terça-feira, 29 de novembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Azeite e vinagre

Aparecido Raimundo de Souza

A MULHER
se vira para o marido, ou melhor, para o ex que acabou de ligar para ela e desabafa:
— Escuta aqui Xenofonte. Pare de me encher o saco. Vou lhe dar a carne sem osso, para facilitar a sua empreitada. Seguinte: por que não se deita, relaxa o corpo, solta uns traques (1) e morre?
O sujeito conhece bem a figura de sua ex companheira e sabe que ela come o anzol e cospe a isca. Em vista disso, tenta ser cavalheiro e manter um diálogo amistoso. Lembra, entrementes, que estão às portas de ingressarem na justiça, para legalizarem a separação. Ainda que assim, por que não lutar de unhas e dentes para tê-la, ao menos, no legalismo de boa amiga?

— Melissa, de coração, não estou com vontade partir para a cidade dos pés juntos. Relaxar, ainda está um pouco cedo. Quanto a soltar uns puns, nem sei qual a derradeira vez em que me pus a ficar por conta do organismo com o fiofó à mercê de uma privada. Faz anos, doce amada, que não me dou ao luxo de ter gases. E você sabe como sou cuidadoso com essas coisas. Por isso, sempre penduro minha bunda onde posso alcançá-la.
Melissa, entretanto, não parece muito propensa a dar trela e continua alfinetando. Com ferocidade, ataca:
— De qualquer forma, Xenofonte, faça um favor a si mesmo. Deixe de respirar. Enfie uma garrafa de cachaça em cada buraco do nariz. A propósito: está sozinho?

— Sim.
— Ótimo. Aproveita, antes das garrafas no nariz, toma umas boas doses de uísque, e, em seguida, dê uma voltinha até a esquina. Uma vez lá, pule na frente do primeiro carro que pintar. Mas cuidado! Não vá me aparecer vivo depois. Eu detestaria cuidar de você preso a uma cadeira de rodas...
O varão, num rápido viajar, recorda à consorte, os bons tempos que passaram juntos, e sem magoá-la brinca:
— Tudo isso é consequência do tamanho do amor que nutre por mim?
A matrona (2) continua endiabrada e cruel. E o veneno não se faz esperar:
— Engano seu, queridinho. Não sinto amor nem ódio. Só não estou a fim de papo furado.

— Eu sabia. Você chegou à conclusão que nossa ligação é mais profunda que as palavras. Acertei na mosca?
— Que mosca, seu doido? Pirou? Não quero falar com você porque no fundo não temos mais nada a tratar.
— Melissa, eu te amo!
— Vira o disco, Xenofonte. Cansei das suas mentiras.
— Falo sério! Você sabe que é verdade.
— Nada que vem de você espelha o real.
— Vamos nos dar uma chance, Melissa.
— De novo? Já tentamos várias vezes. Dez, para ser mais exata. E no que deu? Em nada! Sabe por quais motivos? Somos diferentes, temos desejos contrários, posicionamentos inversos, convergências múltiplas, etc. etc...

— E a nossa filha?
Antes da resposta, Xenofonte sente que a sua companheira, do outro lado da linha, se eriça (3) levada pelo indevido da vociferação prestes a explodir de dentro de seu interior:
— Deixa a Vandinha fora dessa nossa sujeira.
— Melissa, volte para mim. — Fala pausadamente como se tirasse as palavras de um monólogo estúpido. — Quero reconstruir um novo caminho ao seu lado.
— Não me faça rir. Você é desses que chora azeite por um olho e vinagre por outro: em resumo, só não lhe compra quem não te conhece.
— Deixa de bobagem. Volta para mim...

— Jamais.
— Eu imploro!
— Não se rebaixe. — Ademais, não precisa descer tanto. Apesar dos pesares, você é um cara bonito, bem-apessoado, tem um bilau no tamanho ideal, faz bem a lição de casa, bomba legal, sabe como deixar no ponto uma carne de mijo à proporção de fazer uma mulher perder o juízo. Logo arranjará alguém que lhe abra as portas do pecado e o ponha a revirar os olhinhos. Nosso tempo, Xenofonte, acabou.
— Melissa, por favor, não me deixe. Minha cabeça está como uma dessas bolas de festa de aniversário que as pessoas enchem com um monte de porcarias.

Pouco habituada a ser maleável, Melissa segue detonando abespinhamentos e azedumes:
— Pegue uma faca pontuda e se estoure. É fácil. Sabe onde fica a jugular?
— Não posso! Mesmo morto não descansaria em paz!
— E por que não?
— Porque te amo, Melissa. Você é a mulher da minha vida. Sem você me sinto um garoto propaganda de todas as tragédias que ainda sequer chegamos a vivenciar.
— Vou desligar. Preciso resolver uns problemas.
— Fique mais um pouco...

— Tenho que sair.
— Cinco minutos.
— Infelizmente seu tempo acabou. Mas olha, façamos um trato: ligue aqui para casa daqui a cinquenta anos.
— Está legal. A que horas?
— As nove em ponto. (Risos). Sabe o que eu aprecio em você, apesar das nossas rusgas, Xenofonte?
— Não.
— Seu jeito sarcástico.
— Sarcástico?
— Sim. Vai ser a única coisa agradável que guardarei. Vandinha me saiu a sua fuça esculpida e escarrada. Não leva nada a sério. Sempre com uma piadinha na ponta da língua.

— Fico feliz em saber. Pelo menos alguma coisa fará você lembrar um pouquinho de mim. Por falar nisso, como me descreveria numa única palavra, tirando o sarcástico, evidentemente?
— Babaca!
— Está vendo? Não falei? É isso que faz meu coração bater mais forte e transpirar cinco vezes além do normal.
— Transpirar, Xenofonte? — O que é que lhe faz transpirar além do normal?
— As emoções fortes e sucessivas que a sua presença (ainda que por uma simples ligação) causa ao metabolismo do meu corpo.
— Lá vem você com mais baboseiras. Xenofonte desista. Cansei de ser chinela para seu pé torto. A propósito, para terminar, responde a uma pergunta, se eu fizer?

— Estando ao meu alcance...
— Lembra do que me pediu da última vez em que estivemos juntos?
— Sim, minha princesa. Que eu lhe desse um beijo longo e ardente, com sabor de sexo selvagem. Que fizesse você ir às nuvens...
— Errado, Xenofonte!
— Se não isso, confesso, realmente deu branco. Diga ai, minha fofa. O que foi?
— Que eu comprasse um creme para passar nos cotovelos. Tenho o direito de saber: por que me pediu um creme para passar nos cotovelos?

— Tudo bem. Eu respondo. Antes, porém, esclareça um pequeno detalhe. Acaso chegou a comprar o produto?
— Como sempre né. Banquei a idiota e cai na esparrela (4). Mas por que eu carecia de passar exatamente nos cotovelos? — Diz ai, Xenofonte. Mate a minha curiosidade!
Xenofonte solta uma gostosa gargalhada antes de esclarecer a ex-esposa o motivo de sua estranha exigência:
— Seus cotovelos, meu amor. Eles são extremamente ásperos, como pele de crocodilo. Eu detesto saliências irregulares, abruptas ou rugosas. Aliás, você sempre soube disso. Fêmea que se presa, com as quinas cheias de rebarbas e fora dos padrões normais, lembra aquelas lambisgóias (5) que não depilam o sovaco, tampouco aparam os cabelos da perseguida.

Melissa dá vida a um novo chilique. Esbraveja, trovoando impropérios:
— Xenofonte, vá para o raio que o parta. Cotovelos ásperos quem os têm é a senhora sua mãe.
— Não bota minha santa mãezinha no meio. Nossos desacertos e desencontros devem permanecer entre nós. Vamos parar de brigar. O que acha de uma pausa? Falemos de seus desejos. Espero que você não tenha esquecido que realizei, a contento, exatamente uma semana depois de você ter me colocado no olho da rua, aquela sua antiga fantasia secreta.
— Droga nenhuma...
— Não? Como ousa dizer isso agora?

— Você se mostrou inoperante...
— Alto lá. A sua aspiração secreta não era que eu me fantasiasse de Super-Homem?
— Sim!
— Então. Cumpri à risca. Achei ridículo, mas por você, por nosso amor, pela nossa filha, valeu o sacrifício.
— Só que você não pôs em prática a atuação principal. Ou seja, meu queridinho Xenofonte, você se esqueceu de sair, como o meu herói, voando pela janela da sala.
— Que loucura, Melissa! Você queria que eu saísse voando... e me esborrachasse todo? Nosso apartamento ficava (digo, ainda fica) no décimo segundo andar...

— Era minha gana, minha perturbação. A maior, por sinal. E você não realizou. Portanto... seu super-homem de meia tigela...
— Eu te amo, Melissa.
— Não acredito. Penso, inclusive, que seria capaz de me trair por um bom par de penas novas.
— Amor, suas pernas são lindas, divinais.
— Xenofonte, você entendeu exatamente o que eu quis sinalizar. Fiz referência a penas, penas, penas de galinha. Galinha bicho.
— Essas suas dúvidas me matam. Jamais trocaria você por pernas novas ou penas, como queira. Você é e sempre será a minha galinha dos ovos de ouro.

— O quê? Você me chamou de galinha?
— No bom sentido, minha vida. Galinha no bom sentido.
— A conversa está boa, mas, realmente, preciso rachar no trecho. Adeus.
— Posso saber onde pretende ir a essas horas?
— Não lhe devo explicações. Tudo bem. Vou abrir uma exceção. Tenho uma hora com meu dentista.
— Estamos falando do doutor Zebrinha Queirós?
— Ao que recordo nosso estilista bucal esses anos todos!
— Uma dúvida. É com ele que você me colocou chifres? – Retruca o ex numa surpresa resfolegante:

— Xenofonte, nunca lhe enfeitei com galhos — Esbraveja Melissa, com severidade. — Nunca!
— Mas confesse. Quando você está no consultório do doutor Zebrinha... ele lhe deixa ficar um segundo, ao menos, de boca fechada? No bom sentido...
— Por certo.
— Então você reconhece peremptoriamente (6) que abre a boca para ele? – Insiste Xenofonte num atalho indolente. — Não abre...?
— A tal ponto que chego a sentir fortes dores nos maxilares. No bom sentido!
— Piranha, safada. – Ruge, urra, protesta, fora de si. – Vagabunda!

— Está vendo? Não temos condições de continuar nosso relacionamento. Ainda que quiséssemos. Você, agora, deu para me agredir pelo telefone. É melhor pararmos aqui. Adeus, Xenofonte. Não me ligue, não me procure. Esqueça que existo. Coloquemos, a partir de agora, um ponto final definitivo e derradeiro em nossos caminhos. Será melhor para todos. Assim a gente não se machuca, nem se fere, nem sai depois aos pedaços. Mando meu advogado entrar em contato com você, na segunda. Passe bem!
— Safada de maus bofes. Vai abrir a boca para o seu doutorzinho de merda.

— De merda, Xenofonte? Você disse de merda? Pelo menos ele tem uma coisa que você nunca me deu...
— O que é que ele tem que eu nunca lhe dei?!
— Quer mesmo saber, sua besta de uma figa? O Zebrinha tem um baita de um boticão (7) desse tamanho. Está me ouvindo? Um boticão enorme, que me deixa com a bo... ou melhor, com a bu...
Clic.

Xenofonte não ouve as derradeiras palavras. Momentaneamente abalado com a sua metade da maçã, e incapaz de uma efusão recíproca, desliga antes e recoloca o telefone em seu suporte. Conscientizado que seu destino é useiro e vezeiro na linha tênue de aguentar sofrimentos um atrás do outro, e para completar, aparvalhado com os andrajos de sua alma enlutada, cai num choro incontido.

Notas de rodapé: 
1) Traques – Flatulências ou peidos. 
2) Matrona – Aquela que gosta de mandar, ou de ser a tal. 
3) Eriça – Tudo o que espeta ou arrepia. 
4) Esparrela – Embuste, armadilha ou ardil. 
5) Lambisgóias – Mulheres da vida, prostitutas ou namoradeiras 
6) Peremptoriamente – Terminantemente, definitivamente, sentenciosamente. 
7) Boticão – Instrumento cirúrgico usado pelos dentistas para arrancar um determinado dente com firmeza. O mesmo que fórceps. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 29-11-2022

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