Rodrigo Constantino
Poucas coisas são tão
perigosas para a liberdade como uma mentalidade utópica. Os utópicos não se
caracterizam simplesmente por erros pontuais de raciocínio lógico; eles adotam
todo um método mental que de uma forma misteriosa é indiferente à verdade. De
certa forma, a utopia pode ser um substituto laico da religião para aqueles
inconformados e incapazes de lidar com as limitações da vida imperfeita.
Em seu livro The Uses of
Pessimism, Roger Scruton dedica um capítulo para derrubar a falácia da utopia e mostrar como
ela está a um passo do totalitarismo. Parte da explicação para movimentos
utópicos seria, segundo o autor, um resíduo de heresia religiosa em um mundo
sem religião, ou seja, a expectativa de criar um paraíso terrestre, colocando
um fim nas imperfeições do mundo.
Os utópicos podem ignorar a
aprendizagem com experiências passadas e até o bom senso, abraçando um projeto
absurdo e impraticável. Nada pode refutar uma utopia, e nisso reside seu
fascínio. Os milhões de vidas perdidas ou escravizadas nas tentativas de tornar
a utopia realidade não negam a utopia; apenas provam que maquinações perversas
ficaram no caminho como obstáculos indesejados. É preciso redobrar o esforço.
É exatamente com esta postura
que socialistas podem ignorar todas as desgraças causadas em nome de sua
utopia. A União Soviética nunca foi comunista, eles alegam. Era um “socialismo
real”, ou pior, um “capitalismo de estado” (assim conseguem jogar a culpa para
o lado do capitalismo). O fim, sendo inviável, jamais chega. A utopia está,
desta maneira, totalmente imune a qualquer tipo de refutação.
Utopias são visões de um
futuro em que todos os conflitos e problemas da vida humana são resolvidos
completamente. As pessoas viverão em harmonia, felizes. O desejo dos utópicos é
por uma “solução final”, não para alguns problemas, mas para todos os
problemas. Tudo aquilo que cria conflitos e tensões será eliminado. A raça será
pura, não haverá mais classes ou hierarquia, o mundo será um lugar de
“liberdade, igualdade e fraternidade”. Cada utopia tem sua versão.
Mas o ponto importante das
utopias, como frisa Scruton, é o fato de que elas não podem se concretizar. No
fundo, talvez de forma subliminar, os utópicos sabem disso, e por isso se negam
a descrever em maiores detalhes e de forma crítica o que exatamente eles têm em
mente. As utopias acabam empacotadas de forma vaga, ainda que com a embalagem
“científica”.
Karl Marx, que criticava o socialismo utópico e considerava o seu científico, jamais foi capaz de entrar em detalhes sobre o funcionamento de seu modelo. Todos poderiam atender a seus múltiplos desejos, caçar pela manhã, pescar na parte da tarde e até virar crítico literário de noite, pois não haveria mais divisão de trabalho nem propriedade privada. Como exatamente fazer isso sem tais mecanismos não vem ao caso. Quem produz as ferramentas necessárias para a caça e a pesca? Marx não responde. Talvez elas brotassem do solo.
Esta meta inalcançável serve
como poderosa arma para negar tudo aquilo que é real. Se eu defendo algo que
não pode existir, que jamais existiu e que sequer pode ser refutado, então
coloco-me em uma Torre de Marfim e, do alto de minha utopia, passo a atirar em
todos os modelos atuais. Qualquer defeito, qualquer problema existente passa a
ser indício de que o modelo vigente fracassou. A utopia serve como uma
condenação abstrata de tudo que nos cerca, e justifica a postura intransigente
e violenta do utópico.
O ideal dos utópicos jamais é
refutado, jamais é testado. Ele permanece para sempre como um horizonte distante,
imaculado, oferecendo um julgamento rigoroso de tudo que existe, como um sol
que não pode ser observado mas que cria uma sombra em tudo aquilo que ele lança
seu brilho. E as sombras são os inimigos da pureza do sol, que precisam ser
eliminados do caminho para que venha a luz.
Utópicos costumam aderir
facilmente às teorias conspiratórias e simplistas, que dividem de forma
maniqueísta o mundo entre bom e mau. Todos aqueles que recusam a utopia são
seus inimigos. Eles não podem discordar por convicção; devem ser traidores,
opressores ou, na melhor das hipóteses, alienados.
Foi assim que os jacobinos
encararam todos que criticavam a Revolução Francesa, como “inimigos do povo”.
Hugo Chávez, em busca de seu “socialismo do século 21”, adota a mesma tática.
Os inimigos variam de acordo
com a utopia. Para os nazistas eram os judeus; para os comunistas, os
burgueses; para os anarquistas, os políticos. O importante é ter um bode
expiatório, de preferência bem definido, aquele que impede a realização da utopia.
O crime, a violência e a destruição são justificáveis como meios para um sonho
tão puro e lindo como o utópico.
A revolta e o desejo de
vingança contra a realidade alimentam a utopia revolucionária. Esta sede
destrutiva costuma derivar de um profundo ressentimento direcionado àqueles
que, de alguma forma, conseguem contemporizar com as restrições da vida. O
caminho do totalitarismo está aberto se os utópicos conseguem chegar ao poder.
Título e Texto: Rodrigo Constantino, para a revista VOTO, 23-7-2012
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