Carina Bratt
O MENINO GILMAR de quatorze anos, sofria. Era um sofrimento torpe e vil, fecundo e dolorido, como chagas abertas e no dizer dele próprio, ‘arrebatador’. Por conta dessa dor angustiante, nervosa e inquieta, nada o fazia sair daquela bolha que criara em volta de si mesmo. Havia alguma coisa escondida dentro de seu peito. Algo ilógico, quase fescenino (1), que não o deixava ser inteiro e completamente feliz.
Uma espécie, tipo assim, de enfermidade estranha que não permitia
deslanchasse por caminhos floridos e desse de cara com as coisas boas da vida.
Por essa razão, Gilmar se reprimia. Ficava trancado a maior parte do tempo em
seu quarto, deitado, espiando algo apócrifo (2), como se buscasse, no branco do
teto de seu pequeno quadrado, um motivo, um apenas, para continuar vivendo. Centralizado
no meio do estuque, como se olhasse para ele, uma lâmpada de sessenta velas se
fazia presa num bocal enferrujado.
Encandeio (3) e bocal careciam, com certa urgência, de pronta substituição.
Trancado consigo mesmo, o guri não recebia nenhum amigo, mesmo os mais
próximos. Havia o Luiz, o Casinho, o Bebeto... quando eles se aproximavam
gritando do portão, ora tocando a campainha, ou chamando para jogar bola no
velho campo de aviação, ora os mais afoitos batendo nos vidros da sua janela, convidando
para um mergulho no rio que cortava o bairro, ou para andar de carrinho de rolimã,
o Esquisito não respondia, não dava sinais de vida.
Nem dona Pura, sua mãe, e a tia Felícia (irmã dela), conseguiam demovê-lo
daquele silêncio pesado ou tirá-lo da toca. As refeições eram feitas numa
mesinha que dona Sebastiana, da casa em frente, lhe dera em doação. A tal
mesinha pertencia a Cristina, uma menina da mesma idade dele. Cristina, a irmã
de Onofre, apelidado de ‘Gafanhoto’. Tal alcunha ninguém das redondezas, ou da
escola, sabia o motivo.
O fato é que o piá somente dava os ares da graça, em vista de precisar ir para os estudos. Mesmo assim, a toque de caixa. Na volta, regressava sozinho, deixando os demais colegas na saudade das suas risadas e embalados nas poucas ‘aprontações’ que faziam pelo caminho. Apenas um fedelho o fazia sair do casulo. Onofre, o ‘Gafanhoto’. Quando ele pintava em cena, Gilmar pulava da cama apressado, e corria à janela, abrindo-a imediatamente em escancaro, às falas e alegrias do vizinho.
Logo pedia para que o pirralho entrasse. Na maioria das vezes, a criatura
pulava pela janela. Juntos, entabulavam conversas e risos. Faziam planos. Não
fossem alertados pelas respectivas mães, certamente entravam noite adentro. Havia
uma explicação para esses gestos carinhosos e trocas de mil gentilezas.
‘Gafanhoto’ sabia que Gilmar gamara de pedra. Tinha os quatro pneus furados
pela irmã dele, a Cristina. A bem da verdade, o jovem dava todo o apoio e
sempre que podia, inventava uma maneira de convidar o amiguinho ‘apaixonado’,
para visitas à sua casa.
Gilmar, claro, nessas horas, saltitava de contente. O seu ‘eu interior’ dava
a impressão que romperia boca afora. A coisa toda criou vida e forma, se fez
surreal, quando certa vez, numa dessas idas à casa do ‘Gafanhoto’, um fato
inusitado redundou grandioso. Se fosse por vontade própria, ou ensaiado, ou
mesmo premeditado, ainda vá lá. Nada disso! Tudo aconteceu por mero acaso.
Cristina ao sair do banheiro enrolada numa toalha minúscula, se deparou com
Gilmar no corredor parado no portal do quarto do irmão.
O ‘encontro’ foi tão infantil e ao mesmo tempo inesperado e desesperador,
que a mocinha se alarmou alvorotada (4) e surpresada, deixando cair aos pés a
tolha que cobria a sua adolescente e florida nudez estonteante. Gilmar, sem
perda de tempo, o cavalheirismo à flor da pele, saltou da emoção e correu a
ajudar a beldade a se recompor do abrupto, ao tempo em que se desculpava com
uma tremedeira na voz e resto do corpo. Um desajeitado ‘desculpe, minha linda,
não tinha a intenção de assustar você’.
Daí para a frente, Gilmar viajou feio na maionese. Subiu e desceu
montanhas de sonhos. Contou carneirinhos acordado. Viu estrelas cadentes num
céu em pleno meio dia. As suas noites passaram a ser mais apetitosas a seus
olhos de moleque recém caçado pelas fragilidades do amor angelical desnudado
diante da sua estuporação incontrolável. Desde então, só olhos e pensamentos
para a inimitável vizinha, que ao acaso, numa providência à gesto rasgado,
deliberou que o amor inocente de Gilmar e Cristina estavam irremediavelmente
selados pela incandescência das flechas de um Cupido meio que Assanhado.
De fato, foi um gostar à primeira vista. Um querer cego ao inaugural destampo
de uma visão que ele jamais pensava ou imaginava existir. Quanto mais assim, pintada
com cores vivas, do nada, tudo ali, ao alcance da sua gulodice, vendo e sentindo,
quase tocando... roçando a pele macia e aveludada daquela deusa que mudou, para
sempre, o seu marasmo, e, logicamente, enfeitiçou à sua maneira máscula de
apreciar o belo sexo. Gilmar apesar dessa realeza, se fechou em copas. Se
trancou de tudo, de todos.
A feiticeira provocadora das suas quimeras (em vista do acontecido) igualmente
deixou de ser vista. Igual a ele, não abria a janela de seu quarto. As
cortinas, idem. À noite, em espias anônimas, encoberto pela escuridão, ele
observava à presa, num ‘cinco contra um’ até se esbaldar num êxtase de
‘reviração de olhinhos’. Ao oposto, Cristina, a iluminação do seu aposento às
claras, Gilmar via a silhueta dela indo e vindo, se aproximando dos vidros da
janela, se movimentando para lá e para cá, de um lado para outro, como se
impaciente, atarantada, sedenta e pressurosa desejasse ardentemente tê-lo por
perto.
O amor é assim. Surge sedento e tinhoso. Aflora de um simples cair de
toalha. Se renova como o romance de ‘Capitu’ (5). Se agiganta como ‘Romeu e
Julieta’ (6), se recria como ‘O Velho pelo Mar’ (7). E se fará eterno,
invencível, mavioso, sempre que duas almas distantes e apartadas se encontrarem
num determinado ponto do caminho, ou do destino. O amor nunca morre. Renasce a
cada minuto, lindo e pungente, arguto (8) e manhoso dentro de todas nós.
1) Fescenino – Tudo o que é devasso e obscuro.
2) Apócrifo – Duvidoso, falso.
3) Encandeio – Aquilo que turva, ou que embaça. No sentido colocado no texto, a lâmpada de poucas velas ou de parca claridade.
4) Alvorotada – Perturbada, amotinada, assustada.
5) ‘Capitu’ – Romance de Machado de Assis.
6) ‘Romeu e Julieta’ – Romance de Shakespeare.
7) ‘O Velho e o Mar’ – Romance de Ernest Hemingway.
8) Arguto – Aguçado, ladino, finório e perspicaz.
Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 20-11-2022
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