quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

[Daqui e Dali] Quando meu pai foi advertido pela PIDE

Humberto Pinho da Silva

Certa ocasião acompanhei meu pai a exposição coletiva de fotografia. Tratava-se de trabalhos a preto e branco – na época ainda não existiam rolos a cores – de grande beleza.

O tema era a cidade do Porto. Meu pai observou-as atentamente, primeiro de perto, depois afastando-se um pouco, semicerrava as pálpebras para melhor as apreciar.

Como no salão permanecessem fotógrafos, aproveitou para trocar pareceres. Um senhor, apercebendo-se que (o meu pai) era jornalista, acercou-se no intuito de lhe mostrar trabalhos.

Eram fotos de rara beleza (nesse tempo não existia computador, que permitisse recortar, realçar, apagar e alterar tonalidades; apenas filtros).

Entre as que mostrou havia uma foto, tirada na Ribeira, que mostrava esbelta menina – não teria mais de seis anos – descalça e de calcinhas.

A petiza era iluminada por misterioso raio de sol que realçava ainda mais a sua beleza. Em segundo plano, em tênue sombra, descortinava-se grupo de garotinhos seminus, secando ao sol, após terem nadado no rio. Meu pai, encantado, perguntou-lhe se podia publicá-la.

Rasgou-se o semblante do homem, declarando que até agradecia. Logo que entrou na redação de "O Comércio do Porto", levou a foto para a mostrar ao Sr. Manuel Filipe (filho do diretor).

Como não estivesse disponível, apareceu-lhe o escritor Costa Barreto, que o levou para salinha mobilada com mesa de pé-de-galo de madeira maciça, cercada de pesados cadeirões. Logo que a viu considerou que era um grande furo jornalístico

E virando-se para meu pai, acrescentou: “Agora só falta o texto. Ninguém como você, pode escrever prosa romântica e poética”.

Decorrido dias a "Reportagem Gráfica" saiu. Não correram mais de duas semanas, quando foi avisado para ir falar com o Costa Barreto, que lhe confidenciou o seguinte:

A PIDE perguntara, a razão de terem publicado a fotografia... Meu pai, alvoraçado, interrompeu-o:

"Não me diga que a acharam pornográfica!? Ou não gostaram da legenda ‘O rio, a piscina do povo’?!”

"Nada disso!”, atalhou, serenamente, Costa Barreto, “queriam saber se você era de confiança... Porque a foto, juntamente com outras, foi exposta em Milão. Exposição que pretendia mostrar a miséria em que se vivia em Portugal!... Mas descanse... acreditaram que desconhecia o facto, assim como o jornal”.

Claro que o matutino não publicou mais trabalhos do fotógrafo. Nesse recuado tempo não se brincava com a polícia...

Título e Texto: Humberto Pinho da Silva, janeiro de 2024

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