado Fernando Francischini [foto], do Paraná, por decisão de 3×2 numa “turma” do STF. Ele foi eleito pelo voto de 430 mil cidadãos paranaenses e destituído por três magnatas que jamais tiveram um único voto na vida. A vontade dos eleitores, que é outro fundamento essencial da democracia, não valeu nada no seu caso.
A cassação do mandato do deputado Francischini é um ato de injustiça em estado bruto — e mais um exemplo flagrante da aberração funcional em que se transformou o sistema judiciário no Brasil. Ele foi punido por um crime que simplesmente não existe no Código Penal Brasileiro — falou que duas urnas da eleição de 2018 estavam sendo roubadas. E daí? Pode ser verdade, pode ser mentira ou alguma coisa entre as duas; só não pode ser crime, porque não existe lei dizendo que é. Se sua declaração causou danos, ele poderia ter sido processado penalmente por calúnia, injuria ou difamação, e responder a ações cíveis de reparação. Foi acusado, processado e condenado pelo delito inexistente de propagar “desinformação”.
Não há como resolver essa
insânia. Francischini foi cassado por ser um deputado “bolsonarista”, como diz
a mídia (não um deputado paranaense; um deputado “bolsonarista”), e para
intimidar outros críticos do sistema eletrônico de votação em vigor, com a
criação de jurisprudência preventiva. O recado é o seguinte: “Cuidado. Quem
falar mal do sistema eleitoral vai ser cassado. Olha o Francischini”. O resto é pura hipocrisia. O caso todo é
tão absurdo que em seu primeiro julgamento, no TRE do Paraná, o deputado foi
absolvido por 7 a 0. Mas isso não fez diferença nenhuma. O caso acabou no
Supremo, e o Supremo
funciona hoje como o mais poderoso partido de oposição no Brasil; é
óbvio que a decisão foi reformada no TSE e, no fim, no STF, por um voto de
diferença.
É injustiça pura e simples.
Porque raios o deputado, ou qualquer cidadão brasileiro, não pode falar mal das
urnas eletrônicas, ou do que lhes der na telha? Em que lei está escrito que o
sujeito é obrigado a confiar no sistema eleitoral existente? De novo: se o
deputado fez uma acusação falsa, há farto remédio para isso no Código Penal e
demais legislação. Mas ele foi punido, com a perda do mandato, por uma infração
que não está tipificada na lei — e a tipificação, ou seja, a descrição
detalhada, clara e por escrito de cada obrigação legal das pessoas, é uma
exigência elementar de qualquer sistema de justiça, e de qualquer Estado
democrático de direito. Se não está na lei, não pode haver punição. Ponto
final.
O STF tem dois ministros
nomeados pelo atual presidente e nove inimigos declarados do governo. Não é
preciso dizer que os dois votos a favor do deputado Francischini foram os dos
ministros indicados por Bolsonaro; também não é preciso dizer que suas decisões
serão automaticamente anuladas pelos outros nove, sempre que houver alguma
conotação política no processo. É essa, hoje em dia, a previsibilidade da
Justiça brasileira — pode-se contar, com certeza, que as decisões vão ser
contra o governo.
Título e Texto: J.R. Guzzo,
Gazeta do Povo, 9-6-2022, via Revista
Oeste
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