terça-feira, 22 de novembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Celebridades instantâneas

Aparecido Raimundo de Souza

O PROFESSOR GODOFREDINHO, filho do radialista Godofredo Fungoso, ensinava matemática para Isaurinha, a filha de quinze anos de seu Ariscorno Benzadeus, dono da única papelaria do bairro. Para cumprir essa finalidade à risca, todas as tardes ele se dirigia à residência da estudante, onde além dela estava dona Ofélia Benzadeus, mãe da garota e Magda, a empregada. Coisa de um mês e vinte dias, por algum motivo que não ficou muito claro para a menina (pelo menos naquele momento), o professor Godofredinho passou a dar por encerrada as aulas meia hora mais cedo.

Dessa forma, o estudo-reforço (que deveria começar às treze horas, ou uma hora depois da chegada da escola, tempo de a criatura fazer um rápido lanche e, em seguida, se dirigir à sala ficando aos cuidados do preceptor), tomou outro rumo. Pelo combinado com o pai, do nada, o sujeito passou a finalizar seus ensinamentos as quatorze e trinta. Isaurinha, de início, não se incomodou. Meia hora a menos, ou a mais, não faria muita diferença. Como a coisa acabou virando rotina, a beldade ligou o pisca alerta.

Junto com ele, uma pulguinha marota apareceu e passou a incomodar atrás da orelha. Por assim, resolveu comunicar o fato a seu pai. Antes, decidiu vigiar o professor Godofredinho para saber, “na real”, qual a dele. Na terça-feira, após o sujeito dar por cumprida a sua missão e passar como lição para o dia seguinte uma série de exercícios além do que deveria, a donzela achou estranho os volumes das páginas do livro a serem pesquisadas seguidas de um calhamaço de exercícios que ele nem sequer explicara.

Uma luzinha se acendeu, de vez, na imaginação fértil da bela criança. Não havia dúvidas. O cara de pau flertava (1) com a empregada. Só poderia ser isso. Para confirmar, logo que o professor Godofredinho se preparou para puxar o carro, dizendo a ela que se acomodasse em seu quarto, a espertinha se tocou e concluiu que não restava mais dúvidas. Havia, realmente, algum babado rolando à solta. Suas suspeitas se confirmaram, quando o professor, ao se despedir naquele começo de semana, não cruzou o portão e Rex, o fiel cachorro, não latiu. O Rex sempre estardalhava (2) quando alguém entrava ou saia.

Ao ter absoluta certeza de que o professor Godofredinho realmente não se escafedia (3), deu um tempo de cinco minutos. Findo o prazo, entrou em campo e fez uma rápida excursão pela cozinha. Magda, a funcionária de serviços gerais, se via aturdida com a máquina de roupas ligada e no momento da vistoria se prendia estendendo as peças retiradas. Franziu o cenho. Deu meia volta e se escondeu em seu quarto. Na quarta-feira, repetiu a dose. Nada de suspeito com a criada. Na quinta-feira, sem ter pego algo que corroborasse as suas dúvidas e obscuridades, resolveu colocar o plano “b” em ação.

Como nas investidas anteriores não flagrou a Magda fora dos seus afazeres, e levando em conta que o professor misteriosamente sumia dentro da casa sem ganhar efetivamente a saída definitiva, partiu para o tudo ou nada. O plano “b”, pulularia (4) brotando em cena. Como aconteceu nas vezes anteriores, ao se colocar na cozinha e dar de fuça com a Magda, topou com a dita ocupada. Focada numa possibilidade remota, ou numa saída meio que perigosa, carecente, sobretudo, objetivando ser investigada de imediato, com muito cuidado e sem mais delongas, foi em frente.

Por assim, na sexta-feira, ao se livrar do professor, correu para seu quarto. Todavia, diminuiu o tempo. Dois minutos. Depois, para não pairar nenhuma dúvida, se pôs em ação. Confirmou que a Magda seguia fiel ao posto e ao salário que recebia. Decidiu, pois, averiguar o que desde o começo da semana (e ao todo, há mais de um mês) bailava em suspeita e até aquele momento, se negava a acreditar. Cruzou a entrada do quarto dos hóspedes, tremendo pior que calcinha enfrentando ventania presa em dedos de fraco pregador. Espiou pelo vão da fechadura. Perdeu, nesse gesto, não mais que um minuto.

Apavorada, os batimentos acelerados, confirmou o que mais temia. Lágrimas alvoroçadas rolaram em abundância nas vias expressas de seus olhos esbugalhados. Pê da vida, voou para o seu espaço e se aldravou (5) por dentro. Em continuo, ainda não refeita do susto e, em prantos, decidiu. Pulou a janela e ganhou o quintal imenso que acessava saídas para duas vielas distintas. Sem maiores problemas, a princesinha, ágil como uma gata, saiu do terreno tranquila e, longe de ser vista, debandou em direção ao comércio de seu consanguíneo. Três quadras. Isaurinha aportou ao destino pingando suor, em vista do calor reinante e do que havia posto a pratos limpos.

Se fez direta à sala de seu pai, não falando com as funcionárias que lhe cumprimentaram saltitantes à chegada. Adentrou feito um foguete:
— Pai – foi logo dizendo. O senhor me dá umas folhas de papel A-4?
Ariscorno Benzadeus se mesurou (6), a tez faceira, ao ver a filha chegar sem aviso prévio, coisa que não cotidianava (7) do seu temperamento praticar. Resolveu inquirir o motivo:
— Para que, minha princesa?

Isaurinha urdiu (8), na hora, uma maxambeta (9) deslavada:
— Para eu desenhar...
— Filha eu lhe dei dois cadernos próprios para essas finalidades. Não estou entendendo...
— Pai, por favor...
— Só se você me revelar para quê...!
— Está legal, pai. É para eu dar para o professor Godofredinho...

O pai não engoliu a patacoada. Achou que a filha tinha outras razões para tal pedido:
— Ué! Agora fiquei “cabreiro”. Ontem mesmo ele comprou uma resma... Isaurinha você está me escondendo algum segredo. Fala. Para que você quer realmente as folhas A-4?
— Ok, pai. Eu falo. Vou dar de presente ao professor Godofredinho. Todo dia depois da minha aula, ele vai para o banheiro do quarto de hóspedes. Isso vem acontecendo há pelo menos, um mês ou talvez mais.
— Que coisa estranha... será que a privada da casa dele pifou? Ainda que estivesse, todas as residências da comunidade têm banheiros... como a nossa, dois, sem falar no da empregada.

Cofiou o vasto bigode e completou:
— Não tem meia hora fui levar umas encomendas no doutor Eusébio, nosso dentista... e usei o banheiro reservado à serviçal.
O sujeito se movimentou e, num gesto paterno voltou a abraçar a filha:
— Para qual finalidade ele iria pedir a você folhas A-4?
— Pai, ele não me pediu. Eu é que quero dar...

O comerciante coçou a cabeça e arrematou:
— Pois bem, filha. Eu só necessito entender qual é o propósito. Não seria melhor dar ao patife um rolo de papel sanitário, ao invés de folhas A-4?
— Não faça perguntas, pai. Só me libera as folhas.
— Isaurinha, a verdade. Vamos. Agora.
— Eu já disse, pai!

Sem ter como esconder a realidade verdadeira do que presenciou, Isaurinha acedeu (10) à vontade dele. Ainda assim, tentou imprimir uma de espertalhona num derradeiro esforço. Usou a tática do comer pelas beiradas:
— O professor Godofredinho todo dia termina a minha aula mais cedo...
— Como assim, filha?
— Meia hora antes do que você e ele combinaram...
— Seja mais objetiva, minha linda.

Isaurinha se serviu de um copo de água gelada e encarou o pai:
— O professor Godofredinho me mandou fazer um monte de exercícios e terminou a aula mais cedo. Meia hora antes, para ser mais exata.
— Então, filhota —, obtemperou o pai. Deve ter outros compromissos, outras meninas precisando de aulas de reforço, como você...
— Não, pai. É aí que a porca torce o rabo. Ele não vai embora. Pensei que tivesse um namorico com a Magda.

O homem deu um sorriso maldoso e observou desdenhando:
— E tem?
— Não, pai. A coisa é mais séria. O professor Godofredinho entra para o quarto de hóspedes. Finge que vai ao banheiro, mas na verdade, não é bem o que acontece...
— Droga, filha. Conta de uma vez. Deixa de rodeios.
— Pai, me escuta. O professor Godofredinho se tranca com a mamãe e passa a chave por dentro...

Ariscorno Benzadeus perdeu a cor original. De repente se agitou. Desferiu um soco na parede. Um quadro da esposa abraçada a ele, se fez ao chão e se quebrou:
— O que você está me dizendo, Isaurinha?
— Que o professor Godofredinho se fecha por dentro com a mamãe.
— E a Magda sabe disso?
— Acho que desconhece. Não posso afirmar. Faz uma semana que estou de “butuca”. A coisa, vem acontecendo há mais de um mês. Todas as vezes, quando corro à cozinha, pego a Magda enrolada com as tarefas do dia a dia.

Isaurinha vai até a garrafa de café e se serve de duas xícaras, oferecendo uma ao pai:
— Magda está limpa. Se tivesse culpa no cartório, acho que faria alguma coisa para desviar a minha atenção.
— Espera, filha. Deixa ver se entendi. Calma! Respira. O que você está me dizendo é muito sério. Se for confirmado pode dar morte. Você sabe o motivo do professor Godofredinho se capitanear (11) com a sua mãe? Vamos descartar a história do uso do banheiro... ele não usaria de tal expediente somente para mijar ou cagar..

Isaurinha sem algo mais concreto para tentar amenizar o atordoamento de seu pai, apesar de estarrecida, escancarou de vez. Novamente seus olhos se cobriram de lágrimas num pranto sentido. Junto com ele, relatou esmiuçadamente o que sabia, ou melhor, traduziu em palavras o que realmente a deixou de pernas bambas e o receio feroz a lhe tomar toda a estrutura de maneira desordenada:
— Não, pai. Pensei que fosse isso. Daí querer interromper para entregar a ele as folhas de papel A-4. Queria ver se pegava algo diferente no ar.

— OK. Me fala de uma vez. Sem enrolação, sem subterfúgios. Seja honesta. Quando você espiou pelo buraco da fechadura, o que foi que viu?
Isaurinha ainda tentou, por derradeiro, desconversar. Lembrou do que dissera seu pai, minutos atrás: “Isso pode dar morte”.
— Não vi nada, pai. Esquece. Tchau. Estou indo...
— Isaurinha, será o Benedito?

Ariscorno Benzadeus, completamente fora de si, segurou a filha pelo braço:
— Não pai. É o professor Godofredinho mesmo. Quem é o Benedito?
— Esquece, filha. Esquece o Benedito. Vomita. Estou para explodir. O que você viu acontecendo lá dentro do quarto de hóspedes?
— Não sei, pai. Hoje, agora, por acaso, depois de vigiar por uma semana a saída do professor e descobrir que ele não ia, de fato, embora, resolvi bisbilhotar a Magda.

A menina tentou se abrir numa gargalha (12) forçada e continuou, cheia de medo:
— Ela estava trabalhando normalmente. Quando fiz meia volta e cruzei com a porta do quarto de hospedes, me deu na telha meter a curiosidade pelo buraco da fechadura. Acabei de fazer isso não tem dez minutos.
— Você está dando voltas. Pula essa parte. O que foi que você viu, infeliz?
— Esquece pai. Não vi nada.

— Fala, desgraçada. Abre o jogo ou perco a cabeça com você. Vamos. Bota para fora. O que você viu?
Sem alternativa, Isaurinha revelou o inusitado que presenciou com todas as letras:
— O professor Godofredinho pelado pai...
— Filho da puta. Pelado?!
— Sim, pai. Sem nada. A bunda branca de fora... e aquilo também. Quando espiei, ele pulava na cama em cima da mamãe.

Notas de rodapé:
1) Flertava – Namorava, paquerava ou xavecava.
2) Estardalhava – Latia de modo desesperado, ruidosamente.
3) Escafedia – Sumia do pedaço, desaparecia sem ser visto.
4) Pulularia – Irromperia, fervilharia. Multiplicaria.
5) Aldravou – Aquele que se trancou por dentro.
6) Mesurou – Se reavaliou ou se definiu. Pode ser também o que se galanteou ou se gabou.
7) Cotidianava – Variante de cotidiano. De todos os dias, o que se fez habitual.
8) Urdia – Tecia inventos ou fantasiava.
9) Maxambeta – Mentira, falsa história ou falso relato.
10) Acedeu – Acordou, consentiu. Deixou, permitiu.
11) Capitanear – Se passar para o lado de alguém. Se deixar ser levado.
12) Gargalho – Rir de maneira espalhafatosa ou exagerada.


Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 22-11-2022


Anteriores:
[Aparecido rasga o verbo – Extra] Não há vitória sem peleja 
Velhice 
[Aparecido rasga o verbo – Extra] Um dia, quem sabe, o milagre se faça real... 
Crotildo 
[Aparecido rasga o verbo – Extra] Pequenas diferenças entre o Deus verdadeiro e o “deus” cabeça de ovo 
Matemática de sinaleira 
[Aparecido rasga o verbo – Extra] Brasil: esperança e caos 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-