Pedro Madeira
Em linhas gerais, o argumento é este: há três possibilidades: uma opinião pode ser totalmente verdadeira, parcialmente verdadeira, ou totalmente falsa. Se é totalmente verdadeira, ou parcialmente verdadeira — como é o caso mais frequente —, então proibi-la é um mal, porque impede as pessoas de ter contato com novas verdades. Se é totalmente falsa, ainda assim é útil que as pessoas a conheçam, porque perceber as posições dos adversários é essencial para perceber melhor a nossa própria posição, e porque uma opinião que não é criticada passa a ser aceita acriticamente e torna-se um dogma morto, ainda que verdadeiro.
E, independentemente de a
opinião em questão ser verdadeira ou falsa, impedir a divulgação de uma
doutrina é pressupor infalibilidade — é estar a pressupor que os seres humanos nunca
se enganam, o que é claramente falso. Há uma sutileza na posição de Mill que é importante
perceber: quando critica os que parecem pressupor que são infalíveis, Mill não está
a partir do princípio de que todas as nossas crenças podem ser falsas em
conjunto; está apenas a partir do princípio mais fraco de que, tanto quanto
sabemos, qualquer uma das nossas crenças, tomada individualmente, pode ser
falsa.
Uma objeção a este argumento
seria dizer que a verdade de uma opinião é independente da sua utilidade: que
pode ser útil impor certas crenças, mesmo que não se tenha a certeza de que
sejam verdadeiras — isso implicaria que se poderia restringir a liberdade de
opinião e de expressão. Mill antecipa esta objeção e dá dois contra-argumentos.
Em primeiro lugar, é altamente
duvidoso que, na prática, a utilidade de uma opinião possa ser avaliada
independentemente da sua verdade ou falsidade (como certa vez ouvi dizer: quem
tem a verdade é que faz os canhões; não é quem tem os canhões que faz a
verdade). Em segundo lugar — e este é o ponto fundamental — os seres humanos são
tão falíveis a determinar a utilidade de uma opinião como a sua verdade.
Proibir que se expressasse determinada opinião que alguns considerassem nociva
para o bem-estar da sociedade seria estar novamente a pressupor a
infalibilidade dos seres humanos.
Mill reconhece, no entanto, que há um tipo de caso em que se pode restringir legitimamente a liberdade de expressão: quando expressar determinada opinião constitui uma incitação ilegítima à violência.
No início do terceiro
capítulo, Mill diz que certas opiniões, como a opinião de que a propriedade
privada é um roubo, ou que os comerciantes de trigo fazem os pobres passar
fome, devem poder ser livremente divulgadas na imprensa — mas não seria
permissível usá-las como palavras de ordem incendiárias perante pessoas que se
estivessem a manifestar em frente à casa de um comerciante de trigo, pois tal
constituiria uma incitação ilegítima à violência. Porque Mill não desenvolve
este aspecto de forma aprofundada, é preciso acrescentar alguns comentários.
É óbvio que nem todas as
incitações à violência são ilegítimas. Por exemplo: caso o país estivesse a ser
atacado militarmente por uma nação estrangeira, seria legítimo incitar à
violência contra essa nação. Um problema que agora se levanta é que não é imediatamente
óbvio o que se devia fazer em relação, por exemplo, a marchas organizadas por
movimentos xenófobos, racistas e homofóbicos. No entanto, este não é um
problema específico da teoria de Mill: todos os que defendem a liberdade de
opinião e de expressão têm de lidar com ele.
Duas perguntas que poderão
agora ocorrer ao leitor são as seguintes: que diria Mill em relação à
condenação do historiador inglês David Irving a três anos de cadeia, na
Áustria, por negar o holocausto? E em relação ao episódio da publicação das
caricaturas do profeta Maomé?
Não há dúvida de que Mill se
oporia à condenação de David Irving. Se a fasquia do que constitui dano fosse
colocada tão baixo que as declarações de David Irving constituíssem dano, então
as declarações de pessoas que garantem ter sido abduzidas por extraterrestres,
ainda que não tenham quaisquer provas, constituiriam também dano — o que não
faz qualquer sentido. Logo, as declarações de David Irving não constituem dano.
Só nos sentimos tentados a
considerar que os dois casos não são análogos porque consideramos as
declarações de Irving repulsivas, ao passo que as outras considerá-las-emos, na
pior das hipóteses, disparatadas, mas inofensivas.
Suspeito que o que está
subjacente à atitude das pessoas que concordam com a punição de Irving, mas não
com uma punição dos que afirmam ter sido abduzidos por extraterrestres, é uma
vontade subliminar de impedir a divulgação de ideias politicamente incorretas.
Tal constitui não apenas uma clara infração da liberdade de expressão, como pode
também revelar-se desastroso. Tomemos o caso de ideias que são consideradas por
muitos politicamente incorretas: a ideia de que homens e mulheres têm
diferentes aptidões e capacidades, e a ideia de que diferentes raças têm
diferentes aptidões e capacidades.
Esta é uma questão empírica, e
não ideológica (o que não significa que por vezes os estudos realizados sobre o
assunto não possam sofrer distorções causadas por posições ideológicas dos
investigadores — mas essa é uma questão diferente). Várias pessoas rejeitam de
início a possibilidade de o sexo ou a raça influenciarem as aptidões e capacidades,
e suspeita-se mesmo que proibiriam os estudos em questão se pudessem, pois
consideram ofensivo o próprio fato de se levantar essa hipótese. Note-se a semelhança
entre este caso e o de David Irving; em ambos, pessoas aparentemente bem-intencionadas
querem suprimir a divulgação de certas posições por as considerarem politicamente
incorretas. Torna-se aqui evidente que invocar a alegada incorreção política de
uma posição como justificação para a suprimir é, na verdade, uma forma
encapotada de censura.
Passemos à segunda pergunta:
concordaria Mill com a publicação de caricaturas de uma figura religiosa,
caricaturas que irão ofender as pessoas dessa religião? Parece evidente que
aceitar os argumentos de Mill nos obriga a defender que se deve permitir a publicação
de caricaturas como as aludidas. Se a publicação das caricaturas em questão fosse
considerada uma incitação ilegítima à violência, então vários atos que
claramente não constituem incitações ilegítimas à violência teriam também de
ser considerados incitações ilegítimas à violência.
Imagine-se que um jornal
publicava uma caricatura que parodiava os homossexuais e que, por causa disso,
um homossexual indignado punha uma bomba no edifício do jornal e matava toda a
gente. Quereria isso dizer que publicar a caricatura havia constituído uma
incitação ilegítima à violência? É óbvio que não. Como Ronald Dworkin disse
recentemente, ninguém tem o direito de não ser ridicularizado. O fato de uma
caricatura ser de mau gosto não significa que a sua publicação não deva ser permitida,
a menos que se esteja disposto a aceitar a criação de uma polícia destinada a impedir
que as pessoas se ofendam umas às outras. (É de salientar que muitos dos opositores
da publicação acusaram os governos ocidentais de hipocrisia, ao permitirem a condenação
de Irving, mas pouco ou nada fazerem em relação às caricaturas — e provavelmente
têm razão.)
Poder-se-ia objetar a este
argumento dizendo que, embora o Estado não deva interferir na publicação de
caricaturas, ainda assim as pessoas devem ter o bom senso de não publicar
certas coisas. Mas uma polícia informal do bom senso é tanto ou mais grave que uma
polícia formal da ofensa, quer estejamos a falar de caricaturas religiosas, ou
de declarações sobre o Holocausto; e talvez seja ainda mais perigoso para o
ambiente democrático que se entranhe uma autocensura exacerbada do que uma
censura imposta por outros, formal ou informal.
Título e Texto: Pedro
Madeira, Introdução, livro “Sobre a liberdade”, de John Stuart Mill,
Saraiva de Bolso, páginas 15 a 19
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