domingo, 20 de novembro de 2022

[As danações de Carina] Essa tal ‘magia do amor’ às vezes aflora de onde menos se espera

Carina Bratt

O MENINO GILMAR de quatorze anos, sofria. Era um sofrimento torpe e vil, fecundo e dolorido, como chagas abertas e no dizer dele próprio, ‘arrebatador’. Por conta dessa dor angustiante, nervosa e inquieta, nada o fazia sair daquela bolha que criara em volta de si mesmo. Havia alguma coisa escondida dentro de seu peito. Algo ilógico, quase fescenino (1), que não o deixava ser inteiro e completamente feliz.

Uma espécie, tipo assim, de enfermidade estranha que não permitia deslanchasse por caminhos floridos e desse de cara com as coisas boas da vida. Por essa razão, Gilmar se reprimia. Ficava trancado a maior parte do tempo em seu quarto, deitado, espiando algo apócrifo (2), como se buscasse, no branco do teto de seu pequeno quadrado, um motivo, um apenas, para continuar vivendo. Centralizado no meio do estuque, como se olhasse para ele, uma lâmpada de sessenta velas se fazia presa num bocal enferrujado.

Encandeio (3) e bocal careciam, com certa urgência, de pronta substituição. Trancado consigo mesmo, o guri não recebia nenhum amigo, mesmo os mais próximos. Havia o Luiz, o Casinho, o Bebeto... quando eles se aproximavam gritando do portão, ora tocando a campainha, ou chamando para jogar bola no velho campo de aviação, ora os mais afoitos batendo nos vidros da sua janela, convidando para um mergulho no rio que cortava o bairro, ou para andar de carrinho de rolimã, o Esquisito não respondia, não dava sinais de vida.

Nem dona Pura, sua mãe, e a tia Felícia (irmã dela), conseguiam demovê-lo daquele silêncio pesado ou tirá-lo da toca. As refeições eram feitas numa mesinha que dona Sebastiana, da casa em frente, lhe dera em doação. A tal mesinha pertencia a Cristina, uma menina da mesma idade dele. Cristina, a irmã de Onofre, apelidado de ‘Gafanhoto’. Tal alcunha ninguém das redondezas, ou da escola, sabia o motivo.

O fato é que o piá somente dava os ares da graça, em vista de precisar ir para os estudos. Mesmo assim, a toque de caixa. Na volta, regressava sozinho, deixando os demais colegas na saudade das suas risadas e embalados nas poucas ‘aprontações’ que faziam pelo caminho. Apenas um fedelho o fazia sair do casulo. Onofre, o ‘Gafanhoto’. Quando ele pintava em cena, Gilmar pulava da cama apressado, e corria à janela, abrindo-a imediatamente em escancaro, às falas e alegrias do vizinho.

Logo pedia para que o pirralho entrasse. Na maioria das vezes, a criatura pulava pela janela. Juntos, entabulavam conversas e risos. Faziam planos. Não fossem alertados pelas respectivas mães, certamente entravam noite adentro. Havia uma explicação para esses gestos carinhosos e trocas de mil gentilezas. ‘Gafanhoto’ sabia que Gilmar gamara de pedra. Tinha os quatro pneus furados pela irmã dele, a Cristina. A bem da verdade, o jovem dava todo o apoio e sempre que podia, inventava uma maneira de convidar o amiguinho ‘apaixonado’, para visitas à sua casa.

Gilmar, claro, nessas horas, saltitava de contente. O seu ‘eu interior’ dava a impressão que romperia boca afora. A coisa toda criou vida e forma, se fez surreal, quando certa vez, numa dessas idas à casa do ‘Gafanhoto’, um fato inusitado redundou grandioso. Se fosse por vontade própria, ou ensaiado, ou mesmo premeditado, ainda vá lá. Nada disso! Tudo aconteceu por mero acaso. Cristina ao sair do banheiro enrolada numa toalha minúscula, se deparou com Gilmar no corredor parado no portal do quarto do irmão.

O ‘encontro’ foi tão infantil e ao mesmo tempo inesperado e desesperador, que a mocinha se alarmou alvorotada (4) e surpresada, deixando cair aos pés a tolha que cobria a sua adolescente e florida nudez estonteante. Gilmar, sem perda de tempo, o cavalheirismo à flor da pele, saltou da emoção e correu a ajudar a beldade a se recompor do abrupto, ao tempo em que se desculpava com uma tremedeira na voz e resto do corpo. Um desajeitado ‘desculpe, minha linda, não tinha a intenção de assustar você’.

Daí para a frente, Gilmar viajou feio na maionese. Subiu e desceu montanhas de sonhos. Contou carneirinhos acordado. Viu estrelas cadentes num céu em pleno meio dia. As suas noites passaram a ser mais apetitosas a seus olhos de moleque recém caçado pelas fragilidades do amor angelical desnudado diante da sua estuporação incontrolável. Desde então, só olhos e pensamentos para a inimitável vizinha, que ao acaso, numa providência à gesto rasgado, deliberou que o amor inocente de Gilmar e Cristina estavam irremediavelmente selados pela incandescência das flechas de um Cupido meio que Assanhado. 

De fato, foi um gostar à primeira vista. Um querer cego ao inaugural destampo de uma visão que ele jamais pensava ou imaginava existir. Quanto mais assim, pintada com cores vivas, do nada, tudo ali, ao alcance da sua gulodice, vendo e sentindo, quase tocando... roçando a pele macia e aveludada daquela deusa que mudou, para sempre, o seu marasmo, e, logicamente, enfeitiçou à sua maneira máscula de apreciar o belo sexo. Gilmar apesar dessa realeza, se fechou em copas. Se trancou de tudo, de todos.

A feiticeira provocadora das suas quimeras (em vista do acontecido) igualmente deixou de ser vista. Igual a ele, não abria a janela de seu quarto. As cortinas, idem. À noite, em espias anônimas, encoberto pela escuridão, ele observava à presa, num ‘cinco contra um’ até se esbaldar num êxtase de ‘reviração de olhinhos’. Ao oposto, Cristina, a iluminação do seu aposento às claras, Gilmar via a silhueta dela indo e vindo, se aproximando dos vidros da janela, se movimentando para lá e para cá, de um lado para outro, como se impaciente, atarantada, sedenta e pressurosa desejasse ardentemente tê-lo por perto.

O amor é assim. Surge sedento e tinhoso. Aflora de um simples cair de toalha. Se renova como o romance de ‘Capitu’ (5). Se agiganta como ‘Romeu e Julieta’ (6), se recria como ‘O Velho pelo Mar’ (7). E se fará eterno, invencível, mavioso, sempre que duas almas distantes e apartadas se encontrarem num determinado ponto do caminho, ou do destino. O amor nunca morre. Renasce a cada minuto, lindo e pungente, arguto (8) e manhoso dentro de todas nós.

Notas de rodapé: 
1) Fescenino – Tudo o que é devasso e obscuro. 
2) Apócrifo – Duvidoso, falso.
3) Encandeio – Aquilo que turva, ou que embaça. No sentido colocado no texto, a lâmpada de poucas velas ou de parca claridade.
4) Alvorotada – Perturbada, amotinada, assustada.
5) ‘Capitu’ – Romance de Machado de Assis.
6) ‘Romeu e Julieta’ – Romance de Shakespeare.
7) ‘O Velho e o Mar’ – Romance de Ernest Hemingway.
8) Arguto – Aguçado, ladino, finório e perspicaz.

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