sábado, 1 de outubro de 2022

Ao contrário do dr. Costa, a realidade não engana

Dado que a trapaça do “apoio às famílias” acabou rapidamente desmontada, o dr. Costa viu-se obrigado a recorrer a múltiplos delírios socialistas, na esperança, razoável, de que se tornassem coletivos

Alberto Gonçalves

Na quarta-feira, o seguinte texto surgiu no Twitter do dr. Costa: “A Linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto-Vigo traduz as grandes opções estratégicas que definimos para #Portugal em 2015: estarmos na primeira linha da luta contra as alterações climáticas, mudando o paradigma de mobilidade e investindo na ferrovia, e promovermos a coesão interna.”

É escusado apurar se o autor disto foi o dr. Costa ou um empregado. A linguagem de trapos, a estonteante sucessão de clichés ordinários e a proliferação de patranhas chegam e sobram para consagrar um estilo. Se não chegassem, e sobrassem, o estilo seria evidente na fotografia que acompanha o texto: uma imagem do dr. Costa em típica gargalhada, rodeado por figurinhas do socialismo autárquico, todas a rir em obediência ao chefe, todas com as mãos papudas cruzadas sobre os abdomens dilatados. Banha-da-cobra, de facto. Uma pessoa olha para aquilo, palavras e imagem, e percebe imediatamente estar no movediço terreno da tramoia, e das criaturas a evitar com o zelo com que se evita a rubéola.

Uma pessoa, vírgula. Nunca devemos subvalorizar a inclinação de boa parte da humanidade para acreditar em mentirosos flagrantes. Uma parte, felizmente menor, até acredita em políticos. E uma parte menoríssima, infelizmente com residência em Portugal, acredita no dr. Costa. É para estes que o dr. Costa fala e, no sentido muito livre e irresponsável do termo, “governa”. E é deles que o dr. Costa ri.

Se repararam, a referida patranha trata dos comboios velozes, que agora se anunciam para 2030 como em 1999 o eng. Guterres, pai espiritual desta gente, os anunciara para 2009, e como em 2009 o eng. Sócrates, esse, os anunciara para 2013 ou lá quando era. Há aqui um padrão, uma técnica comum: sempre que a crise aperta, e as intrujices triviais não são suficientes, acena-se com alucinações de prazo longo ou indefinido, e de benefício pelo menos discutível. Entretanto, ganha-se tempo para fazer o que é preciso: distribuir fortunas pornográficas entre amigos para “estudos” e adjudicações apressadas e convencer o eleitorado de que vem aí o próximo “desígnio nacional”, por estapafúrdio ou insultuoso que seja.

Na crise estrutural a que descemos, e que é uma mera antecipação da desgraça sem retorno a que desceremos em breve, os “desígnios” voltam à ribalta, na habitual mitificação de Grandes Obras que se justificam somente pela grandeza das verbas envolvidas. A “alta velocidade” ferroviária, cuja serventia, pertinência ou viabilidade não se discutem, é apenas um exemplo. Dado que a trapaça do “apoio às famílias” acabou rapidamente desmontada, o dr. Costa viu-se obrigado a recorrer a múltiplos delírios socialistas, na esperança, razoável, de que se tornassem coletivos.

Outro dos delírios é a TAP, perdão, que a TAP vai à vida dela após 4 mil milhões impecavelmente investidos. O delírio a que me refiro é o “novo” aeroporto “de Lisboa”. Uma curiosidade sobre o novo aeroporto de Lisboa é o consenso em construí-lo onde calhar exceto em Lisboa, na Ota ou no Montijo, em Alcochete ou Santarém, em Vermoim ou Ponte da Barca. Uma segunda curiosidade é o consenso em construí-lo, ponto: é fascinante que uma necessidade sentida há 53 anos, quando a Portela recebia à rasquinha 2 milhões de passageiros/ano, continuou a ser sentida em 2019, quando a Portela continuava a receber à rasquinha 27 milhões de passageiros, e continua a ser sentida hoje, quando a Portela continua a receber à rasquinha uns 22 milhões de passageiros. Quantos estrangeiros deixam de visitar o nosso lindo cantinho por falta de vaga no atual aeroporto da capital? Ninguém sabe, ninguém quer saber. À semelhança do que acontece com os comboios, o objetivo é anunciar pechisbeques vistosos, torrar dinheiro nos respectivos preliminares e encolher os ombros no momento em que a coisa cair no esquecimento ou nos tribunais. Não tarda, movido pelo excesso de desespero ou pela carência de vergonha (é complicado distinguir), o dr. Costa anuncia um foguetão de patente nacional.

Falta só um bocadinho. Há duas semanas, o dr. Costa lembrou a existência da Agência Espacial Portuguesa, que bem precisava ser lembrada. Daqui a jurar que Portugal colonizará Marte em 2045, por causa das “alterações climáticas” e do “paradigma da mobilidade”, é um saltinho. Um saltinho que um vendedor de fancaria executa sem qualquer dificuldade. Enquanto por cá andar, o vendedor de fancaria dará saltos cada vez maiores.

A questão é que o dr. Costa pode prometer tudo e os portugueses podem engolir tudo. Ao contrário dele, a realidade não engana, e entra dia após dia pelos rombos abertos de um país em frangalhos, governado por matraquilhos e presidido por um entertainer. É o clássico círculo vicioso: à medida que o presente fica insuportável, são de esperar mais “apostas no futuro”, mais “opções estratégicas”, mais mentiras desmesuradas. E mais miséria, verdade seja dita. Mas, em #Portugal, a verdade não se diz.

Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 1-10-2022

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