terça-feira, 2 de setembro de 2025

O fracasso das democracias liberais

O liberalismo progressista não compreendeu que certos valores como liberdade, identidade, conhecimento e bem comum não são mercadorias negociáveis. Ao tratá-los como instrumentos, sacrificou-os na ilusão de que todos convergiriam inevitavelmente para um modelo universal. O resultado foi duplamente destrutivo

João Maurício Brás

Em setembro de 2025, a Organização para a Cooperação de Xangai, reunindo China, Rússia, Índia, Turquia e Irão, proclamou, pela voz do líder chinês, a necessidade de um sistema global “mais justo e razoável”, um modelo de “verdadeiro multilateralismo” e a urgência de “tomar uma posição clara contra a hegemonia e as políticas de poder”. A mensagem foi inequívoca: um mundo pós-ocidental está a ser desenhado.

Para compreender como chegámos aqui, é necessário recuar às décadas que se seguiram ao colapso do comunismo. A partir dos anos 80, o Ocidente conheceu uma fase de prosperidade relativa, onde, apesar das falhas, ainda predominava o primado da política sobre os mercados. Contudo, a “religião laica” do progresso, a crença dogmática de que a história segue um caminho irreversível de aperfeiçoamento, sofreu uma mutação decisiva. Com o triunfo proclamado do liberalismo, anunciou-se o “fim da história”. Instalou-se uma hegemonia inédita: a fusão entre liberalismo económico radical e revolução cultural progressista. As elites celebraram, convictas de que o resto do mundo seguiria docilmente o modelo ocidental.

Foi um erro histórico. No século XXI, sobretudo nas últimas décadas, tornou-se evidente que as democracias liberais se fragilizaram por responsabilidade própria, vítimas de uma confiança cega na sua superioridade. Essa visão corroeu os rochedos estruturantes da civilização ocidental, as suas bases morais, culturais e identitárias, ao mesmo tempo que criou condições para o fortalecimento de um bloco alternativo. Apesar das divergências internas, Pequim e Nova Deli rivalizam na fronteira, Ancara oscila entre NATO e Moscovo, Teerão persegue uma agenda própria, mas estas potências partilham um denominador comum prioritário: reduzir a hegemonia ocidental e afirmar a sua soberania civilizacional.

O liberalismo progressista não compreendeu que certos valores como liberdade, identidade, conhecimento e bem comum não são mercadorias negociáveis. Ao tratá-los como instrumentos, sacrificou-os na ilusão de que todos convergiriam inevitavelmente para um modelo universal. O resultado foi duplamente destrutivo.

No plano económico, a globalização irrestrita, a desregulamentação e a financeirização concentraram riqueza sem precedentes, desmantelaram o Estado social e precarizaram o trabalho. Vejamos apenas dois exemplos ilustrativos, só entre 2000 e 2020, os EUA perderam quase seis milhões de empregos industriais, enquanto a Europa se tornou dependente do gás russo em mais de 55%. As cadeias produtivas foram transferidas para a Ásia, transformando a China na “fábrica do mundo” e criando uma dependência tecnológica de rivais estratégicos. Ao trocar estabilidade produtiva por consumo barato, o Ocidente fragilizou a sua classe média e destruiu a base material do pacto democrático.

Simultaneamente, o progressismo cultural desenraizou o ocidental, substituindo, por exemplo, a luta por oportunidades comuns por políticas identitárias fragmentárias. O corpo político dissolveu-se em micronarrativas de vitimização; a noção de bem comum desapareceu e os valores partilhados passaram a ser tratados como opressivos. Um “capitalismo woke” instrumentalizou causas sociais para fins de marketing, enquanto cancelava o passado e demonizava tradições fundacionais. O resultado foi uma sociedade atomizada, onde a insegurança material alimentou tribalismos, e estes, por sua vez, justificaram a inércia perante problemas económicos. As democracias tornaram-se formais nos rituais eleitorais, mas vazias de substância e incapazes de oferecer um destino comum.

Nestas décadas, o Ocidente não apenas permitiu, como incentivou, a ascensão desse bloco antiocidental. Pactuou com Pequim, transformando-a em superpotência industrial; financiou Moscovo com receitas energéticas; ignorou a emancipação estratégica de Nova Deli; e permitiu que uma Turquia ambígua conquistasse autonomia geopolítica. Entregou infraestruturas críticas a rivais, cedeu fluxos financeiros a um capital transnacional desligado das nações e alienou aliados potenciais no Sul Global ao tentar impor-lhes uma agenda moral progressista e cosmopolita. Ao acreditar num “império do bem” universal, o Ocidente alienou parceiros estratégicos e reforçou adversários externos.

No plano cultural, a revolução progressista relativizou identidades nacionais, promoveu um cosmopolitismo abstrato e deslegitimou a herança ocidental, tratando-a como fonte de opressão. Condena-se o passado com as lentes do presente, enquanto se silenciam violações graves de direitos humanos em regimes antiocidentais. Substituíram-se valores partilhados por políticas de fragmentação social, incentivando tribalismos e dinâmicas de cancelamento. O indivíduo, sem laços, foi reduzido a mero consumidor, gestor solitário da sua identidade.

Enquanto isso, Rússia, China, Índia e Turquia afirmaram os seus valores civilizacionais, reforçaram coesão interna e apresentaram-se como bastiões de continuidade cultural perante um Ocidente que, envergonhado de si próprio, perdeu a confiança na sua identidade. O mito de que o mundo convergiria inevitavelmente para um modelo liberal universal colapsou. O resultado é um Ocidente polarizado, descrente das suas lideranças, dependente e estrategicamente vulnerável, perante potências que operam com clareza de objetivos e unidade de propósito.

O erro maior foi estratégico e moral: o Ocidente convenceu-se de que o seu inimigo principal era interno. Enquanto demonizava “populistas”, “novos fascismos” e “extrema-direita”, englobando sob estes rótulos qualquer defesa de tradição, soberania ou identidade, negligenciava ameaças externas e fortalecia, involuntariamente, o bloco que hoje o desafia. Ser crítico, defender a restauração das nossas bases civilizacionais e colocar as pessoas acima dos poderes transnacionais passou a ser declarado nos média como o novo fascismo. As guerras culturais internas drenaram também as energias vitais, destruíram consensos mínimos e minaram a capacidade estratégica.

E, se o Ocidente não reencontrar os seus princípios, não será derrotado: suicidar-se-á por completo. Por isso, a maior parte das forças antissistema que hoje crescem não são uma anomalia: são o reflexo direto da falência interna das democracias liberais. Demonizá-las não basta. Se o sistema continuar a recusar o debate sobre os seus próprios fundamentos, serão elas a única alternativa.

Título e Texto: João Maurício Brás, SOL, 2-9-2025 

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