domingo, 3 de dezembro de 2023

[As danações de Carina] O âmago da vertigem

Carina Bratt 

‘Quem partiu segue vivendo na minha saudade e, com muito carinho, na minha memória.’
Citado em ‘O Pequeno Livro dos Mortos’ de Sammis Reachers

TALVEZ FOSSE exatamente daquilo que eu precisasse. Paz! Pelo menos naquele instante amargo, diante do caixão da minha amiga Soraya, que morreu assim, do nada, sem se despedir, sem ao menos dizer que estava indo embora. Soraya, posso dizer, se fazia no topo da minha lista de confidências quando nos lanches da tarde (no apê dela ou no meu ou no de Aparecido), trocávamos figurinhas bailando os assuntos mais cabeludos como namoros, paqueras, curiosidades sobre o Dudu que tinha fama de bom de cama, ao contrário do Luiz Roberto, que amava um ‘fio terra.’


Soraya, na segunda, 13,11 p.p, foi internada e horas depois de uma bateria de exames, ficou confirmado o diagnóstico que nos pegou a todos de surpresa. Câncer. Na sexta-feira, 24, na hora em que eu preparava alguns textos para as minhas futuras ‘Danações’, ela deixou nosso convívio para ir morar no infinito. Deixei de lado o que escrevia e resolvi fazer uma homenagem a ela. Ao menos, tentaria. Sempre tive em conta que a força de uma corrente por mais forte que seja, rebenta literalmente pelo elo mais fraco. O anel escachelado da Soraya, se consubstanciava, ou se arrimava na doença oculta que ela própria não viu em seu rosto quando se olhava no espelho. A infame se agarrando nesta ponta de fraqueza, nunca sinalizou à minha amiga que cuidasse com mais atenção e carinho da sua saúde.

Trilho colado, em tempo nenhum dos nossos anos de convivência, ela me falou que sofria de algum transtorno dismórfico. Não posso culpa-la pelo limite da sua lentidão em matéria de se precaver, pois, coitada, não sabia de nada. Em compasso paralelo, jamais me deparei olhando para seu semblante alegre e jovial com algum resquício de complexidade que levasse a concluir uma nesga que fosse, de enfermidade. Por assim, não ousaria dizer que a minha amiga vivia homiziada atrás de uma porta fechada sem ter a chave ao alcance das mãos, ou seja, ninguém da nossa benquerença estaria apto a supor que a pujança da moça se fazia por um fio de Ariadne às raias de um trágico desfecho.

O fato é que coisa alguma, em sua postura sinalizava um epílogo tão degradante. Nem ela própria conhecia o estado terminal. Embora dispusesse de um leque de opções bastante atrativo para se cuidar (afinal, a sua bolsa monetária, Graças a Deus, possuía meios visíveis de sobrevivência), bem poderia se tratar, se proteger... é certo que, em razão disto, desconhecia o porvir, ao menos para se acautelar. Não se prevenindo, Soraya se meteu numa escuridão estropiciosa que se concentrou em seus costados de maneira fulminante. Quando vinha aqui em casa, eu chamava o Aparecido (mesmo prédio só os nossos andares se formavam diferenciados), os dois trocavam gracejos.

Ríamos dos disparates jogados ao sabor de uma cordialidade mútua, até nossos olhos ficarem marejados de lágrimas:
—... Apa. Está vendo aquela sirigaita na varanda aí em frente de calcinha laranja?
— Sim. O que acha que ela pretende se mostrando tão abertamente?
— Na verdade não sei. Porém, se eu fosse você, faria sinais de fumaça, ou escreveria um cartaz enorme com o número de seu telefone convidando a estrepitosa para vir em sua casa. A meu ver, a ‘inocente pecadora’ está pronta para ser chupada...

Ou:
—... Soraya, soube que você namorou um cadeirante... - como foi a experiência?
— Complicado, Apa...
— Como assim?
— Achava difícil o sujeito se segurar na cadeira. Os dois, ele e a rodante se estapeavam e não se entendiam...
Soraya se constituía numa espécie de diversão espontânea, onde brincávamos, contávamos piadas... assistíamos as séries na Prime Vídeo e vez ou outra ela falava da mãe, moradora no Jardim Guanabara, na Ilha do Governador e que todos os dias renovavam as saudades via WhatsApp.

No velório montado às pressas, no cemitério da Cacuia, também na Ilha do Governador, se fez enxameado. Quase todos os moradores do nosso prédio nos deram a honra da presença maciça para o último adeus. As palavras pausadas do padre Luiz (o único irmão vivo da minha amiga), chegaram até nossos ouvidos como um contraponto abalado e valetudinariamente enfraquecido. Desta família que aprendi a amar como se minha fosse, agora só o Luiz e a mãe seguem em frente. Um outro irmão, o Candido, veio à óbito faz dois anos. Soraya se aconchegou sepultada junto dele, no jazigo perpétuo da família. Eu escrevi tudo isto somente para não afelear o meu ‘ATÉ BREVE.’

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 3-12-2023

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