domingo, 13 de novembro de 2022

[As danações de Carina] Como se me alforriasse

Carina Bratt

SEIS HORAS EM PONTO. Pulo da cama. Tomo um gostoso e demorado banho frio. Meia hora depois, ainda enrolada na toalha, ligo o som baixinho na sala para alegrar o ambiente e embalar a minha alma. Faço um dejejum reforçado. A melhor refeição é a primeira. Enquanto trato da barriguinha, leio Flávia Assaife (1). Estou na metade do livro.

Para acompanhar a Flávia, nada melhor que transitar em seus versos simples e impecáveis. Eles acalantam o estresse. Para que a viagem ao redor do meu pequeno mundo fique ainda mais espetaculoso (2) e dulcificante (3), aperto o play do som. Dele, se espalham, por todos os cantos e recantos do meu loft (4), as músicas do genial maestro Ennio Morricone (5).

Existe uma, melodia em especial, que gosto de ouvir repetidas vezes, como um daqueles antigos discos de vinil arranhados, empacado numa faixa só. Falo, logicamente, do CD de 1971, onde está inserida a obra prima ‘La Califfa’ (6). Para quem gosta de apreciar o que é belo, alimentando a alma, purificando o espírito ao tempo em que atiça os momentos bons da vida, a música que inebria age como uma terapia jamais sonhada.

Não há nenhum doutor (por mais estudioso e catedrático que possa ser), capaz de trazer à baila, lá do fundo do âmago escondido, a tranquilidade que a gente busca para ser feliz. O avivamento perfeito para o dia a dia e, claro, o encorajamento fortalecido e avigorado para enfrentar os dias vindouros e todas as confusões e percalços que eles possam tentar trazer. Eu disse ‘possam’.

Ennio e suas pérolas inesquecíveis me fazem mergulhar numa espécie de melifluição (7) onde cada instrumento da sua orquestra me transporta para um espaço além-vida. Nessa atmosfera abissal, me refaço, me reconstruo, me inovo, me restabeleço por dentro e por fora. Volto como se voasse em asas mágicas de um pássaro inexistente da minha metade vazia para ser inteira e completa, indestrutível e cindiamente (8) recomposta.

‘O pensamento viaja, vai longe, se desprega. Ninguém acha. País da imaginação, reino do meu coração’ (9). La Califfa segue tocando... e Flávia me dizendo coisas ao pé de um ‘Nada’ fugidio onde o ‘Tudo’ se torna sério, e, ao mesmo tempo, um ‘Agora’ estonteante:

‘Guia-me... quando a dor chegar para que eu possa suportar... guia-me quando o orgulho aparecer, para que recorde o quanto ainda necessito aprender... guia-me quando a intolerância surgir, lembra-me que a paciência é uma grande virtude... guia-me quando a maledicência imperar, para que ela eu possa derrotar... guia-me quando estiver confusa, sem nada entender na busca da compreensão...’ 

‘Guia-me quando errar, para que tenha forças em recomeçar... guia-me quando chorar, o sorriso achar... guia-me quando a raiva se fizer presente, na direção do perdão...  guia-me quando fizer alguém sofrer, no caminho da humildade que necessito percorrer... guia-me quando ao redor parecer perfeito, para que não cometa erros. GUIA-ME’’”. (10).

Notas de rodapé: 
1) Flávia Assaife – Escritora, 54 anos. Nasceu em Brasília em 1968. Além de autora prestigiada, é professora universitária e consultora.
2) Espetaculoso – Extraordinário, estrepitoso e teatral.
3) Dulcificante – Confortador, suavizante, livre de contrariedades.
4) Loft – No sentido do texto, um espaço, num apartamento. O mesmo que casa.
5) Ennio Morricone – Compositor, arranjador italiano e maestro. Compôs mais de 400 músicas, além de uma centena de clássicos para o cinema. Faleceu em Roma, em 06 de julho de 2020.
6) La Califfa – Música composta por Ennio Morricone para o filme do mesmo nome.
7) Melifluição – Ato ou efeito de melufluir, ou seja, aquilo que vem doce e sereno como o mel, ou tudo o que soa harmonioso aos ouvidos.
8) Cindiamente – Totalmente, plenamente, inteiramente.
9) Poesia de Flavia Assaife – Do livro ‘Os Viajantes Da Lua’, página 52, sob o título ‘Introspecção’. Editora Multifoco, Rio de Janeiro, Edição datada de setembro de 2011.
10) Poesia de Flávia Assaife – Também do livro ‘Os Viajantes Da Lua’, página 69, sob o título ‘Guia-me’. Editora Multifoco, Rio de Janeiro, Edição datada de setembro de 2011.

Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 13-11-2022

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