quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Liberdade de opinião e liberdade de expressão

 Pedro Madeira

O segundo capítulo de Sobre a liberdade pode ser lido independentemente do resto do livro e constitui provavelmente a mais poderosa defesa da liberdade de opinião e de expressão alguma vez feita. O princípio do dano apoia naturalmente a existência de liberdade de opinião e de expressão, dado que tanto as opiniões individuais como a expressão de opiniões individuais constituem assuntos que só ao próprio dizem respeito; mas não é preciso aceitar o princípio do dano para se concordar com o argumento fundamental de Mill a favor da liberdade de opinião e de expressão.

Em linhas gerais, o argumento é este: há três possibilidades: uma opinião pode ser totalmente verdadeira, parcialmente verdadeira, ou totalmente falsa. Se é totalmente verdadeira, ou parcialmente verdadeira — como é o caso mais frequente —, então proibi-la é um mal, porque impede as pessoas de ter contato com novas verdades. Se é totalmente falsa, ainda assim é útil que as pessoas a conheçam, porque perceber as posições dos adversários é essencial para perceber melhor a nossa própria posição, e porque uma opinião que não é criticada passa a ser aceita acriticamente e torna-se um dogma morto, ainda que verdadeiro.

E, independentemente de a opinião em questão ser verdadeira ou falsa, impedir a divulgação de uma doutrina é pressupor infalibilidade — é estar a pressupor que os seres humanos nunca se enganam, o que é claramente falso. Há uma sutileza na posição de Mill que é importante perceber: quando critica os que parecem pressupor que são infalíveis, Mill não está a partir do princípio de que todas as nossas crenças podem ser falsas em conjunto; está apenas a partir do princípio mais fraco de que, tanto quanto sabemos, qualquer uma das nossas crenças, tomada individualmente, pode ser falsa.

Uma objeção a este argumento seria dizer que a verdade de uma opinião é independente da sua utilidade: que pode ser útil impor certas crenças, mesmo que não se tenha a certeza de que sejam verdadeiras — isso implicaria que se poderia restringir a liberdade de opinião e de expressão. Mill antecipa esta objeção e dá dois contra-argumentos.

Em primeiro lugar, é altamente duvidoso que, na prática, a utilidade de uma opinião possa ser avaliada independentemente da sua verdade ou falsidade (como certa vez ouvi dizer: quem tem a verdade é que faz os canhões; não é quem tem os canhões que faz a verdade). Em segundo lugar — e este é o ponto fundamental — os seres humanos são tão falíveis a determinar a utilidade de uma opinião como a sua verdade. Proibir que se expressasse determinada opinião que alguns considerassem nociva para o bem-estar da sociedade seria estar novamente a pressupor a infalibilidade dos seres humanos.

Mill reconhece, no entanto, que há um tipo de caso em que se pode restringir legitimamente a liberdade de expressão: quando expressar determinada opinião constitui uma incitação ilegítima à violência.

No início do terceiro capítulo, Mill diz que certas opiniões, como a opinião de que a propriedade privada é um roubo, ou que os comerciantes de trigo fazem os pobres passar fome, devem poder ser livremente divulgadas na imprensa — mas não seria permissível usá-las como palavras de ordem incendiárias perante pessoas que se estivessem a manifestar em frente à casa de um comerciante de trigo, pois tal constituiria uma incitação ilegítima à violência. Porque Mill não desenvolve este aspecto de forma aprofundada, é preciso acrescentar alguns comentários.

É óbvio que nem todas as incitações à violência são ilegítimas. Por exemplo: caso o país estivesse a ser atacado militarmente por uma nação estrangeira, seria legítimo incitar à violência contra essa nação. Um problema que agora se levanta é que não é imediatamente óbvio o que se devia fazer em relação, por exemplo, a marchas organizadas por movimentos xenófobos, racistas e homofóbicos. No entanto, este não é um problema específico da teoria de Mill: todos os que defendem a liberdade de opinião e de expressão têm de lidar com ele.

Duas perguntas que poderão agora ocorrer ao leitor são as seguintes: que diria Mill em relação à condenação do historiador inglês David Irving a três anos de cadeia, na Áustria, por negar o holocausto? E em relação ao episódio da publicação das caricaturas do profeta Maomé?

Não há dúvida de que Mill se oporia à condenação de David Irving. Se a fasquia do que constitui dano fosse colocada tão baixo que as declarações de David Irving constituíssem dano, então as declarações de pessoas que garantem ter sido abduzidas por extraterrestres, ainda que não tenham quaisquer provas, constituiriam também dano — o que não faz qualquer sentido. Logo, as declarações de David Irving não constituem dano.

Só nos sentimos tentados a considerar que os dois casos não são análogos porque consideramos as declarações de Irving repulsivas, ao passo que as outras considerá-las-emos, na pior das hipóteses, disparatadas, mas inofensivas.

Suspeito que o que está subjacente à atitude das pessoas que concordam com a punição de Irving, mas não com uma punição dos que afirmam ter sido abduzidos por extraterrestres, é uma vontade subliminar de impedir a divulgação de ideias politicamente incorretas. Tal constitui não apenas uma clara infração da liberdade de expressão, como pode também revelar-se desastroso. Tomemos o caso de ideias que são consideradas por muitos politicamente incorretas: a ideia de que homens e mulheres têm diferentes aptidões e capacidades, e a ideia de que diferentes raças têm diferentes aptidões e capacidades.

Esta é uma questão empírica, e não ideológica (o que não significa que por vezes os estudos realizados sobre o assunto não possam sofrer distorções causadas por posições ideológicas dos investigadores — mas essa é uma questão diferente). Várias pessoas rejeitam de início a possibilidade de o sexo ou a raça influenciarem as aptidões e capacidades, e suspeita-se mesmo que proibiriam os estudos em questão se pudessem, pois consideram ofensivo o próprio fato de se levantar essa hipótese. Note-se a semelhança entre este caso e o de David Irving; em ambos, pessoas aparentemente bem-intencionadas querem suprimir a divulgação de certas posições por as considerarem politicamente incorretas. Torna-se aqui evidente que invocar a alegada incorreção política de uma posição como justificação para a suprimir é, na verdade, uma forma encapotada de censura.

Passemos à segunda pergunta: concordaria Mill com a publicação de caricaturas de uma figura religiosa, caricaturas que irão ofender as pessoas dessa religião? Parece evidente que aceitar os argumentos de Mill nos obriga a defender que se deve permitir a publicação de caricaturas como as aludidas. Se a publicação das caricaturas em questão fosse considerada uma incitação ilegítima à violência, então vários atos que claramente não constituem incitações ilegítimas à violência teriam também de ser considerados incitações ilegítimas à violência.

Imagine-se que um jornal publicava uma caricatura que parodiava os homossexuais e que, por causa disso, um homossexual indignado punha uma bomba no edifício do jornal e matava toda a gente. Quereria isso dizer que publicar a caricatura havia constituído uma incitação ilegítima à violência? É óbvio que não. Como Ronald Dworkin disse recentemente, ninguém tem o direito de não ser ridicularizado. O fato de uma caricatura ser de mau gosto não significa que a sua publicação não deva ser permitida, a menos que se esteja disposto a aceitar a criação de uma polícia destinada a impedir que as pessoas se ofendam umas às outras. (É de salientar que muitos dos opositores da publicação acusaram os governos ocidentais de hipocrisia, ao permitirem a condenação de Irving, mas pouco ou nada fazerem em relação às caricaturas — e provavelmente têm razão.)

Poder-se-ia objetar a este argumento dizendo que, embora o Estado não deva interferir na publicação de caricaturas, ainda assim as pessoas devem ter o bom senso de não publicar certas coisas. Mas uma polícia informal do bom senso é tanto ou mais grave que uma polícia formal da ofensa, quer estejamos a falar de caricaturas religiosas, ou de declarações sobre o Holocausto; e talvez seja ainda mais perigoso para o ambiente democrático que se entranhe uma autocensura exacerbada do que uma censura imposta por outros, formal ou informal.

Título e Texto: Pedro Madeira, Introdução, livro “Sobre a liberdade”, de John Stuart Mill, Saraiva de Bolso, páginas 15 a 19

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