Václav Klaus
Um pré-requisito para encontrar o caminho
certo para a recuperação do Ocidente é livrar-se dos nossos próprios erros e
pressuposições, não culpando o mundo em nosso redor
Václav Klaus |
Chegou no momento certo. O
comunismo já estava tão fraco que não era capaz nem estava pronto para se
defender com eficácia. Digo repetidamente que o comunismo não foi derrotado. De
alguma forma, derreteu.
A “Revolução de Veludo” é
considerada um marco fundamental da história moderna. Tornou-se o ponto de
partida da nossa caminhada em direção à liberdade, democracia parlamentar e à
economia de mercado. E no sentido de uma vida normal. Três semanas depois, fiz
parte do primeiro governo pós-comunista e assumi a importante pasta de ministro
das Finanças. Essa circunstância deu-me a oportunidade de preparar e organizar
uma radical transformação económica, social e política do país.
Mencionar este evento
histórico já quase esquecido não é sem propósito. A experiência Checa, tanto
antes como depois da queda do comunismo, não deve ser esquecida ou negligenciada.
Pode-se aprender muito com ela. Deve tornar-se uma lembrança presente nos
nossos atuais esforços para lidar com o momento muito problemático que vivemos
da história humana. Devemos estar atentos, mais do que em qualquer altura
destes trinta e três anos. Estamos numa encruzilhada. De novo.
O comunismo empobreceu-nos em muitos aspectos. Privou-nos de muitas “normalidades” que os cidadãos de países livres consideram – e sempre consideraram – um dado adquirido. Vivi 60% da minha vida antes do fim do comunismo. Não foi um período curto. Foi uma perda, uma privação, um empobrecimento. Por outro lado, foi uma oportunidade de aprender muito durante essa época. A nossa visão do mundo está, portanto, mais aguçada e, sem surpresa, a nossa análise da era atual mais crítica.
Acho esta experiência
particularmente relevante quando vejo o que acontece no mundo. A minha
frustração de hoje começa a ser comparável aos sentimentos que experimentamos
nos últimos anos do comunismo. Os sonhos e ambições que tínhamos no momento da
queda do comunismo não se tornaram – para meu grande pesar – na nossa realidade
de hoje. A realidade atual não é o que considerávamos uma sociedade livre. Não
apenas no meu país ou na minha parte do mundo.
O que está a acontecer conosco
ou em nosso redor? Tenho dúvidas quanto à adequação da frase utilizada em
diversos fóruns, bem como em tantos outros textos, de que “estamos perante um
mundo novo”. Um mundo novo? Agora? Em que sentido é novo? Estamos a andar para
a frente ou para trás? Eventualmente, quererão os autores dessa expressão
lembrar-nos que, no Ocidente, estamos a sair da era relativamente livre,
tranquila e próspera das últimas décadas? Terá sido essa era um período
singular, uma excepção histórica?
Não falemos de um “mundo
novo”. Vamos chamar-lhe pelo nome certo. Vamos chamar-lhe mundo
pós-democrático, pós-político e pós-normal. Não parece haver algo de novo. No
passado a humanidade viveu muitas vezes tais situações. No entanto, pode haver
agora uma diferença. Estou alarmado com a inegável perda de normalidade,
racionalidade e bom senso.
Alguns de nós – eu inclusive –
frequentemente usamos a famosa expressão “admirável mundo novo” de Aldous
Huxley. A minha ênfase sempre foi no adjetivo “admirável”, não no qualificativo
“novo”. Todos os sinais indicam que entramos numa perigosa era da instabilidade
política, económica e financeira ligada à supressão da liberdade e do mercado
livre. Ouso dizer que estamos agora a aproximarmo-nos de uma variante desse
admirável mundo novo.
Onde surgem os principais
sintomas desta nova fase? Desde logo na esfera política. Há várias décadas
assistimos à evaporação das disputas político-ideológicas. Com isso, os
problemas fundamentais da sociedade deixaram de ser abordados politicamente.
Coincide esta particularidade com o enfraquecimento dos partidos políticos, que
se tornaram nada mais do que um adorno enganoso do nosso sistema. Funcionam
apenas como uma aparência de democracia. Na realidade, os interesses da maioria
passaram a ser subordinados aos interesses de minorias barulhentas e
agressivas, representadas por grupos arrogantes de rentismo, e não por partidos
políticos. A totalidade da sociedade não é agora, por isso, nem suficientemente
representada nem satisfatoriamente levada em consideração.
As clássicas disputas
políticas com base em ideias claras e bem definidas, formuladas e expressas com
autenticidade pelos partidos, caíram em descrédito e estão a ser substituídas
por talk-shows superficiais na TV e por uma “democracia de
especialistas” em que os políticos perdem a preponderância do seu papel na
sociedade. As figuras públicas e os autoproclamados especialistas, assumiram
essa função.
A relevância sem precedentes
dos especialistas ficou visível durante a epidemia de Covid. A política,
significando a avaliação de alternativas e de custos e benefícios, como
resultado do seu modo de pensar, desapareceu. Não tornou o sistema mais
democrático, mais amigável, nem mais eficiente. Lembra-me os anos e décadas de
esforços dos ideólogos comunistas para substituir a política pela
“expertocracia”.
Aquilo com que lidamos agora
não é uma importação do Leste. Foi autofabricado no Ocidente. Foi o próprio
Ocidente que abriu as portas para a migração em massa ao aceitar a ideologia do
multiculturalismo. Foi o próprio Ocidente que levou a uma profunda crise
energética ao promover as loucuras do ambientalismo e do Green Deal, causando a
si mesmo enormes prejuízos económicos. E foi o próprio Ocidente que minou sua
competitividade ao suprimir os mercados por meio de uma extensa e prejudicial
regulação burocrática baseada em objetivos políticos. Um pré-requisito para
encontrar o caminho certo para a recuperação do Ocidente é livrar-se dos nossos
próprios erros e pressuposições, não culpando o mundo em nosso redor.
Concentremo-nos nos nossos
equívocos. Não falemos de “reconfiguração de alianças na Europa”, não tentemos
encontrar “novos equilíbrios”. Falemos sobre um retorno à política com conteúdo
ideológico. Sobre a necessidade de um renascimento dos partidos políticos. Procuremos
novos líderes políticos corajosos. Regressemos à “política política”.
Concordo que é preciso – como
se costuma dizer – “reinventar a política externa”. Temos de voltar a adoptar o
seu significado e conteúdo originais. A política externa deve expressar e
perseguir os interesses nacionais e promovê-los procurando compromissos úteis.
Como estamos a ver agora na Ucrânia, onde não há compromisso, há uma guerra.
Quando não falamos uns com os outros, disparamos uns contra os outros. Todas as
partes do conflito atual deveriam há muito ter começado a negociar. Não apenas
os russos e os ucranianos.
Todos sabemos que a guerra não
caiu do céu. Há muito tempo que está em criação. Os problemas não começaram em fevereiro
de 2022. Já em 2014, alertei para a desestabilização da Ucrânia e o crescente
confronto entre o Ocidente e a Rússia. Infelizmente, o então confronto
transformou-se numa guerra de grande escala com milhares de vítimas, enorme
destruição de vastas regiões da Ucrânia e mudanças fundamentais na cena internacional.
Culpar o agressor é
fácil, mas mais difícil é conseguir ver e compreender toda a sequência dos
acontecimentos que levaram a isso.
Menciona-se frequentemente o
papel fundamental dos estados do sudeste europeu na expectativa da NATO e da
União Europeia. Após visitar recentemente o norte da Macedónia, posso confirmar
que as pessoas estão confusas e se sentem maltratadas. Os Estados da Europa de
Leste não veem com bons olhos a constante condescendência do Ocidente. Estes
estados têm, sem dúvida, história, cultura, religião e experiências recentes
diferentes da dos europeus ocidentais e centrais. Não estão apenas
geograficamente mais perto de Istambul do que de Bruxelas, mas também mental e
historicamente mais próximos. Devemos estar cientes disso.
Título e Texto: Václav
Klaus, Convidado da Oficina
da Liberdade, via Blasfémias,
26-11-2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-